Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Polícia judiciária e Estado Democrático de Direito

Exibindo página 1 de 2
Agenda 20/09/2013 às 07:07

Analisam-se as funções exercidas pelo delegado de polícia e as prerrogativas por ele usufruídas no desempenho da atividade de investigação criminal.

Resumo: Neste artigo abordaremos alguns aspectos relacionados à Polícia Judiciária no atual Estado Democrático de Direito. Daremos enfoque às funções exercidas pelo delegado de polícia e as prerrogativas por ele usufruídas no desempenho da atividade de investigação criminal, destacando que referidas atribuições e prerrogativas visam dar plena eficácia às normas constitucionais que consagram direitos e garantias fundamentais e instrumentalizam a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana.

Palavras-chave: 1. Polícia Judiciária; 2. Estado Democrático de Direito; 3. Princípios constitucionais.


1 INTRODUÇÃO

Em uma abordagem contemporânea de processualística, o processo penal deve ser visto não como simples formalidade legal, mas sim como instrumento de efetivação de direitos fundamentais.

A investigação criminal, por sua vez, como parte integrante do sistema de persecução penal, também deve seguir nessa mesma linha, ganhando amplitude na efetivação de garantias constitucionais e desvelando-se como verdadeira ferramenta de proteção da dignidade humana.

Disso decorre a exclusividade da atividade investigativa nas mãos da Polícia Judiciária e as consequentes prerrogativas funcionais de que dispõem seus órgãos, tudo para que a investigação criminal transcorra de forma isenta e eficaz, impedindo que ocorra desequilíbrio no sistema acusatório vigente.


2 PRINCÍPIO DO DELEGADO DE POLÍCIA NATURAL

No sistema jurídico brasileiro, à Polícia Judiciária é atribuído o poder estatal de investigação criminal, conforme dispõe a Constituição Federal[1]. Os delegados de polícia de carreira são, portanto, os detentores da competência administrativa exclusiva para a presidência do inquérito policial e para a prática dos demais atos de polícia judiciária.

Dessa premissa constitucional decorre o princípio do delegado de polícia natural, corolário do princípio do devido processo legal, consistente na garantia do indivíduo de ser investigado por um delegado de polícia quando suspeito da prática de um ilícito penal, com observância da Constituição Federal e das regras previstas na legislação infraconstitucional.

Para Cezar Roberto Bitencourt (2007, p. 11)

A investigação criminal pelas Polícias Civis (federal e estaduais), como regra, é imposição do princípio da legalidade, sob a ótica administrativa, segundo o qual a Administração Pública somente poderá agir diante de texto de lei que a autorize. Ademais, é direito do cidadão e da sociedade saber, com antecedência, a quem incumbe investigar determinada infração penal, respaldado pela Constituição e pelas leis infraconstitucionais. Esse direito é decorrência natural da segurança jurídica, que deve ser preservada nos Estados Democráticos de Direito.

Decorrência lógica desse princípio também é a garantia do investigado de contar com uma atuação imparcial por parte do órgão investigador.

Levando em conta a atual sistemática constitucional, que alça o inquérito policial à posição de instrumento de proteção do indivíduo contra acusações infundadas, outorgando ao delegado de polícia a atribuição de tornar efetiva essa garantia, a esta autoridade também se estendem as hipóteses de suspeição e impedimento previstas no Código de Processo Penal para os magistrados e os órgãos auxiliares da Justiça[2].

Portanto, o artigo 107 do Código de Processo Penal[3], que veda a arguição de suspeição da autoridade policial, deve ser submetido a uma interpretação conforme a Constituição Federal de 1988, que impõe o entendimento de que em qualquer momento da investigação criminal pode ser suscitado o impedimento ou a suspeição do delegado de polícia para atuar naquele caso concreto, como forma de garantir uma atuação imparcial e resguardar os direitos fundamentais do investigado.


