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Proteção Internacional dos Direitos do Homem nos sistemas regionais americano e europeu: uma introdução ao estudo comparado dos direitos protegidos

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Agenda 09/09/2013 às 09:02

Para a melhor realização dos direitos humanos no Brasil, é necessário um diálogo da nossa Justiça com a jurisprudência da Corte Interamericana, de São José da Costa Rica.

Sumário: 1. Introdução. 1.1 O contexto. 1.2 Tema e justificativa. 2. Comparação quanto às condições de proteção. 2.1 A forma das convenções. 2.2 Universo de aplicação. 2.2.1 Universo de aplicação quanto aos destinatários. 2.2.2 Universo de aplicação quanto ao tempo. 2.2.3 Universo de aplicação quanto à matéria. 2.3 Mecanismos protetores. 3. Comparação quanto ao conteúdo protegido. 3.1 Questão metodológica. 3.2 Conteúdos regulados pela Convenção Americana e não regulados pela Convenção Europeia. 3.2.1 Proteção da honra e dignidade humana. 3.2.2 Direito ao nome. 3.2.3 Direito a uma nacionalidade. 3.2.4 Direito de igualdade em face da lei. 3.2.5 Direito ao reconhecimento da personalidade jurídica. 3.2.6 Direitos econômicos, sociais e culturais. 3.2.7 Outros direitos. 3.3 Conteúdos regulados pelas duas Convenções. 3.3.1 Proteção da vida e integridade pessoal. 3.3.1.1 Direito à vida. 3.3.1.2 Direito à integridade da pessoa. 3.3.1.3 Interdição de escravidão, servidão e trabalho forçado. 3.3.2 Proteção da liberdade e segurança individuais. 3.3.2.1 Princípio. 3.3.2.2 Garantias da pessoa privada da liberdade. 3.3.2.3 Direito a uma boa administração da justiça. 3.3.3 Proteção da intimidade. 3.3.3.1 Princípio. 3.3.3.2 Delimitação do conteúdo protegido. 3.3.4 Proteção da atividade intelectual. 3.3.4.1 Liberdade de manifestação e expressão. 3.3.5 Proteção da atividade social e política. 3.3.5.1 Direitos de reunião e de associação. 3.3.5.2 Direitos políticos propriamente ditos. 3.3.6 Proteção da propriedade privada. 3.3.7 Proteção da liberdade de locomoção e residência. 3.3.7.1 Princípio. 3.3.7.2 Expulsões. 4. Conclusão. 5. Referências bibliográficas.


1. Introdução

1.1 O contexto

Acordou-se, especialmente depois dos anos quarenta, para a necessidade de proteção dos direitos do homem no plano internacional.[1] A iniciativa coincidiu, no campo político, com a revalorização do Direito nas sociedades democráticas, funcionando os direitos humanos como barreira contra a ressurgência de regimes de força.  Foram determinantes, nesse sentido, a criação da ONU – Organização das Nações Unidas (cuja Carta cuida do tema) e a conclusão de diversos documentos internacionais voltados para a defesa e promoção dos direitos da pessoa humana.

O que poderia constituir apenas um movimento político teve como consequência, talvez a mais importante, a transformação do Direito, que passou a se caracterizar, a partir de então, também no plano internacional, como instrumento privilegiado de garantia das liberdades. Tal transformação foi traduzida por uma mudança em dois planos. No plano técnico-jurídico, no âmbito internacional, foram concluídos diversos acordos, desenhando para o direito internacional um novo espaço de ação, emergindo do processo o novo direito internacional dos direitos humanos. A nova área de saber alterou substancialmente o direito das gentes, antes voltado, fundamentalmente, para a disciplina das relações envolvendo Estados e organizações internacionais, não alcançando, pois, uma matéria praticamente monopolizada pelas disciplinas de direito público interno. Ainda no plano técnico-jurídico, mas agora na esfera do direito interno, implementaram-se novos procedimentos voltados à garantia das liberdades,[2] alterando-se profundamente o direito constitucional, por ser este o que, nos Estados dotados de Constituição rígida, mais eficazmente pode proteger os direitos fundamentais.[3]

Mas, a transformação do Direito operou-se igualmente num segundo plano, no campo do saber. A ciência do Direito reincorporou a esfera axiológica aos seus domínios,[4] para superar o cientificismo prisioneiro quer do formalismo neokantiano purificador,[5] quer ainda do sociologismo em débito com as fórmulas epistemológicas das ciências naturais.[6] O saber jurídico passou a ser entendido como um saber social. Sua fala, seu discurso, embora tenda ao distanciamento típico da atividade de conhecimento, não deixa de emanar de um lugar ideológico e político. A assunção dos valores é o ponto central do saber jurídico contemporâneo que, não se contentando em operacionalizar a defesa daqueles já proclamados, autoriza um processo contínuo de criação de novos direitos. Ora, os direitos integram o valor primeiro a partir do qual deve ser construído todo o arcabouço jurídico, bem como o respectivo saber.

O direito internacional público não ficou à margem desse processo. Não hesitou, assim, em relativizar o alcance próprio de alguns conceitos tradicionais (como o relativo à soberania), alcançando com isso alargar seu raio de influência para cuidar de uma matéria que, antes, era da exclusiva competência do direito interno de cada país.

