INTRODUÇÃO
A honra é a faculdade de apreciação ou o senso que se faz acerca da autoridade moral de uma pessoa, consistente na sua honestidade, no seu bom comportamento, na sua respeitabilidade no seio social, na sua correção moral; enfim, na sua postura calcada nos bons costumes.
A Constituição Federal, em seu art. 5º, X, menciona, expressamente, serem invioláveis a honra e a imagem das pessoas. Honra é, portanto, um direito fundamental do ser humano, protegido constitucionalmente e que deve ser respeitado por toda coletividade.
A honra é um direito personalíssimo que, quando violado, atinge a moral do indivíduo que sofreu a ofensa. A pessoa que comete um crime de injúria, calúnia ou difamação ofende, via de regra, o indivíduo e a sua liberdade não necessita ser retirada em prol da segurança da população, tampouco pela gravidade do delito que cometeu.
Além disso, os delitos em questão não causam qualquer ameaça à sociedade. Muito pelo contrário, atingem o direito, a moral e a honra de um único ou um grupo de indivíduos, restando claro, assim, que a sanção aplicada deve ser a reparação do dano sofrido pela vítima, a título de indenização e não a privação de liberdade do autor do fato.
A pena privativa de liberdade, nesse sentido, não deve ser regra e sim exceção, e só deveria ser imposta a indivíduos reincidentes ou que cometessem crimes graves, baseado no perigo que eles oferecem à sociedade e no seu maior grau de reprovabilidade social.
O movimento de descriminalização de certos comportamentos visa deixar de configurar ilícitos penais, não obstante possam ser considerados ilícitos de outra natureza.
O presente artigo tem o fito de demonstrar que o Direito Penal somente se legitima enquanto ultima ratio, e a privação de liberdade do ser humano é medida sancionatória demasiadamente exagerada para punir as condutas tipificadas no Código Penal nos seus artigos 138 a 145.
2. BASE PRINCIPIOLÓGICA E A SUBSIDIARIEDADE DO DIREITO PENAL
Primeiramente, neste tópico, resta demonstrar que os crimes contra a honra são delitos que violam em sua totalidade grande parte dos princípios norteadores do Direito Penal, bem como o seu caráter subsidiário.
O princípio da intervenção mínima tem um caráter limitador do poder punitivo do Estado, na medida em que é o responsável pela indicação dos bens de maior importância que merecem a atenção do Direito Penal. Este princípio preconiza que a criminalização de uma conduta só se legitima necessária se outras sanções ou outros meios de controle social revelam-se insuficientes. Assim, se medidas civis ou administrativas forem suficientes de modo a restabelecer a ordem jurídica, estas que devem ser empregadas e não as penais. O princípio da ultima ratio preconiza que o Direito Penal deve interferir o mínimo possível na vida das pessoas – já que, ao fazer isto, estar-se-á ferindo a liberdade do ser humano – e somente deve ser solicitado quando os demais ramos do Direito, comprovadamente, não forem capazes de proteger os bens considerados fundamentais.
Ora, ao se analisar a Constituição Federal no seu art. 5º, X, ao dispor que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”, está-se a sinalizar que a afronta aos bens que tal artigo dispõe, dentre os quais se encontra a honra, pode muito bem ser resolvida unicamente no âmbito indenizatório.
Ademais, pelo caráter subsidiário do Direito Penal, este somente deve ser invocado quando os demais ramos do direito e as demais sanções já existentes não forem eficazes, suficientes de modo a resolver o conflito. A sanção penal seria um “plus”, de modo a tornar mais efetiva à solução do problema. Nesse sentido, preleciona Queiroz:
[...] e essa subsidariedade decorre [...] de imposição político-criminal, pois, sendo o direito penal a mais enérgica manifestação da ordem jurídica estabelecida, segue-se que a sua intervenção somente deve ter lugar nas hipóteses de singular afronta a bens jurídicos fundamentais e para cuja repressão não bastem as sanções do ordenamento jurídico ordinário-principal, demandando, enfim, um plus de gravidade proporcional à gravidade da lesão e à significação social dos danos causados, o que se concretiza pela intervenção, subsidiária, do direito criminal [...] (QUEIROZ, 2002, p. 58)
Como já exposto, a sanção civil contra o indivíduo que ataca a honra de alguém, ou seja, a indenização a ser paga a vitima, é completamente suficiente, de modo a reparar o dano causado pelo agressor. Não há qualquer necessidade da intervenção criminal, seja porque o caráter subsidiário penal, nessas situações, não se justifica, seja porque as condutas-objeto dos delitos contra a honra, em regra, não atingem nem reflexamente a sociedade. Pelo contrário, são fatos que dizem respeito somente às duas partes e que, repita-se, poderiam ser tutelados pelo Direito Civil através de indenização.