3 PRERROGATIVAS FUNCIONAIS

Para a correta aplicação do Direito no exercício das atividades de polícia judiciária, indispensável se mostra que o delegado de polícia disponha das mesmas prerrogativas funcionais inerentes às demais funções essenciais à Justiça, quais sejam: inamovibilidade, vitaliciedade, irredutibilidade dos vencimentos e independência funcional.

Não se pode admitir que os superiores hierárquicos, administrativamente constituídos, influenciem nas decisões tomadas pela autoridade policial no exercício das atividades de polícia judiciária, impondo-lhe determinações. A edição de recomendações para atuação uniforme dos órgãos é admissível, mas a influência direta nas decisões jurídicas é inconcebível, em face do desempenho de uma atividade que lida diretamente com a liberdade individual.

Por conta disso, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 35, de 03 de abril de 2012, que fez inserir no artigo 140 da Constituição do Estado de São Paulo o reconhecimento da carreira de delegado de polícia como jurídica, declarando a sua independência funcional no desempenho das atividades de polícia judiciária[4].

Consagrou-se, portanto, uma situação jurídica que a própria sistemática da Constituição Federal já havia consolidado: a de que o delegado de polícia ocupa a posição de agente político e que os órgãos que compõem a Polícia Judiciária exercem função essencial à administração da Justiça.

Na lição do saudoso mestre Hely Lopes Meirelles (1995, p. 198)

Agentes políticos são os componentes do Governo em seus primeiros escalões, para o exercício de atribuições constitucionais. Atuam com ampla liberdade funcional e possuem prerrogativas próprias, não estando sujeitos, em regra, a controle hierárquico, submetendo-se tão-somente aos limites constitucionais e legais estabelecidos. Exercem funções governamentais, judiciais e quase-judiciais, atuando com independência nos assuntos de sua competência. São remunerados por subsídio. São exemplos de agentes políticos os chefes do Poder Executivo e seus auxiliares diretos, os parlamentares, os magistrados, os membros do Ministério Público, os membros dos Tribunais de Contas e os representantes diplomáticos.

As prerrogativas funcionais da vitaliciedade e da inamovibilidade também se mostram imprescindíveis para o regular exercido das atividades de polícia judiciária. A primeira porque exige decisão judicial para perda do cargo e a segunda porque impede a remoção compulsória e injustificada da autoridade policial para proteger interesses daqueles que se veem ameaçados pela investigação criminal.

A Lei Federal nº 12.830/2013, que disciplina e investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia, reconhece uma espécie de inamovibilidade relativa da autoridade policial, permitindo sua remoção apenas por intermédio de ato administrativo fundamentado[5].

Infelizmente a vitaliciedade ainda não foi estendida aos delegados de polícia, perdendo o legislador a grande oportunidade de dar um passo além e imprimir maior eficácia e segurança jurídica ao inquérito policial.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Por outro lado, há necessidade, também, de que a instituição Polícia Judiciária passe a dispor de autonomia administrativa e financeira, haja vista a relevância da atividade desenvolvida por seus órgãos, pois lidam diretamente com o status libertatis e o status dignitatis do indivíduo.

Por isso, deve essa instituição ser afastada de qualquer ingerência política, para que não reste prejudicada a eficiência da investigação e não se corra o risco torná-la um instrumento voltado a fins pessoais ou puramente eleitoreiros.

Quiroga Lavié (apud MORAES, 2003, p. 497) ensina que um órgão com autonomia funcional e financeira é um órgão extrapoder, ou seja, não depende diretamente de nenhum dos Poderes do Estado, sendo que seus membros, para preservação dessa autonomia, não podem estar submetidos às determinações de nenhuma autoridade pública.

Especificamente em relação à autonomia financeira, Hely Lopes Meirelles (1995, p. 203) esclarece que se trata da

[...] capacidade de elaboração da proposta orçamentária e de gestão e aplicação dos recursos destinados a promover as atividades e serviços do órgão titular da dotação. Essa autonomia pressupõe a existência de dotações que possam ser livremente administradas, aplicadas e remanejadas pela unidade orçamentária a que foram destinadas. Tal autonomia é inerente aos órgãos funcionalmente independentes, como o são o Ministério Público e o Tribunal de Contas, os quais não poderiam realizar plenamente as suas funções se ficassem na dependência de outro órgão controlador de suas dotações orçamentárias.