1.2 Tema e justificativa

Se ao jurista-filósofo interessa ver, sob o prisma epistemológico, as modificações operadas na textura e nos pilares conceituais da ciência jurídica; se ao filósofo importa verificar os fundamentos dos direitos do homem, revelados quer pela pesquisa de sua essência demandante de justificação, quer por meio da análise de sua natureza enquanto matéria filosófica; se ao cientista político cumpre analisar as possibilidades, bem como os obstáculos políticos, conjunturais ou estruturais, à constituição de uma sociedade (nacional ou internacional) voltada para tais significados; ao jurista (enquanto tal) compete, além de tudo, verificar quais direitos são protegidos e de que maneira tal proteção se efetiva.[7] É nesta última perspectiva que o presente texto se inclui.

Propõe-se, portanto, uma releitura, sob a óptica do direito comparado, dos direitos protegidos pelas Convenções Americana e Europeia sobre Direitos do Homem. Por que comparar os instrumentos internacionais? A resposta da questão conduz à justificativa da escolha do tema.

Não há dúvida de que a solução para o problema da proteção dos direitos humanos no plano internacional seja o aperfeiçoamento dos mecanismos de caráter universal, especialmente aqueles promovidos pela ONU. Não bastasse a declaração de princípios contida na “Carta de São Francisco” e a própria Declaração Universal dos Direitos do Homem (Paris, dezembro de 1948),[8] a ONU vem se empenhando no sentido da aprovação de diversos tratados voltados à salvaguarda de categorias específicas de direitos e liberdades.[9] Ao lado destes, outros dois importantes Pactos foram concluídos, igualmente sob o patrocínio das Nações Unidas, em 1966, um deles relativo aos direitos econômicos e sociais e o outro aos direitos civis e políticos. Ao último, seguiu-se um Protocolo Adicional.[10]

Visando proporcionar uma eficiente garantia das liberdades, esses Pactos têm seguido a técnica convencional, mais eficaz do que as simples declarações. Não obstante a necessidade do prosseguimento da tendência, não se pode esquecer que ela se desenvolve vagarosamente em face da existência de não poucas dificuldades.

A primeira envolve os direitos a serem protegidos. Sendo a ONU um organismo de caráter universal, os Estados ali representados nem sempre ostentam a mesma cultura e concepção sobre os direitos. Isso dificulta a definição concertada daqueles que podem reclamar proteção.

A segunda dificuldade, pelos mesmos motivos, refere-se à forma pela qual os direitos serão definidos. Em termos globais e genéricos ou em termos precisos? Se o tratado é auto-aplicável, uma vez cumpridas as formalidades exigidas para tanto (ratificação ou adesão pelos Estados; lei de autorização para aplicação interna onde esta é necessária),[11] suas normas não o serão necessariamente. Tudo depende da maneira como os direitos serão afirmados. Esta variável definirá o grau de aplicabilidade de cada disposição. A eficácia plena,[12] caracterizada pela aplicabilidade direta e imediata das normas, será tanto mais difícil quanto mais universos culturais, ideológicos, econômicos, entre outros, estiverem envolvidos na realização do documento.

A terceira dificuldade, uma vez definido o conteúdo a ser protegido e a forma de tratamento desse conteúdo, diz respeito à interpretação de cada direito. Os direitos da mulher no mundo árabe, não obstante os apelos da compreensão universalista, certamente terão um sentido diferente dos mesmos situados no universo da cultura ocidental. Isso pode implicar a necessidade de outorga de certa margem de apreciação para autoridade nacional no cumprimento da normatividade convencionada.

Tendo em vista as dificuldades anunciadas, notadamente as duas anteriores, resta dificultada a adoção de garantias instrumentais assecuratórias fortes, especialmente por intermédio de órgãos com função jurisdicional.[13]

Diante dos obstáculos citados, ao lado de uma política universal dos direitos humanos, é importante incrementar uma segunda política (de caráter complementar à primeira), desta vez no âmbito regional. Isso tem ocorrido a partir dos anos cinquenta, concretizando-se tal política, especialmente através da criação de organismos e da conclusão de tratados internacionais de alcance regional, os quais, de uma maneira geral, acompanham o espírito da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Por outro lado, observando as coordenadas fixadas pela Carta das Nações Unidas, que reconhece a legitimidade desse processo, procuram compatibilizar suas atividades com os princípios da ONU e os tratados por ela aprovados.

A proteção dos direitos e liberdades fundamentais pelo direito internacional regional, embora exercendo uma função complementar, apresenta vantagens que merecem consideração. A análise da Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e da Convenção Americana sobre os Direitos do Homem, promovidas, respectivamente, pelo Conselho da Europa (CE) e pela Organização dos Estados Americanos (OEA),[14] ilustra a afirmação.

Essas duas convenções, por associarem Estados situados, em geral, num mesmo universo geográfico, porém com algumas diferenças culturais e econômicas,[15] puderam superar muitas daquelas dificuldades quase intransponíveis no contexto universal. Isso permitiu, quer na Europa, quer no continente americano, a criação de mecanismos mais eficazes de proteção dos direitos humanos. A proteção referida caracteriza-se pelo seguinte:

(i) Técnica convencional. Uma vez satisfeito o número mínimo de adesões e realizados os procedimentos exigidos pelo Direito interno dos Estados contratantes, as Convenções podem sofrer aplicação direta, no que for possível, tanto no plano interno como no externo das ordens jurídicas nacionais signatárias.[16] A aplicação direta não oferece, numa primeira observação, nenhuma inovação em face da atual política da ONU, seguindo, aliás, a mesma técnica jurídica (conclusão de convenções). A vantagem aparecerá quando somado esse elemento aos dois outros a seguir.