3. A AUSÊNCIA DA RECEPÇÃO CONSTITUCIONAL DOS CRIMES CONTRA A HONRA
A honra recebe tríplice proteção no ordenamento jurídico brasileiro: constitucional, penal e civil. A Constituição Federal, em seu art. 5º, V, faz a proteção maior, estabelecendo o direito de resposta e a indenização por dano moral; a proteção penal está no capítulo dos crimes contra a honra do Código Penal e em legislações especiais, como a eleitoral e a de imprensa; e a civil, no reconhecimento do dano moral e o conseqüente ressarcimento.
Ocorre que a Constituição Federal, em seu artigo 5º, V, como já mencionado, definiu os limites de incidência do direito a honra. Ou seja, ao prescrever que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material e moral decorrentes da sua violação”, deixou claro que a honra é realmente inviolável e qualquer ofensa deve ser sancionada com o pagamento de indenização por danos morais ou materiais.
Ou seja, a Constituição Federal permitiu apenas uma sanção pecuniária de natureza civil. Em nenhum momento considerou que a ofensa à honra poderia ser sancionada penalmente. A omissão, nesse caso, deve ser interpretada negativamente, ou seja, a Constituição, ao deixar de referir-se às penas criminais, implicitamente, vedou-as.
Portanto, o abuso do direito à liberdade de expressão, como qualquer abuso de direito, deve ser sancionado, mas somente na seara civil. A sanção penal foi implicitamente proibida pela Constituição, pois afetaria o núcleo essencial do direito à liberdade de expressão.
A conseqüência inevitável é a revogação, por ausência de recepção constitucional, dos crimes contra a honra (calúnia, difamação, injúria e desacato) previstos no Código Penal e na Lei de Imprensa.
As normas constitucionais devem prevalecer sob quaisquer normas infraconstitucionais, como é o caso do Código Penal, diante da supremacia constitucional que prepondera em nosso ordenamento jurídico. Nesse sentido, preleciona Moares:
[...] é pressuposto para a supremacia constitucional, pois, ocupando a constituição a hierarquia do sistema normativo é nela que o legislador encontrará a forma de elaboração legislativa e o seu conteúdo. Além disso, nas constituições rígidas se verifica a superioridade da norma magna em relação àquelas produzidas pelo Poder Legislativo, no exercício da função legiferante ordinária. Dessa forma, nelas o fundamento do controle é o de que nenhum ato normativo, que lógica e necessariamente dela decorre, pode modificá-la ou suprimi-la.” (MORAES, 2005, p. 629)
Assim, dúvidas não há que a sanção penal foi implicitamente proibida pela Constituição, no que diz respeito aos crimes contra a honra, seja pela ausência de recepção constitucional, seja porque viola o princípio da supremacia constitucional, e a atitude mais acertada a ser tomada pelo legislador é a revogação de tais crimes.
4. A DISPONIBILIDADE DA HONRA
Os delitos contra a honra são movidos mediante ação penal privada. Assim, embora o jus puniendi pertença exclusivamente ao Estado, este transfere ao particular o direito de acusar (jus accusationis) nestas hipóteses. O direito de punir continua sendo do Estado, mas ao particular cabe o direito de agir. Justifica-se essa concessão à vítima quando seu interesse se sobrepõe ao interesse público, em que a repressão interessa bem de perto apenas ao ofendido.
Assim, em não se tratando de um caso excepcional, evidencia-se que, nos crimes contra a honra, prepondera-se e sobreleva-se o interesse do ofendido, cabendo somente a ele decidir se interpõe ou não uma ação penal contra o agressor. Esta regra geral é um dos motivos que justifica a disponibilidade da honra na ótica penal.
A disponibilidade do bem somente é concedida quando, provocada a lesão, o dano causado seja imperceptível para o corpo social ou o interesse visado não transcende o ofendido. Ou seja, quando os bens são de uma pessoa individualmente considerada, a disponibilidade é juridicamente eficaz, na medida em que não se refere a bens ou direitos cuja conservação está o interesse de modo direto ou indireto o próprio Estado, como o bem jurídico vida e integridade física. O titular não pode suprimir a vontade soberana do Estado.