Resta clara, portanto, a necessidade de se outorgar autonomia administrativa e financeira à Polícia Judiciária, com a atribuição de dotação orçamentária específica a ser gerida diretamente pela própria instituição. Só assim, a atividade de investigação criminal estaria isenta de qualquer interferência externa, consolidando a sua vocação garantista no atual Estado Democrático de Direito.

Nesse contexto, verifica-se que o posicionamento topográfico da Polícia Judiciária no texto constitucional não é o mais adequado. É que, atuando seus órgãos na persecução penal e auxiliando diretamente do Poder Judiciário, deveria esta figurar dentre as instituições que desempenham funções essenciais à Justiça, no capítulo reservado a elas pelo legislador constitucional.

Descabida é a argumentação de que a Polícia Judiciária compõe, exclusivamente, a estrutura da segurança pública do Estado. As funções exercidas pelos delegados de polícia são eminentemente jurídicas, como ressaltado anteriormente, e assim devem ser tratadas.

As instituições voltadas precipuamente à manutenção da ordem pública, agindo de forma preventiva e atuando na repressão imediata dos delitos, são componentes da estrutura de segurança pública do Estado e devem ser realmente tratadas em capítulo específico no texto constitucional.

Contudo, a Polícia Judiciária e os demais órgãos que atuam na persecução penal desempenham a função primordial de perseguir o criminoso até a final condenação, exercendo uma forma de repressão mediata guiada pelos princípios constitucionais fundamentais.

Não se nega aqui que a Polícia Judiciária também exerce papel relevante para manutenção da ordem pública, mas nem por isso se coloca na condição de órgãos de segurança pública, porque não lhe é afeta a missão de manter e restabelecer a ordem de forma imediata.

Importante destacar que buscamos exaltar aqui as qualidades do nosso sistema de persecução penal, em oposição a modelos alienígenas que se mostram deficientes, pois consolidamos no Brasil um sistema de controle mútuo que evita a concentração de poderes em um só órgão e minimiza o risco de torná-lo onipotente e arbitrário.

Roberto Maurício Genofre (2001, p. 9) bem sintetiza essa visão:

Não vemos a exclusão do Poder Judiciário na investigação policial como compatível com os preceitos maiores da legislação pátria, pois qualquer diminuição do sistema de controle e fiscalização nesta seara representa uma perda substancial na luta pela defesa dos direitos impostergáveis do cidadão. Acresça-se, também, a visão dos documentos internacionais (Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica, 1969; Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos – Nova Iorque, 1966; Carta dos Direitos Humanos da Assembléia Geral das Nações Unidas, 1992; Convenção sobre a Proteção dos Direitos dos Homens e das Liberdades Fundamentais – Roma, 1950) que Canotilho denomina de ‘direito internacional individualmente referenciado’, tendo por objetivo alicerçar uma nova definição de vinculariedade na proteção dos direitos do homem.

É com base nessas premissas democráticas que podemos estruturar um sistema de investigação criminal eficiente e que tenha por objetivo primordial tornar efetivo o princípio da dignidade da pessoa humana.


4 OBRIGATORIEDADE E INDISPONIBILIDADE DO INQUÉRITO POLICIAL

O artigo 5º do Código de Processo Penal dispõe que o inquérito será iniciado de ofício pelo delegado de polícia, ou em decorrência de requisição judicial ou oriunda do Ministério Público ou, ainda, por requerimento apresentado pela vítima ou seu representante legal[6].

O referido dispositivo legal traduz um preceito mandamental ao expressar que o “inquérito policial será iniciado”, impondo, assim, um poder-dever ao delegado de polícia de deflagrar o procedimento investigatório no momento que tomar conhecimento, por qualquer meio, de um fato supostamente criminoso e da existência de indícios mínimos de sua possível autoria.

Essa regra é decorrência lógica do princípio da obrigatoriedade da ação penal, extensivo à fase extrajudicial da persecução penal.