(ii) Número menor de direitos protegidos em relação aos afirmados pelos vários documentos das Nações Unidas. Entretanto, os direitos são referidos, em geral, de forma mais precisa. Por consequência, aparecem com os seus contornos mais transparentes, revestindo-se, com isso, do caráter de normas jurídicas com um grau significativo de eficácia.

(iii) Criação de organismos regionais de proteção dos direitos. Trata-se da instituição de Comissão e de Corte encarregadas da proteção dos direitos protegidos.[17]

Os elementos referidos podem ser sintetizados nos seguintes itens: a) aplicabilidade direta; b) definição dos direitos a proteger; c) maior grau de precisão de suas disposições; e d) mecanismos assecuratórios.

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Com essas variáveis, o direito internacional regional assume, em certos aspectos, alcance análogo ao das normas de direito público e privado internos.

Embora outros acordos regionais tenham sido concluídos,[18] apenas as convenções europeia e americana, dispondo ambas de instrumentos jurídicos efetivos para a proteção dos direitos do homem, contam com uma experiência acumulada. Por essa razão, justifica-se a comparação neste estudo proposta.

Quais direitos são protegidos pelas citadas convenções? Antes de tratar do assunto, importa responder a outra questão. Trata-se de evidenciar as condições gerais de proteção oferecidas pelos dois Pactos internacionais.

 


2. Comparação quanto às condições de proteção

2.1 A forma das convenções

Com objetivos comuns, as duas convenções diferem quanto à extensão do conteúdo protegido, assim como quanto à forma de tratamento de análogos conteúdos.

Heraud[19] enumera seis pontos que, segundo sua óptica, conduziram à aprovação da Convenção Europeia: (i) nenhuma ou tímida inovação em relação à legislação dos Estados partes; (ii) limitação aos direitos e liberdades individuais; (iii) perspectiva evolutiva; (iv) distinção entre os direitos civis e políticos, de uma parte, e os econômicos, sociais e culturais, de outra; (v) objetivo de incluir, no futuro, o conjunto de direitos civis e políticos reconhecidos pelo Pacto de Direitos Civis e Políticos da Organização das Nações Unidas; e (vi) redação em estilo concreto, marcado pela vontade de precisão.[20]

Estas características também estão presentes no documento americano? Sim, apenas em parte. Embora o Tratado Americano tenha se inspirado na Convenção Europeia, anterior em pelo menos 15 anos, também incorporou a herança jurídica pan-americana desenvolvida desde a Conferência de Catapultec, em 1945, que efetivamente marcou seu estilo. Cumpre não esquecer, ainda, do Pacto de Direitos Civis e Políticos da ONU, anterior em apenas três anos, que também muito o influenciou. Frente a isso, embora também se coloque numa linha evolutiva, o Pacto Americano não procurou limitar-se a uma categoria específica de direitos. Preferiu manifestar uma vocação mais generosa, direcionada ao reconhecimento de um conjunto maior de direitos, não importa a natureza, essenciais ao desenvolvimento da personalidade humana.[21]

Tal preferência é a matriz de algumas diferenças entre os textos americano e europeu. O americano, englobando outros direitos além dos tradicionais, trata dos direitos civis e, embora de modo cauteloso, dos de natureza econômico-social. Distinção aparece, todavia, na forma mais ou menos precisa dos dispositivos que deles cuidam. Enquanto os direitos civis (e políticos) têm, de modo geral, suas fronteiras desde logo estabelecidas, os direitos econômicos, sociais e culturais são tratados num único artigo de natureza programática. Por isso, resta incompreensível sem a leitura da Carta da OEA (reestruturada pelo Protocolo de Buenos Aires de 1967). Ora, a diferença de redação implica diferenças substanciais no tocante ao regime de proteção dos direitos.

Enquanto o documento europeu é marcado por uma vontade de precisão técnica, o tratado americano se caracteriza pela maior extensão do conteúdo protegido. Esta orientação, diante da assimetria dos países americanos no que se refere às condições sociais e econômicas, pode trazer como consequência uma maior dificuldade para a eficácia da convenção.[22] A análise da aplicabilidade das normas dos tratados poderá confirmar a assertiva.

A doutrina do direito internacional público tem classificado as normas convencionais, segundo o critério da eficácia jurídica, em self-executing e not-self-executing.[23] Tal dicotomia corresponde, de uma maneira geral, à tipologia das normas constitucionais, fixada pela doutrina e jurisprudência constitucionais norte-americanas.[24] A riqueza e a complexidade das normas convencionais exigem tipologia mais completa. Diante disso, cumpre seguir o pensamento de José Afonso da Silva para classificar as normas contidas nos tratados europeu e americano sobre direitos do homem em: (i) normas convencionais de eficácia plena, (ii) normas convencionais de eficácia contida, (iii) normas convencionais de eficácia limitada ou reduzida. Embora no plano constitucional, em relação aos direitos fundamentais, a tipologia tenha sofrido um deslocamento de significação, como demonstra com absoluta pertinência Virgílio Afonso da Silva,[25] continua útil, entretanto, para a parte orgânica da Constituição, e sem embargo do manejo da distinção entre regras e princípios, também necessário no contexto convencional atinente aos direitos fundamentais,[26] particularmente para a resolução de questões envolvendo concorrência ou colisão de direitos, a velha tipologia criada por José Afonso da Silva, aperfeiçoando as classicamente admitidas, inclusive a desenhada por Vezio Crisafulli,[27] apresenta, quando adaptada, utilidade indiscutível para a adequada compreensão do modo de operação da normatividade dos tratados internacionais.

