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Famílias contemporâneas e as dimensões da responsabilidade

Agenda 15/10/2013 às 11:11

A responsabilidade na família é pluridimensional e não se esgota nas consequências dos atos do passado, que compreendem a tradicional construção da responsabilidade civil por danos, de natureza negativa.

SUMÁRIO: 1. Dimensões da responsabilidade em geral; 2. A concepção de responsabilidade em Hans Jonas; 3. A responsabilidade no direito em geral; 4. O padrão da culpa; 5. Perspectivas; 6. Responsabilidade no direito de família; 7. Do padrão da culpa para a responsabilidade nas relações de família; 8. Um exemplo paradigmático: responsabilidade pela convivência familiar; 9. Algumas situações em que se inscreve a responsabilidade nas relações familiares; 10. Futuras gerações como responsabilidade das famílias.

RESUMO: Parte-se da noção abrangente da responsabilidade e seu desenvolvimento no âmbito do direito, considerados os pressupostos de Hans Jonas, constitutivos da ética da responsabilidade. Demonstra-se a insuficiência da concepção individualista da culpa, em prol da responsabilidade vertida como obrigação de fazer. A responsabilidade na família é pluridimensional e não se esgota nas consequências dos atos do passado, que compreende a tradicional construção da responsabilidade civil por danos, de natureza negativa. Mais importante e desafiadora é a responsabilidade pela promoção dos outros e pela realização de atos que assegurem as condições de vida digna das atuais e futuras gerações, ou do que se tem a fazer, de natureza positiva.                                                       

1. DIMENSÕES DA RESPONSABILIDADE EM GERAL

A responsabilidade desponta como um dos mais importantes objetos de análise dos especialistas e aplicadores do direito, na atualidade. Sem responsabilidade não se pode assegurar a realização da dignidade da pessoa humana e da solidariedade.  Os três princípios são interdependentes.

            O termo “responsabilidade”, com os significados correntes, é relativamente recente, cujas controvérsias repercutem até hoje. Em nosso idioma, como obrigação de responder pelas ações próprias ou dos outros, surge em 1813, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, enquanto “responsabilizar”, no sentido de imputar responsabilidade a alguém, apenas em 1856. Essas são acepções claramente éticas e jurídicas. Todavia, costuma-se localizar a primeira referência, em 1787, na obra O Federalista, de Alexander Hamilton, com o significado político de “governo responsável”, exprimindo o controle dos cidadãos e o dever de transparência.  Em filosofia, o termo foi utilizado em controvérsias sobre a liberdade e acabou sendo útil principalmente aos empiristas ingleses, que quiseram mostrar a incompatibilidade de um juízo moral com a liberdade; é expressiva dessa contenção da responsabilidade – para favorecer a expansão da atividade econômica - a afirmação de Stuart Mill: “Os homens têm mais a ganhar suportando que os outros vivam como bem lhes parece do que os obrigando a viver como bem parece ao resto” (MILL, 1991, p. 56). Na linguagem comum, expressões como “pessoa responsável” ou “senso de responsabilidade” são conotadas com a consciência da previsão dos possíveis efeitos do próprio comportamento.

            Antes da difusão, a partir do século XIX, dos variados significados de responsabilidade, notadamente o que foi apropriado pelo direito, os autores valiam-se do termo “imputabilidade”, com o sentido de atribuição de uma ação a um agente, como sua causa. Assim é que se entende a afirmação feita por Platão, no Livro X de A República, de que cada qual é a causa de sua própria escolha, não podendo ser imputada à divindade. Todavia, esse significado é completamente diferente dos que foram e são vinculados a responsabilidade, na atualidade, que é a aptidão para ser responsável (o sujeito e não o ato).