A discricionariedade do delegado de polícia durante a presidência do inquérito policial restringe-se, portanto, à análise jurídica do fato para formação de sua opinio delicti e à conveniência e oportunidade para a prática de determinados atos de investigação, no que tange ao momento e à sua forma de execução.

Não há discricionariedade, portanto, na instauração ou não de inquérito policial quando os elementos forem fortes o suficiente a indicar a prática de um ilícito penal, havendo indicativos mínimos de sua autoria.

Tudo isso nos leva a concluir que não há nenhum respaldo legal para adoção do chamado “procedimento de investigação preliminar”. O delegado de polícia, no desempenho de sua atividade jurídica, deve avaliar o fato levado ao seu conhecimento e verificar se existem indícios mínimos de que se trata de um ilícito penal e se também há algum indicativo sobre quem o tenha praticado.

Caso a autoridade tenha dúvida acerca da existência de alguma infração penal ou mesmo da autoria, poderá, no máximo, verificar direta e informalmente se há viabilidade para instauração do inquérito policial. Não pode existir procedimento investigatório distinto do inquérito, não previsto em lei e sem acompanhamento dos demais órgãos que atuam na persecução penal.

Não havendo, então, elementos suficientes a justificar a formalização da investigação, devido à atipicidade do fato, à ausência de punibilidade e/ou inviabilidade do procedimento, deve o delegado de polícia arquivar a notícia crime apresentada. Esse entendimento decorre da interpretação do próprio texto constitucional[7] (CF, art. 144, § 4º) e da redação dada ao artigo 4º do Código de Processo Penal, que atribuem ao delegado de polícia a função de presidir a apuração dos ilícitos penais e sua respectiva autoria.

Quando falamos em tipicidade, punibilidade e viabilidade, estamos tratando dos elementos que compõem o conceito de justa causa no processo penal. Desse modo, só existe justa causa para instauração do inquérito policial se há tipicidade do fato a ser apurado, se este fato é punível penalmente e se existe qualquer indicativo, por mais remoto que seja, do caminho a ser seguido para apuração de sua autoria.

Nesse sentido, totalmente inviável se mostra mobilizar toda estrutura de polícia judiciária para apurar um fato que nem ao menos em tese se apresente como criminoso, ou em que a punibilidade já esteja extinta ou, ainda, cuja autoria nem remotamente esteja indicada, pois levaria ao desvio de foco daqueles casos que apresentam possibilidade de esclarecimento, em prejuízo aos princípios da eficiência e da economia processual, que norteiam a atividade de persecução penal[8].

Por consequência lógica do que foi aqui abordado e em decorrência de disposição expressa do artigo 17 do Código de Processo Penal, vemos que incide na fase investigatória o denominado princípio da indisponibilidade, pois o inquérito policial instaurado não pode ser arquivado ex officio pelo delegado de polícia, devendo esta autoridade levá-lo a termo e remetê-lo a juízo para a apreciação do magistrado e do órgão do Ministério Público[9].


5 DISCRICIONARIEDADE NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

Discricionariedade não se confunde com liberdade absoluta, arbitrariedade ou abuso, mas se revelada como independência de atuação de uma autoridade pública dentro dos limites que lhe são impostos pelo Direito.

É importante frisar que o delegado de polícia, como agente político, detentor de independência funcional, dispõe de discricionariedade no desempenho de suas atividades de polícia judiciária. É livre para decidir juridicamente sobre as medidas a serem adotadas para apuração de um ilícito penal e sua respectiva autoria, valendo-se do arcabouço de normas que compõe o sistema jurídico.

Tomando conhecimento de um fato supostamente delituoso, por cognição direita, indireta ou coercitiva, deve o delegado de polícia efetivar a sua avaliação jurídica e formar a sua convicção, de forma livre e fundamentada, concluindo se realmente trata-se de um ilícito penal, se é caso de adoção de alguma providência de polícia judiciária e qual a medida processual a ser adotada naquele caso concreto.