A classificação tripartite tenta dar conta de determinadas situações que a dicotomia anterior não ilumina. De acordo com José Afonso da Silva, na primeira categoria (normas de eficácia plena) incluem-se todas as normas que, desde a entrada em vigor do documento, “produzem todos os seus efeitos essenciais (ou têm a possibilidade de produzi-los) (...)”.[28] Tal efeito se opera porque os elaboradores do tratado estabeleceram, desde logo, “uma normatividade para isso suficiente, incidindo direta e imediatamente sobre a matéria que lhes constitui objeto”.[29]

Quanto à segunda categoria, “também se constitui de normas que incidem imediatamente, e produzem (ou podem produzir) todos os efeitos queridos, mas prevêem meios ou conceitos que permitem manter sua eficácia contida em certos limites, em certas circunstâncias. Ao contrário, as normas do terceiro grupo são todas as que não produzem, com a simples entrada em vigor, todos os seus efeitos essenciais (...)”.[30] Neste caso, tais efeitos não se produzem, porque o documento internacional não fixou uma “normatividade para isso bastante”.[31]

As normas internacionais de eficácia plena são de “aplicabilidade direta, imediata e integral”, as de eficácia contida também são de aplicabilidade direta, imediata, mas não integral, isto é, elas estão sujeitas a “restrições previstas ou dependentes de regulamentação que limita sua eficácia e aplicabilidade”.[32] Já as normas de eficácia limitada são de aplicabilidade indireta, mediata e reduzida, porque normalmente sua incidência é dependente de uma regulação ulterior, sem o que sua eficácia restará limitada.

Ora, os dispositivos de eficácia limitada, porque inaplicáveis por si mesmos, não conformam o melhor meio para a defesa e proteção dos direitos do homem.[33] Neste aspecto, a Convenção Europeia apresenta vantagem em relação à sua similar americana. Enquanto esta contém um bom número de dispositivos normativos de eficácia limitada, o Pacto Europeu apresenta escassos casos.[34] Todavia, na situação europeia cuida-se de normas de “princípio institutivo”, como o art. 13, que prevê a criação de um recurso efetivo no caso de violação de direitos, ou o art. 3º do Protocolo Adicional, prevendo eleições livres para a composição dos corpos legislativos. A característica dessas normas é sua dependência, para autorizar eficácia, de medidas jurídicas ou fáticas complementares a serem tomadas pelos Estados contratantes.[35] Neste caso, a inação dos Estados Partes pode ser sancionada pelos órgãos de garantia da Convenção, a Comissão ou a Corte.

O Tratado Americano também contempla alguns casos de normas de eficácia limitada declaratórias de princípio institutivo.[36] Mas, ao lado destas, outras do mesmo tipo geral (eficácia limitada) circunscrevem-se a declarar princípios programáticos. Cite-se como exemplo o art. 17 relativo à proteção da família,[37] o art. 19, tratando da proteção da criança[38] e o art. 26, que cuida dos direitos econômicos, sociais e culturais. De que modo tais normas terão sua aplicação garantida? A eficácia destas normas depende menos de medidas jurídicas e mais de providências materiais dos Estados, que, por razões especialmente de ordem política e econômica, nem sempre ocorrem de modo satisfatório. A natureza programática dos dispositivos, orientados menos no sentido de reconhecer direitos subjetivos e mais no de orientar a ação governamental dos Estados, faz com que eventual violação dificilmente desafie sanção. Afinal, as medidas positivas referidas, não definidas desde logo pelo direito aplicável, autorizam, para os Estados, exercício de ampla discricionariedade.

Pode-se sustentar, numa primeira análise, que tais normas (de eficácia limitada, declaratórias de princípios programáticos),[39] em face de sua especificidade, podem, em certas situações, dificultar o controle dos órgãos internacionais. Diante disso, a preocupação dos juristas americanos, manifestada num primeiro momento, de condensar todos os direitos num mesmo documento guarda como mérito apenas a economia jurídica. Nesse sentido, o desejo de não operar distinção entre os direitos civis e políticos e os econômicos, sociais e culturais, resultante da correta compreensão unitária dos direitos, pode resultar, na prática, frustrado. Que dizer de uma não distinção que acaba distinguindo, em face da sujeição por uma categoria e a não sujeição por outra, aos mesmos mecanismos de controle de sua aplicação?[40]

O tratado europeu, por outro lado, apresenta-se mais homogêneo que o americano, quando considerados os direitos protegidos e o grau de precisão de suas disposições. Entretanto, como já afirmado, a Convenção Americana agrupa um conjunto mais generoso de direitos protegidos.

2.2 Universo de aplicação

Nesta altura, cumpre chamar atenção para o universo de aplicação dos direitos protegidos. Trata-se, neste particular, de verificar limites e alcance da proteção desenhada nos dois Pactos. Os limites são de três ordens: (i) quanto aos destinatários, (ii) quanto ao tempo e (iii) quanto à matéria.[41]

2.2.1 Universo de aplicação quanto aos destinatários

Importa discutir se a proteção contemplada nos dois instrumentos internacionais dirige-se às pessoas em geral, incluindo entre elas as pessoas jurídicas, ou se envolve apenas a pessoa humana.

