A França de 1830, respirando os ares trazidos pela ainda recente Revolução Francesa, uma das mais ferrenhas investidas contra o absolutismo monárquico de que se tem notícia em toda história da humanidade, inspirou Victor Hugo a escrever seu principal romance, Os Miseráveis, obra publicada em 1862.
A obra é um retrato da alma e da miséria humana, em seu sentido material e espiritual. João Valjean, por ter furtado um pão numa noite, pretendendo com isso saciar a fome de uma criança, um sobrinho, filho de uma irmã viúva que com ele morava, passou muitos anos nas galés, em razão da condenação pelo furto e pelas várias tentativas de fuga que se seguiram àquela condenação e que implicavam acréscimos à sua pena inicial. Foi perseguido ao longo de quase toda sua vida pelo obstinado inspetor de polícia Javert.
João Valjean teve que renunciar até mesmo ao próprio nome, pois o passaporte de ex-condenado era um atestado de periculosidade que lhe fechava todas as portas, tendo obtido a fama de perigoso por conta da descomunal força física que ostentava na prisão. Chegou a concluir que "libertação não é liberdade", pois continuava escravo e prisioneiro da condenação, pecha que o rotulava onde quer que fosse ou se encontrasse.
Sob outra identidade, tornou-se prefeito, industrial próspero, deu novo colorido à vida do povo de uma cidade da França. Mas a consciência, certo dia, fez com que se apresentasse à Justiça quando alguém, confundido com ele, o temível foragido João Valjean, estava prestes a ser condenado pelo furto de algumas cidras. E a condenação seria editada com base no passado desse indivíduo, confundido com João Valjean, o temido fugitivo.
Além da subtração do pão, numa noite, depois de arrombar uma vitrine, João Valjean cometeu outros dois delitos: depois que todas as estalagens lhe recusaram teto e comida, pelo temor inspirado por seu passaporte de ex-condenado, subtraiu alguns utensílios de prata da casa de Monsenhor Benvindo, padre justo e bondoso que o acolheu; subtraiu, ainda, uma moeda de Gervásio, jovem saboiano (de Sabóia, região da França).
Depois dessa última subtração, a redenção operou-se em João Valjean. Lembrou-se de que, quando levado à presença do Monsenhor Benvindo por policiais que o acusavam de ter furtado a prataria da casa, o bom padre não somente convalidou a inverdade contada por João Valjean, no sentido de que tudo aquilo havia sido de fato um presente, como disse ainda que o donatário havia se esquecido dos castiçais, peças que João Valjean guardou com estima por toda a vida.
E ao final, João Valjean morreu iluminado pelo par de castiçais, ao lado de Cosette e Mário, criaturas que salvou pessoalmente do perecimento, com a força de seus braços e de seu caráter. Os castiçais que o iluminaram na vida, materializando a bondade do padre que não lhe recusou o direito a uma nova oportunidade, foram os mesmos castiçais que o iluminaram em seu derradeiro instante.
A obra é atual porque atual é a miséria humana. Em plena era do Iluminismo, quando o homem passou a ser posto como centro do universo, em contraposição aos dogmas da Idade Média, o sistema pregava a perseguição dos miseráveis por pequenos crimes, infrações que segundo a moral vigente não eram leves e justificavam, por isso, severas penas.
Uma das máximas de Beccaria, sugerindo o que no futuro passou a ser denominado princípio da insignificância, em Dos Delitos e das penas, ainda não havia ecoado: "a exata medida dos crimes é o prejuízo causado à sociedade".
E ainda hoje o princípio da insignificância encontra sérias resistências por parte daqueles que nele vêem um estímulo ao descumprimento das leis penais e ao desrespeito de valores fundamentais. Em contrapartida, o desprezo a esse princípio não raras vezes compromete valores também importantes, contidos no binômio liberdade-dignidade humana, visto que o processo penal, por sua mera instauração, encerra constrangimento tanto contra a liberdade, como contra a dignidade humana, ainda que legal e necessário até esse constrangimento.
Bem por isso, numa visão mais humanizada do Direito Penal, o princípio da insignificância não pode ser desprezado ou desconsiderado a pretexto de fomentar a impunidade. O que fomenta a impunidade e o recrudescimento da criminalidade são muito mais a ausência de resposta estatal efetiva aos grandes desmandos e ilicitudes da Nação, condutas que não raras vezes sangram os cofres públicos e o bolso dos cidadãos que trabalham e pagam impostos, bem como o não-atendimento das necessidades básicas das pessoas.
O princípio da insignificância, bem aplicado, é realidade impostergável do Direito Penal da atualidade. O que dizer, por exemplo, de uma ação penal por sonegação de tributo de R$ 0,68, em valores atuais ? De uma ação penal por subtração de um feixe de sorgo avaliado em R$ 0,60? De outra ação penal por subtração de um feixe de cana-de-açúcar avaliado em R$ 2,00? Condutas tais, não continuadas ou reiteradas, sem violência ou grave ameaça contra a pessoa, não foram capazes de atingir o fisco ou de diminuir o patrimônio das pessoas e nem tampouco de externar nocividade social maior de seus autores, não justificando, portanto, a movimentação do aparelho jurisdicional e nem mesmo o custo de uma ação penal.
A aplicação criteriosa do princípio da insignificância, por certo, contribui inclusive para atenuar essa impressão que o senso comum tem da justiça penal e que é não de todo falsa, no sentido de que o sistema judiciário penal, no mundo, é muito mais apto e eficaz para perseguir pequenos crimes e seus miseráveis autores.
Ou será que estamos condenados a produzir e inspirar, sempre, histórias como a de João Valjean, em nome de algo que não se confunde com rigor e nem tampouco com justiça?