A prisão cautelar formalizada no auto de prisão em flagrante só é possível de ser decretada diante da existência de estado flagrancial; já a instauração de inquérito policial ou lavratura de termo circunstanciado de ocorrência decorre da avaliação jurídica sobre a existência de justa causa para a deflagração da investigação criminal; e a elaboração de boletim de ocorrência, por se tratar de um documento administrativo voltado a formalizar a notícia-crime, só deve ocorrer nos casos em que o fato relatado caracterize, ao menos em tese, uma infração penal.

Sendo assim, cabe ao delegado de polícia, e somente a ele, de forma motivada e independente, decidir sobre a lavratura de auto de prisão em flagrante, a instauração de inquérito policial, a lavratura de termo circunstanciado de ocorrência e a elaboração de boletim de ocorrência, exercendo o seu poder discricionário de avaliação jurídica dos fatos que lhe são submetidos à apreciação.


6 EXCLUDENTES DE ILICITUDE E PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

Outro ponto de grande relevância a ser abordado neste artigo, e que enseja grande polêmica na comunidade jurídica, é o relativo à possibilidade de o delegado de polícia avaliar a incidência das excludentes de antijuridicidade e do princípio da insignificância na fase extrajudicial da persecução penal, deixando de autuar em flagrante ou de indiciar alguém que tenha praticado uma conduta sob o manto de uma descriminante ou um ato absolutamente irrelevante para o direito penal.

Existem aqueles que sustentam não ser possível essa análise jurídica pelo delegado de polícia, pois ensejaria um juízo de avaliação vertical dos elementos probatórias, com necessária invasão do mérito da causa, o que é atribuição exclusiva do juiz e não da autoridade policial.

Por outro lado, há os que defendem essa possibilidade, argumentando que ao delegado de polícia é atribuída a função de apurar as infrações penais e suas respectivas autorias, formando seu juízo de probabilidade sobre a prática do delito, atividade esta que passa necessariamente pela análise da presença dos elementos que compõem o conceito analítico de crime, quais sejam: tipicidade, ilicitude e punibilidade.

No desempenho desse múnus jurídico, cabe à autoridade policial formar a sua convicção sobre a existência ou não do ilícito penal e adotar as medidas processuais cabíveis, atuando de forma discricionária, balizada pelos ditames do Direito.

O Direito Penal é considerado a ultima ratio do sistema jurídico e tem seu campo de incidência limitado às graves lesões ou ameaças de lesões a bens jurídicos eleitos como os mais importantes para a sociedade, alçados a essa condição pelo núcleo fundamental da Constituição de um Estado.

Luigi Ferrajoli (2011, p. 69, tradução livre) destaca dez vetores axiológicos fundamentais que funcionam como limitadores do poder de punir do Estado em face do direito de liberdade do indivíduo. Dentre esses axiomas destacamos dois que diretamente guardam relação com o ponto tratado, são eles os princípios “da necessidade ou da economia do Direito Penal” e “da ofensividade ou da lesividade do evento”.

Na linha desse pensamento, o Estado só estaria autorizado a invadir a liberdade individual, valendo-se do Direito Penal, quando realmente fosse necessária essa interferência extrema, criminalizando apenas condutas graves que não possam ser retribuídas com a incidência de outros ramos do Direito, tornando penalmente relevantes, de forma subsidiária e fragmentária, apenas ofensas ou lesões que atinjam exacerbadamente os bens jurídicos protegidos.

Assenta-se nesse ponto a tese de existência de uma tipicidade material no Direito Penal, pautada na ideia de que somente as condutas que realmente atingem de forma grave o bem jurídico tutelado são passíveis de encontrar subsunção à norma penal incriminadora, caracterizando-se como um injusto penal.

Esse entendimento respalda a chamada teoria da tipicidade conglobante, desenvolvida por Eugenio Raúl Zaffaroni (2002, p. 392), para quem “[...] a conduta, pelo fato de ser penalmente típica, necessariamente deve ser também anti-normativa”.