A questão tem algum sentido. Afinal, nada impede que alguns direitos sejam exercidos pelo homem por meio de pessoa jurídica. Aqui convém citar Heraud, para quem os destinatários da Convenção Europeia são sempre as pessoas físicas. Ela apenas atinge as pessoas jurídicas por intermédio de certos efeitos.[42] É o caso, por exemplo, do direito de associação, que implica o reconhecimento de sua personalidade jurídica. Em sentido oposto se manifesta Marc-André Eissen,[43] para quem o art. 1º do Protocolo Adicional “confirma que os direitos e liberdades garantidos valem, em princípio, tanto para as pessoas morais como para as pessoas físicas”.[44]

Se a última posição é a adequada em relação ao instrumento europeu, parece que uma ótica similar à de Heraud, desde que relativizada, parece ser mais condizente com a filosofia da Convenção Americana. Com efeito, o próprio art. 1º, § 2º, opera uma associação entre a pessoa e o ser humano.[45] Essa operação legitima o entendimento segundo o qual a Convenção se volta, em princípio, para o ser humano. Isso não impede, porém, que possa, no que for pertinente, ser aproveitada também pelas pessoas jurídicas ou morais.[46]

Uma outra questão vincula-se à qualidade das pessoas protegidas. Os tratados internacionais muitas vezes adoram a regra da reciprocidade. Diante disso, o universo das pessoas protegidas limita-se aos nacionais dos Estados Partes. Não é o caso das duas Convenções. Seguindo a filosofia da declaração universal, e atendendo ao sentido de uma verdadeira política de direitos humanos, as Convenções protegem todas as pessoas, de qualquer país ou continente, que se encontrem, definitiva ou temporariamente, no território dos Estados comprometidos.

O art. 1º do Pacto Europeu estabelece que “les hautes parties contractantes reconaissent à toute personne relevant de leur juridiction les droits et libertés définis au titre I de la présente convention”. No mesmo sentido, dispõe o art. 1º do Pacto Americano: “Les Etats parties s'engagent à respecter les droits et libertés reconnus dans la presente convention et à garantir le libre et pleine exercice à toute personne relevant de leur compétence”. Tais direitos, segundo o mesmo art. 1º do Texto Americano e o art. 14 do seu similar europeu, serão respeitados sem qualquer distinção fundada sobre a raça, a cor, o sexo, a língua, a religião, a origem nacional ou social, a situação econômica, o nascimento ou outra condição social.

Porém, a regra não deixa de sofrer exceção. O artigo 16 da CEDH autoriza as partes contratantes a impor restrições à atividade política dos estrangeiros, de tal modo que os direitos de expressão, reunião, associação e de não-discriminação podem sofrer limitações quanto ao exercício por não-nacionais.[47] Tal possibilidade também é aberta pelo Tratado Americano em relação aos direitos de associação e de reunião. Esses direitos poderão ser restringidos no interesse da segurança nacional.[48] O tópico segurança nacional[49] abre a perspectiva de exclusão de estrangeiros no que se refere ao exercício dos direitos definidos nos artigos 15 e 16 quando em ligação com atividades de cunho político. Entretanto, as medidas restritivas devem ser sempre necessárias e justificadas.

2.2.2 Universo de aplicação quanto ao tempo

As duas convenções regulam apenas situações posteriores à sua entrada em vigor. Lembra Heraud que, se “pour des faits antérieurs, une procédure est encore en cours au moment de l'éntrée en vigueur de la convention, la procédure elle-même tombe dans son champ d'application”.[50] Tal colocação, dirigida ao Pacto Europeu, pode ser transferida para o Pacto Americano.

 Em relação à denúncia, os artigos 58 e 78, respectivamente da CEDH e da CADH, prevêem sua possibilidade desde que expirado o prazo mínimo de cinco anos após a entrada em vigor. Devem ser operadas mediante um aviso prévio de 6 (seis) meses no primeiro caso e 1 (um) ano, no segundo. Não obstante a denúncia, nos dois tratados, os Estados contratantes continuam responsáveis pelos atos (podendo constituir uma violação de suas obrigações) praticados anteriormente à data a partir da qual a denúncia produziu efeito.[51]

Os dois Tratados contemplam medidas derrogatórias que podem ser tomadas, unilateralmente, pelos Estados em período de crise. Tais medidas são disciplinadas pelo art. 15 da CEDH e pelo art. 27 da CADH. O recurso à suspensão ou derrogação deve ocorrer por tempo limitado. A Convenção Americana, neste particular, é mais rigorosa que a Europeia. Além de exigir que tais medidas sejam adotadas apenas em caso de guerra, de perigo público ou outra situação de crise que ameace a independência ou segurança do Estado, reclama, ainda, a imediata comunicação aos demais Estados Partes (via Secretário-Geral da OEA), bem como a informação da disposição cuja aplicação sofreu suspensão e a data fixada para o fim das medidas. O Pacto Europeu ainda que reclame, como o precedente, a informação das medidas aprovadas e dos motivos que as inspiraram, desafia apenas a comunicação da data a partir da qual elas cessaram. Não exige, pois, no ato da comunicação da suspensão, a definição do tempo de duração.