            A experiência democrática contemporânea operou a interdependência entre liberdade e responsabilidade, ao contrário da disjunção liberal. Ou seja, não há liberdade sem responsabilidade, nem esta sem aquela.  Em outras palavras, quanto mais liberdade se conquista, com redução consequente do quantum despótico, mais responsabilidade se impõe a quem exerce aquela. A liberdade das famílias contemporâneas, assegurada pelo direito, encontra sentido e legitimidade na ética da responsabilidade.

            Vê-se, então, que a idéia de responsabilidade, desenvolvida nos últimos duzentos anos, não se volta apenas às consequências dos atos realizados no passado, mas se dirige, igualmente, à realização ética de deveres, voltados ao futuro. O governo responsável, o exercício responsável da liberdade pessoal e a previsão dos efeitos do próprio comportamento são exemplos dessas dimensões de futuro, ou do agir em conformidade com determinada “ética de responsabilidade”.

            A propósito da última afirmação, temos presente a conhecida distinção formulada por Max Weber entre ética da convicção e ética da responsabilidade (WEBER, 1992, p. 423s). Na ética da convicção o que conta é a boa intenção, ou a vontade moralmente boa, ou os princípios ideológicos, sem preocupação com os efeitos dos atos praticados. O político, ante a colisão entre suas convicções e as consequências de seus atos deve optar pela responsabilidade das segundas, com sacrifício das primeiras. Levada às últimas consequências, todavia, coincide com a tese maquiavélica de que os fins justificam os meios. Nos antigos, prevalecia a ética da convicção, como nos dá notícia Cícero da decisão da assembléia do povo de Atenas que optou por rejeitar a idéia de incendiar secretamente a frota dos lacedemônios, seus inimigos, porque era muito útil mas não era honesta (CÍCERO, 2002, p. 127). No plano das relações pessoais, que nos interessa neste estudo, melhor será que se encontre o ponto de equilíbrio entre convicção e responsabilidade, ponderando ou balanceando uma e outra em cada situação concreta. Sob as duas perspectivas, a ética da responsabilidade de Weber também é dirigida ao futuro, como padrão de conduta.

            Essa plurivalência da responsabilidade, principalmente no que diz com o comportamento desejado (futuro) e não com a reação ao comportamento danoso (passado), nos conduz a um dos mais instigantes pensadores contemporâneos, o filósofo alemão Hans Jonas.

2. A CONCEPÇÃO DE RESPONSABILIDADE DE HANS JONAS

            Em obra denominada O Princípio Responsabilidade, Hans Jonas sustenta que a responsabilidade esteve distanciada da ética antropocêntrica que marcou a modernidade, desde os teóricos fundadores como Descartes e Francis Bacon até os dias atuais: o homem é o centro e o fim, para o que a natureza seria meio a ser explorado e, se necessário, destruído. “A significação ética dizia respeito ao relacionamento direto de homem com homem, inclusive o de cada homem consigo mesmo; toda ética tradicional é antropocêntrica.” (JONAS, 2006, p. 35). Essa racionalidade estaria na base do descompromisso com o futuro, com as futuras gerações, agravado pela acumulação imensa de poder tecnológico de destruição. O homem não apenas se serve da natureza, mas pode destruí-la e, conseqüentemente, destruir a si próprio, comprometendo os que virão. “Nenhuma ética anterior vira-se obrigada a considerar a condição global da vida humana e o futuro distante, inclusive a existência da espécie.” (JONAS: 2006, p. 33).

Esses delicados aspectos, o da superação da ética antropocêntrica, o da subjetivação das futuras gerações e dos limites do poder, são tratados por Jonas sob o rigoroso conceito de responsabilidade positiva que vinculam o poder ou poderes fragmentados da sociedade, inclusive a família, e cada pessoa.

            Contrapõe ao conhecido imperativo categórico de Kant (“age de tal modo que a máxima de tua vontade possa valer sempre como princípio de uma legislação universal”), posto no centro da ética kantiana (KANT, 2003, p. 40), estoutro, mais apropriado ao novo tipo de sujeito atuante ou ao novo tipo de agir humano em nosso tempo: “aja de modo que a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra” (JONAS, 2006, p. 47), porque nós não temos o direito de escolher a não-existência de futuras gerações em função da existência da atual, ou mesmo de as colocar em risco.