Para essa teoria, a conduta só será considerada típica quando também se revelar ilícita. Portanto, a tipicidade estritamente legal mostra-se irrelevante penalmente, pois a simples subsunção de um comportamento aos elementos descritivos da lei penal não é suficiente para torná-lo típico, necessitando de uma análise de sua antijuricidade, a fim de encerar a chama tipicidade conglobante.

Sendo assim, as condutas praticadas sob o manto de uma excludente de ilicitude, por estarem em consonância com o ordenamento jurídico, em decorrência da existência de tipos permissivos legalmente previstos, não são penalmente típicas e não ensejam a responsabilização penal.

No mesmo sentido segue a interpretação sobre a aplicação do princípio da insignificância, pois não havendo tipicidade material na conduta daquele que pratica o “crime de bagatela”, impossível se mostra a sua responsabilização penal, por inexistência de injusto punível.

Esclarece Francisco de Assis Toledo (1999, p. 184) que

Welzel considera que o princípio da adequação social bastaria para excluir certas lesões insignificantes. É discutível que assim seja. Por isso Claus Roxin propôs, a introdução, no sistema penal, de outro princípio geral para a determinação do injusto, o qual atuaria igualmente como regra auxiliar de interpretação. Trata-se do princípio da insignificância, que permite na maioria dos tipos, excluir danos de pouca importância.

O delegado de polícia, ao avaliar uma conduta supostamente criminosa, deve exercer um juízo de tipificação material, levando em conta a relevância penal e a ilicitude do comportamento, aplicando, eventualmente, o princípio da insignificância e a teoria conglobante do tipo.

José Henrique Guaracy Rebêlo (2000, p. 45) esclarece que

[...] apesar de o artigo 17 do CPP determinar que a autoridade policial não pode mandar arquivar os autos do inquérito policial, os delegados de polícia paulista há muito vêm aplicando o Princípio da Insignificância. Queiroz sugere que a falta de amparo legal para a aplicação do princípio não invalida e nem compromete o comportamento da autoridade policial, uma vez que a insignificância é detalhe que se mede pelo conhecimento direto e imediato da realidade social do plantonista ou do titular da unidade policial, por dispor de condições jurídicas amplas de dimensionamento e de verificação do mal do processo em face do mal da pena. Portanto, a autoridade policial, que na solidão dos pretórios policiais compõe as partes em conflito, não age segundo ditames do direito alternativo, mas sim assentada no pragmatismo jurídico, sem ofensa ao ordenamento vigente, em comportamento que o coloca ao lado da Justiça e do Direito.

Portanto, concluindo que o fato sobre o qual incide uma excludente de ilicitude ou princípio da insignificância não pode ser visto como crime, por carecer de tipicidade material, pode o delegado de polícia deixar de autuar em flagrante ou indiciar alguém que tenha agido em legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito – mesmo que de forma putativa –, ou aquele que tenha praticado o chamado “crime de bagatela”.

Agindo dessa forma, a autoridade policial não estará promovendo o arquivamento da investigação, mas apenas deixando de instaurar o inquérito policial por ausência de justa causa e, nos casos em que decidir por instaurá-lo – em face da complexidade jurídica do fato –, estará deixando de realizar a prisão cautelar ou indiciar o suspeito, em face da inexistência de ilícito penal.

Também não se sustenta o argumento de que o delegado de polícia, nesses caos, estaria adentrando no mérito da causa e usurpando atribuição inerente ao poder jurisdicional; simplesmente está efetivando uma análise jurídica sobre a tipicidade do fato, para decidir sobre a aplicação da norma processual penal de forma a não violar direitos fundamentais do investigado e, por conseguinte, resguardar o princípio maior da dignidade da pessoa humana.

 

Sobre o autor
Emerson Ghirardelli Coelho

Delegado de Polícia do Estado de São Paulo, Mestrando em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Especialista em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo, Bacharel em Direito pela Universidade Paulista, Professor Universitário das Disciplinas de Direito Penal e Direito Processual Penal e Professor da Academia de Polícia Civil do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COELHO, Emerson Ghirardelli. Polícia judiciária e Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3733, 20 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25353. Acesso em: 22 dez. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!