Em ambos os casos, o recurso derrogatório das garantias não incide sobre a integralidade dos dispositivos convencionados. Os artigos 2º, 3º, 4º (§ 1º) e 7º da CEDH, relativos ao direito à vida (exceto hipótese de guerra), proibição de tortura e de penas ou tratamentos degradantes, interdição de escravidão e de servidão e ao princípio nulla poena sine lege, não podem ser suspensos. A CADH não autoriza a suspensão de um número maior de direitos, entre os quais aqueles não derrogáveis nos termos da CEDH. Certos direitos, como será visto adiante, nem mesmo figuram entre os reconhecidos pela Convenção Europeia.  Por conseguinte, o Tratado Americano oferece, no aspecto em análise, uma proteção mais completa.

Entre os direitos que não podem ser derrogados temporariamente pelos Estados Partes na CADH, figuram o direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, o direito à vida, o direito à integridade da pessoa, a proibição de escravidão e servidão, o princípio da legalidade e da irretroatividade em matéria penal, o direito à liberdade de consciência e de religião, o direito à proteção da família, o direito ao nome, o direito à proteção da criança, o direito à nacionalidade, os direitos políticos e, também, as garantias indispensáveis à proteção de tais direitos.[52]

2.2.3 Universo de aplicação quanto à matéria

O terceiro elemento definidor dos limites da proteção vincula-se ao conteúdo dos tratados, que pode ter seu alcance reduzido em função de quatro fatores: (i) das reservas formuladas pelos Estados contratantes, (ii) da censura à prática de atos ou atividades contrárias aos direitos garantidos, (iii) da interdição de détournement de pouvoir na aplicação da Convenção[53] e (iv) das regras de interpretação dispostas na própria Convenção.

Os dois primeiros fatores são comuns às duas Convenções.[54] Porém, a Europeia é mais cuidadosa em determinado ponto. A Americana dispõe que as reservas devem ser formuladas em conformidade com a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, subscrita em 23 de maio de 1969. Nada dispõe, porém, no tocante à amplitude das reservas. A Convenção Europeia, por seu turno, dispõe que “as reservas de caráter geral não são autorizadas”.[55]

O segundo dos fatores, por si só, pode significar uma garantia contra certas atividades que, sob o pretexto do exercício de direitos, na verdade implicam violação ou supressão de outros. Os artigos 17 e 29, respectivamente das Convenções Europeia e Americana, proíbem toda interpretação autorizando um Estado Parte, um grupo ou um indivíduo, a suprimir o exercício dos direitos e liberdades reconhecidos ou a restringi-los de modo abusivo. Os termos dos dois artigos são praticamente idênticos.

O terceiro dos fatores, a proibição de détournement de pouvoir na aplicação da convenção, também substancia garantia significativa dos direitos protegidos. Sua previsão localiza-se no art. 18 do Pacto Europeu, segundo o qual as restrições aos direitos e liberdades “não podem ser aplicadas senão para a finalidade para a qual foram previstas”. Essa previsão resulta, segundo alguns autores, da influência que a doutrina francesa do direito público exerceu sobre os redatores da Convenção.[56] Tal influência não se fez sentir, diretamente, no Pacto Americano. Não obstante, o sistema americano também contempla uma garantia semelhante na aplicação dos dispositivos convencionais. Trata-se de exigência segundo a qual as restrições autorizadas pela Convenção devem seguir certos princípios de (i) forma e de (ii) fundo. Nesse sentido, as restrições devem ser estabelecidas em (i) leis editadas no interesse geral e aplicadas tendo em vista (ii) os fins para os quais essas leis foram previstas, ou seja, a proteção dos direitos e liberdades fundamentais em casos de colisão ou concorrência envolvendo não apenas direitos.

A fixação de regras de aplicação e interpretação pelos próprios documentos internacionais (art. 29 da CADH e art. 53 da CEDH) constitui o quarto dos fatores a ilustrar o alcance da proteção proporcionada pelos sistemas regionais europeu e americano. As disposições do Tratado Americano não podem ser interpretadas como “restringindo o gozo ou exercício de todo direito e de toda liberdade reconhecidos pela legislação de um Estado-Parte”,[57] ou como “excluindo outros direitos e garantias inerentes à pessoa humana e que derivam da forma democrática representativa de governo”;[58] ou como, ainda, “suprimindo ou limitando os efeitos que podem ter a declaração americana dos direitos e deveres do homem e todos os outros atos internacionais da mesma natureza”.[59]

A CEDH, neste aspecto menos ampla que a CADH, prescreve que nenhuma das suas disposições poderá ser “interpretada como limitando ou trazendo prejuízo aos direitos do homem e às liberdades fundamentais que poderiam ser reconhecidas conforme as leis de toda parte contratante ou toda outra convenção da qual esta parte contratante é parte”.