Os delitos movidos por meio de uma ação penal privada vigora-se o principio da oportunidade ou conveniência, pelo qual o ofendido pode ou não exercer o seu direito de queixa. Ou seja, o ofendido torna-se o árbitro sobre a conveniência pessoal de agir ou não contra o ofensor. Como conseqüência, encontramos, na ação penal privada, três formas de extinção da punibilidade, além das gerais e comuns: a renúncia, o perdão e a perempção. Tais institutos, mais uma vez, demonstram a disponibilidade da honra na ótica penal, já que, por meio deles, o ofendido pode dispor da ação penal. Nesse sentido, dispõe Pacelli:
[...] pelas razões já expostas é que se afirma a existência de um poder discricionário do ofendido, ou dos demais legitimados, únicos árbitros da conveniência, e oportunidade de se instaurar a ação penal nos crimes cuja persecução seja de iniciativa privada. Ao contrário, pois, da ação penal pública (incondicionada ou condicionada), a ação privada encontra-se na esfera de disponibilidade de seu titular ou a tanto legitimado. Esta disponibilidade manifesta-se nas seguintes situações: renuncia perempção e desistência [...] (PACELLI, 2008, p. 131).
Há ainda que se esclarecer que, com a edição da Lei nº 9.099/95 e a posterior consolidação do entendimento de que esta se aplica, também, aos crimes para os quais prevê a Lei procedimento especial, como o caso dos crimes contra a honra (art. 520 e ss. do CPP), desde que, obviamente considerado de menor potencial ofensivo, houve uma significativa redução no ajuizamento das ações penais privadas derivadas dos crimes contra a honra, já que há a possibilidade de, na audiência de conciliação se proceder à recomposição dos danos da vítima, implicando em renúncia ao direito de queixa (Lei 9.099/95, art. 74, parágrafo único), autorizando o juiz automaticamente a extinguir a punibilidade do agente, antes mesmo do decurso do prazo decadência.
Diante do quanto dito, pode-se perceber que a honra é um bem jurídico disponível, ou seja, pode ser dispensada a tutela penal sobre tal bem pelo ofendido através do seu consentimento válido. Além disso, o ofendido pode renunciar ao seu direito de queixa se procede-se a recomposição dos danos da vítima. Assim, é de se ver que as normas penais que censuram as condutas lesivas à honra tornam-se inócuas, pois o manejo delas é vinculado ao desiderato e vontade do titular desse bem.
Desta forma, afirmamos que as condutas puníveis com pena, elencadas nos arts. 138, 139 e 140, todos do Código Penal, deveriam ser extirpadas de tal estatuto. Inclina-se para a descriminalização dos crimes de calúnia, difamação e injúria, pois, pelo próprio consentimento do ofendido e também por meio dos institutos explicitados neste tópico, coloca-se uma barreira para a atuação do Direito Penal.
5. A INEFICÁCIA DA SANÇÃO PENAL DOS CRIMES CONTRA A HONRA SOB O PRISMA DA VÍTIMA
Um ponto que chama a atenção no sistema criminal brasileiro, de forma negativa, é o desamparo que as vítimas recebem da máquina estatal e da sociedade civil quando da ocorrência de fatos delituosos. Molina já bem destaca em sua obra:
O abandono da vítima do delito é um fato incontestável que se manifesta em todos os âmbitos: no Direito Penal (material e processual), na Política Criminal, na Política Social, nas próprias ciências criminológicas. Desde o campo da Sociologia e da Psicologia social, diversos autores, têm denunciado esse abandono: O Direito Penal contemporâneo – advertem – acha-se unilateral e equivocadamente voltado para a pessoa do infrator, relegando a vítima a uma posição marginal, no âmbito da previsão social e do Direito civil material e processual. (MOLINA, 2000, p. 73).
Ela sofre com o crime, é destratada com o atendimento, muitas vezes em péssimas condições, nas Delegacias de Polícia. Submete-se ao constrangedor comparecimento ao Poder Judiciário na fase processual, na quase totalidade das vezes, desacompanhada de um advogado ou de qualquer pessoa. Encontra, ainda, pelos corredores do fórum o acusado, temerosa de uma atual ou futura represália que possa lhe acontecer, caso preste corretamente o seu depoimento.
Somamos a essa situação a aflição e as dúvidas por não ter conhecimento do curso do processo criminal em que está envolvida, se existe uma possibilidade efetiva ou não de ter seu dano reparado algum dia.
A melhor maneira de o Estado amparar a vítima de um delito – e aí entenda-se um delito que não atinja a sociedade e que o autor fato não cause riscos a mesma – é propiciando à vítima uma indenização pecuniária, juntamente com tratamentos, terapias e acompanhamentos psicológicos durante o tempo necessário de acordo com o caso.