            Para além da responsabilidade derivada de todo agir causal entre os seres humanos, que impõe a reparação dos danos causados (imposição formal), propugna por outra noção de responsabilidade que não concerne ao cálculo do que foi feito ex posto facto, “mas à determinação do que se tem a fazer; uma noção em virtude da qual eu me sinto responsável, em primeiro lugar, não por minha conduta e suas consequências, mas pelo objeto que reivindica meu agir” (JONAS, 2006, 167). Responsabilidade, por exemplo, pelo bem-estar dos outros, que considera determinadas ações não só do ponto de vista da sua aceitação moral, mas se obriga a atos que não têm nenhum outro objetivo.

Para Jonas, o poder se torna objetivamente responsável por aquele que lhe foi confiado. O exercício do poder (aí incluídos os poderes privados, como o “poder familiar”) sem a observação do dever é, então, “irresponsável”, ou seja, representa uma quebra da relação de confiança presente na responsabilidade. “Assim, aquilo que liga a vontade ao dever, o poder, é justamente o que desloca a responsabilidade para o centro da moral” (JONAS, 2006, p. 217).

Sob o ponto de vista do direito, a noção de Jonas de responsabilidade como determinação do que se tem a fazer se enquadraria como obrigação de fazer, ao lado da tradicional obrigação de reparar, que era o campo até então da responsabilidade civil negocial ou extranegocial. 

             No que concerne às famílias e ao direito de família, é interessante observar o papel central que Jones atribui à responsabilidade parental, considerada por ele, do ponto de vista temporal e da sua essência, o arquétipo de qualquer responsabilidade (e, além disso, na sua opinião, genericamente a origem de toda disposição para a responsabilidade, ou seja, a sua escola fundamental). “O objeto da responsabilidade parental é a criança como um todo e todas as suas possibilidades, e não apenas suas carências imediatas.” (JONAS, 2006, p. 180).

3. A RESPONSABILIDADE NO DIREITO EM GERAL

            A responsabilidade foi vertida ao direito percorrendo diferentes caminhos, notadamente após o advento do Estado liberal e da hegemonia do voluntarismo individualista, máxime ao longo do século XIX e início do século XX, após o que a consolidação do Estado social exigiu novas perspectivas. Esses dois momentos históricos recentes hospedaram as transformações da responsabilidade civil, da responsabilidade penal, da responsabilidade disciplinar; da responsabilidade dos administradores públicos; da responsabilidade distinta entre pessoa jurídica e seus membros.

            Na modernidade, a transformação mais aguda foi o da responsabilidade individual direta. Como lembra Pontes de Miranda houve a migração da responsabilidade coletiva, “segundo o parentesco e com ele variável nos diversos povos, ajustamento que não é sem interesse entre a extensão real da família, ou grupo, e sua responsabilidade” (MIRANDA, 1972, p. 10).

O Estado social – o estágio contemporâneo do Estado moderno, apesar da globalização e do neoliberalismo -  marcado profundamente pelas diretrizes de solidariedade e justiça social, provoca intensa alteração na concepção de responsabilidade, não só para torná-la mais objetiva mas também para inclusão de sujeitos vulneráveis no âmbito de proteção e, conseqüentemente, da responsabilização das pessoas físicas e jurídicas. De acordo com Wieacker, na limitação do conteúdo dos direitos subjetivos dos indivíduos manifesta-se o núcleo do Estado social: a responsabilização não apenas da sociedade, mas também do próprio indivíduo pela existência social e pelo bem-estar dos outros (WIEACKER, 1980, p. 624). Na legislação contemporânea do direito privado, como o ECA, o Estatuto do Idoso, a lei do bem de família legal, o Código de Defesa do Consumidor, a legislação do inquilinato, a responsabilização encontra sua expressão mais aguda na proteção dos sujeitos considerados vulneráveis.