Uma última nota quanto ao universo de aplicação, relativamente à matéria. A Convenção Americana estabelece uma correlação entre os direitos humanos e os seus deveres, admitindo que aqueles possam ser limitados em função destes, principalmente diante dos deveres para com a sociedade. Este princípio é enunciado de tal modo que as liberdades de uns são limitadas pelos direitos e liberdades de outros, pela segurança de todos e pelas “justas exigências do bem comum”.[60] Ora, tais limitações não podem ser vistas como hipóteses de supressão dos conteúdos protegidos, mas apenas como autorização da adoção de fórmulas conciliatórias para convivência numa sociedade democrática. De qualquer modo, não se pode esquecer que tal princípio pode representar uma válvula de escape para governos que, em democracias meramente formais, violam ou restringem de modo injustificável o exercício dos direitos humanos. Crê-se, portanto, que, no caso, a associação entre direitos e deveres é plenamente dispensável. Ademais, sua função-motor não é outra senão expressar e ratificar um princípio implícito em toda a extensão do Tratado. Afinal, a correlação integra a própria essência do Direito. Parece, então, que o silêncio da Convenção Europeia é mais significativo.

2.3 Mecanismos protetores

O último elemento caracterizador do alcance da proteção é definido pelas garantias. Está-se a referir (i) aos recursos internos[61] e (ii) aos recursos dirigidos aos órgãos constituídos pelas Convenções.[62]

Ao lado destas formas de controle direto as duas Convenções cuidam ainda de uma outra. Trata-se do controle operado pela Comissão de Direitos do Homem, na Convenção Americana, a partir dos relatórios obrigatoriamente remetidos,[63] a cada ano, ou a partir das informações requeridas pela Comissão no exercício de sua competência.[64] Trata-se, ainda, das explicações que os Estados Partes devem encaminhar ao Secretário-Geral do Conselho da Europa, em face de exigência do Tratado. Este procedimento, previsto no art. 52, visa informar sobre o modo pelo qual os Estados contratantes asseguram a aplicação efetiva das disposições contratadas em seus respectivos ordenamentos jurídicos.

Todavia, se essas formas de controle podem funcionar como técnica de prevenção, o mecanismo recursal é mais eficaz, cuidando especificamente de eventual violação.

Os recursos internos são aqueles previstos pelas instâncias nacionais. Segundo o artigo 13 do Pacto Europeu, o recurso deverá ser “efetivo”. O Pacto Americano (art. 25) exige que seja “simples, rápido e efetivo”. Os Estados tratam, além dos meios processuais convencionais, de ações específicas dirigidas à proteção de posições jusfundamentais contra ação ou omissão do Poder Público. Cite-se, como exemplo, o habeas corpus, presente em muitos lugares, o recurso por excesso de poder na Bélgica e França, o recurso de amparo em vários Estados latino-americanos, além do mandado de segurança, do habeas data e do mandado de injunção, no Brasil, além tantas outras vias.[65]

Entretanto, como as Convenções vinculam toda atividade governamental, judicial, administrativa ou legislativa, elas podem criar dificuldades nos países que não admitem o controle da constitucionalidade das leis. Neste caso, uma série de atos que poderiam ser controlados internamente deixam de sê-lo. Para transpor situações assim, ou identificadas com a ineficácia dos recursos internos, as Convenções desenharam um segundo mecanismo, desta vez internacional, operado por seus próprios órgãos. São os recursos interpostos junto à Comissão Americana e Corte Europeia de Proteção dos Direitos Humanos.

O recurso pode ser interposto pelos Estados, assim como por particulares, grupos deles e organismos não governamentais, desde que esgotadas as vias nacionais compatíveis.[66] Na CADH o recurso é dirigido sempre à Comissão, enquanto na CEDH, em função das inovações introduzidas pelo Protocolo n. 11, que entrou em vigor em novembro de 1998, extinta a Comissão, está autorizado o particular a apresentar recurso diretamente no Tribunal (artigos 34 e 35).

No Pacto Europeu, antes da aprovação do Protocolo n. 11, o recurso podia ser resolvido de três maneiras: (i) por meio de acordo amigável patrocinado pela Comissão, nos termos dos artigos 28 e 30 da CEDH com a redação anterior ao referido Protocolo. Se isso não fosse possível, a questão era levada ao Comitê de Ministros;[67] (ii) por meio da manifestação do Comitê de Ministros do Conselho da Europa, tomada pela maioria de dois terços, decidindo se teria havido ou não, da parte do Estado denunciado, violação da Convenção. A decisão era tomada caso decorridos três meses da transmissão do relatório da Comissão, a Corte não tivesse sido provocada. A decisão do Comitê de Ministros tinha caráter obrigatório. (iii) Todavia, uma vez reconhecida a jurisdição, ou consentida sua intervenção, o processo podia se concluído por meio de decisão da Corte Europeia de Direitos do Homem.[68] Esta verificaria sobre a existência, ou não, parcial ou integral, de violação por parte de um ou mais Estados contratantes, às obrigações estabelecidas pela convenção. [69] Tudo mudou com o Protocolo n. 11 que entrou em vigor em novembro de 1998. A Corte, agora, é provocada diretamente, tendo sido suprimida a Comissão. Não havendo solução amigável na forma dos artigos 38 e 39 da CEDH, a Corte, por meio da Seção competente ou do Tribunal Pleno (artigos. 42 e 43), decidirá o caso. Salvo a hipótese de recurso dirigido ao Pleno, na forma do art. 43, as decisões da Corte são irrecorríveis e definitivas.[70] Deverão ser motivadas,[71] ostentando caráter obrigatório e vinculante.[72] Os países-membros devem, nos termos do art. 46, conformar-se com as sentenças da Corte. A execução de suas decisões, por outro lado, na forma do mesmo artigo, deve ser acompanhada pelo Comitê de Ministros.