Percebemos, pela análise do Código Penal de 1940, que a referência à reparação do dano é mínima e o que ocorreu durante muito tempo foi o esquecimento da vítima pelo Direito Penal, preocupando-se exclusivamente com a imposição da pena. Esse “esquecimento” da vítima perdurou por muito tempo no direito brasileiro e somente em data recente a situação vem se revertendo. Algumas leis editadas nos últimos dez anos procuraram introduzir instrumentos e penas para garantir a reparação do dano, tais como: a Lei 9.099/95, que previu institutos que ensejam na indenização dos danos e prejuízo causados pelo delito em favor da vítima como a composição civil. Outra forma de valorizar a vítima prevista na lei 9.099/95 foi ampliar o número de crimes que dependem de representação. Ainda, a citada lei instituiu, no Brasil, a suspensão condicional do processo. Por este instituto, o processo fica suspenso pelo prazo de 02 a 04 anos e o autor do crime tem de cumprir algumas condições, entre elas a reparação do dano à vítima (art. 89, § 1º, I). Fica evidente, mais uma vez, a intenção do legislador de incentivar a reparação do dano e vincular alguns benefícios a sua ocorrência.
No concerne aos delitos contra honra, é evidente que o legislador não se preocupou com a vítima, no sentido em que colocou como sanção criminal pena privativa de liberdade. O que se defende no presente trabalho é a descriminalização de tais delitos. Devendo os mesmos gerarem apenas a possibilidade de uma indenização à vítima a ser obtida no Juízo Cível competente, para que esta possa obter, de uma forma muito maior e concreta, uma reparação. Defendemos que as penas privativas de liberdade devem ser empregadas para os delitos que, de uma forma geral, violam algum interesse relevante da sociedade.
É preciso modificar a estrutura do ordenamento juridico brasileiro, de maneira que venha a preservar os interesses daquele que sofre as conseqüências da prática criminosa, ou seja, quem tem exposto ou lesado seu bem jurídico. A vítima não pode ser abandonada pelo sistema criminal: deverá ter um atendimento especializado para que possa superar o trauma causado pelo delito – sobretudo naqueles de extrema gravidade – e, também, uma indenização de modo reparar de alguma forma o que sofreu.
Não é aceitável que a vítima se torne titular exclusiva do Processo Penal e a decisão judicial se oriente para a satisfação da vingança pessoal. Mas tem pleno sentido que se repare o dano moral da vítima e se dê resposta ao seu sofrimento. A reparação social ultrapassa o plano patrimonial, coberto pela indenização. Trata-se de reconstituir a imagem e a dignidade da vítima, afetadas pelo crime e pela própria reação social estigmatizante.
Este objetivo deve ser prosseguido por um Processo Penal público, em que o Estado assuma a reparação dos direitos afetados.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de tudo o quanto exposto, pode-se concluir que a função precípua do Direito Penal é tutelar os bens jurídicos, levando em consideração a danosidade social que a lesão a tal bem pode provocar.
Vale ressaltar que o princípio que rege a orientação do Estado, na esfera penal, é o princípio da Intervenção Mínima e este, por sua vez, apregoa a atuação do Direito Penal em última ratio. Esta expressão significa que o Direito Penal deve ser utilizado apenas quando nenhum outro ramo do Direito consiga solucionar a situação problema.
A honra está tutelada no Código Penal em seus artigos 138, 139 e 140. Trata-se de um bem jurídico disponível, podendo ser dispensada a tutela penal quando houver o consentimento válido do ofendido.
Ademais, somando-se a tudo isso, como já foi explicitado, não houve a recepção Constitucional dos delitos contra a honra, vez que, em nenhum momento, a CF/88 considerou que a ofensa à honra poderia ser sancionada penalmente. A omissão, nesse caso, deve ser interpretada negativamente, ou seja, a Constituição, ao deixar de referir-se às penas criminais, implicitamente, vedou-as.
Esperamos que o legislador atente para a desnecessidade da manutenção da criminalização dos crimes contra a honra, revogando-os explicitamente. Mas, enquanto aquele não o faz, que, nós, operadores do Direito, possamos cada vez mais tirar proveito dos institutos despenalizadores previstos na legislação extravagante, orientando as partes a efetuarem a composição civil dos danos, para, assim, garantirmos a eficácia do princípio da intervenção mínima do Direito Penal.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição Federal (1988) in Vade Mecum Acadêmico de Direito. Anne Joyce Angher (Org.). 8. ed. São Paulo: Rideel, 2009.
MOLINA, Antonio García-Pablos de. Criminologia. 3 ed. RT, 2000.
________. Criminologia. Uma introdução a seus fundamentos teóricos. Trad. e notas por Luis Flávio Gomes. São Paulo: RT, 1992.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005.
PACELLI, Eugenio. Curso de Processo Penal. 10 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008.
QUEIROZ, Souza Paulo. Do Caráter subsidiário do Direito Penal - lineamentos para um direito penal mínimo. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.