Três são os modos pelos quais um recurso pode ser resolvido diante da CADH: (i) através de conciliação, isto é, de acordo amigável promovido pela Comissão (art. 49); (ii) por meio de relatório da Comissão, desde que, passados três meses da entrega aos Estados interessados do relatório previsto no art. 50, não tenha solucionado o caso ou submetido à decisão da Corte pela Comissão ou pelo Estado interessado, aceitando a sua competência. Neste caso, a Comissão poderá emitir, pelo voto da maioria absoluta dos seus membros, sua opinião e conclusões sobre a questão submetida à sua consideração. A Comissão fará as recomendações pertinentes e fixará um prazo dentro do qual o Estado deve tomar as medidas que lhe competir para remediar a situação examinada. Transcorrido o prazo fixado, a Comissão decidirá, pelo voto da maioria absoluta dos seus membros, se o Estado tomou ou não as medidas adequadas e se publica ou não o relatório. Cumpre lembrar, aliás, que à Comissão foi conferida, inclusive, competência para solicitar à Corte a adoção de medidas cautelares, mesmo em casos ainda não submetidos a esta, quando a urgência da situação assim o requerer.[73] (iii) O terceiro modo de solução de controvérsia envolvendo direitos humanos, no sistema regional americano, opera-se por meio de decisão da Corte Interamericana, com sede em São José da Costa Rica. Mas esta solução somente ocorrerá em relação àqueles Estados que reconheçam como obrigatória a sua jurisdição (art. 62). Uma vez reconhecida a sua jurisdição, a Corte decidirá soberanamente. Sua decisão é motivada, definitiva e obrigatória.[74] Neste ponto, cumpre lembrar que, enquanto no Conselho da Europa, o particular, após o Protocolo n. 11, está autorizado a provocar diretamente o Tribunal, no Sistema Regional Americano, nos termos do que prescreve o art. 61, somente os Estados Partes e a Comissão têm o direito de submeter um caso à Corte. Ao particular é dado o direito de provocar apenas a Comissão. É verdade, porém, que no contexto da OEA, de modo indireto, efeito análogo ao observado no sistema europeu tem sido alcançado ultimamente, isto em virtude da prática usual da Comissão de levar à Corte a maioria dos casos a ela submetidos.[75]

Não se trata de discutir longamente se o sistema adotado na Europa é mais eficaz que o Americano ou vice-versa. Isso depende muito da autoridade moral dos órgãos que exercem controle. Ora, não são poucos os órgãos que, ostentando competência não vinculante, conquistam, em face de sua autoridade moral, verdadeira força obrigatória. O início da história do Conseil d'État francês, bem como a competência inicial da “Seção de Administração do Conselho de Estado” belga em matéria vinculada ao contencioso de indenização, bem ilustram a tese.[76] É possível afirmar que, no Sistema Interamericano, a Comissão, desde sua criação e através de suas sucessivas modificações,[77] realiza um trabalho para reafirmar continuamente a sua autoridade moral. As Cortes, por outro lado, parecem corresponder, em grandes linhas, nas duas Convenções, a concepções análogas. Mas apenas o tempo dirá se a Corte Americana gozará, na prática, algum dia, da autoridade que lhe confere a previsão normativa. O exemplo europeu, quanto a isto, merece ser seguido.[78]

Verificadas, em traços largos, as condições gerais de aplicação dos instrumentos internacionais Europeu e Americano (e, portanto, o alcance da proteção regional aos direitos humanos por elas conferido), cabe empreender uma segunda comparação. Desta vez, envolvendo os direitos protegidos pelas Convenções.

Sobre o autor
Clèmerson Merlin Clève

Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná. Professor Titular de Direito Constitucional do Centro Universitário Autônomo do Brasil - UniBrasil. Professor Visitante dos Programas Máster Universitario en Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo e Doctorado en Ciencias Jurídicas y Políticas da Universidad Pablo de Olavide, em Sevilha, Espanha. Pós-graduado em Direito Público pela Université Catholique de Louvain – Bélgica. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Líder do NINC – Núcleo de Investigações Constitucionais em Teorias da Justiça, Democracia e Intervenção da UFPR. Autor de diversas obras, entre as quais se destacam: Doutrinas Essenciais - Direito Constitucional, Vols. VII - XI, RT (2015); Doutrina, Processos e Procedimentos: Direito Constitucional, RT (Coord., 2015); Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional, RT (Co-coord., 2014) - Finalista do Prêmio Jabuti 2015; Direito Constitucional Brasileiro, RT (Coord., 3 volumes, 2014); Temas de Direito Constitucional, Fórum (2.ed., 2014); Fidelidade partidária, Juruá (2012); Para uma dogmática constitucional emancipatória, Fórum (2012); Atividade legislativa do poder executivo, RT (3. ed. 2011); Doutrinas essenciais – Direito Constitucional, RT (2011, com Luís Roberto Barroso, Coords.); O direito e os direitos, Fórum (3. ed. 2011); Medidas provisórias, RT (3. ed. 2010); A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, RT (2. ed. 2000). Foi Procurador do Estado do Paraná e Procurador da República. Advogado e Consultor na área de Direito Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CLÈVE, Clèmerson Merlin. Proteção Internacional dos Direitos do Homem nos sistemas regionais americano e europeu: uma introdução ao estudo comparado dos direitos protegidos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3722, 9 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25237. Acesso em: 22 dez. 2024.

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