A grande dicotomia da responsabilidade no direito situa-se entre a responsabilidade penal, voltada a infligir ao autor do mal uma pena, um sofrimento, e a responsabilidade civil, destinada a reparar o mal (CARBONNIER, 2000, p. 361). Com o passar do tempo, distinções como esta que pareciam indiscutíveis caíram em zona de penumbra. O campo da responsabilidade civil era o da reparação, havendo dano, enquanto o da responsabilidade penal era o da pena, ainda que não houvesse dano (a tentativa de homicídio, cujo dano não foi consumado, é crime, mas não gera responsabilidade civil, justamente pela ausência de dano). Atualmente, retoma-se com força a idéia de conjugação de reparação e de pena (punitive damages), na responsabilidade civil (principalmente em situações de danos morais), enquanto que no ilícito criminal cada vez mais assiste-se a substituição da pena de prisão por “penas alternativas”, de natureza civil, como obrigações de fazer ou obrigações de dar. Afirma-se que a condenação do responsável em uma pena civil não difere da condenação criminal de uma pena pecuniária (VINEY, JOURDAIN, 2001, p. 4).  

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O dano não é mais elemento nuclear do ilícito civil, pois pode estar em uma espécie (o ato ilícito, regido pelo art. 186 do Código Civil), e não estar em outra (o abuso do direito, regido pelo art. 187 do Código Civil). Pode haver ilícito civil sem culpa e sem dano (o abuso do direito referido), na composição de seu suporte fático. Pode haver, ainda, dano reparável sem ser proveniente de ilícito civil, ou seja, o fato que lhe causou é fato jurídico lícito (estado de necessidade: destruição de coisa a fim de remover perigo iminente, arts. 188, II, e 929 do Código Civil; ou danos causados pelos produtos postos em circulação por atividade empresarial lícita, art. 931 do Código Civil). São situações de responsabilidade civil ou imputabilidade sem ilicitude. O dano causado por fato lícito é reparável, mas não é ilícito, o que também torna dispensável o pressuposto de nexo de causalidade da responsabilidade civil (LÔBO, 2009, p. 322). 

A doutrina tradicional afirma categoricamente que sem dano efetivo não há responsabilidade civil. A idéia de reparação, que domina o direito da responsabilidade civil, orienta-se pelo que ocorreu no passado; é um remédio ao prejuízo já realizado (VINEY; JOURDAIN, 2001, p. 18). Ocorre que o Estado e o direito assumiram novas funções, incluindo as preventivas e de proteção, de modo a evitar danos, lançando mão principalmente de proibições de conduta, como a proibição de vendas de produtos, para o que a mera circulação ou exposição já constitui fato ilícito; nessas hipóteses, o dano não é requisito, mas conseqüência que pode ocorrer ou não, pois pode conter-se em obrigação de não fazer (retirar os produtos de circulação). Do mesmo modo, é mais útil prevenir o dano ao meio ambiente do que repará-lo, até porque, na maioria das vezes, é irreparável; daí o princípio de precaução. Nos direitos da personalidade, notadamente quanto aos atentados à honra, à intimidade, à imagem e à vida privada, é melhor impedir que sejam violados quando a ameaça ainda não foi consumada ou quando, consumada, ainda não alcançou maior âmbito de lesão; também, nessas hipóteses, o dano moral é irreparável, o que exigiu a construção de soluções que não se enquadram rigorosamente como reparação, como o direito de resposta (art. 5º, V, da Constituição), ou como compensação, ou satisfação da vítima.

A prevenção é, conseqüentemente, categoria que há de ser considerada na noção contemporânea de responsabilidade civil. Ao lado da responsabilidade curativa trilha a responsabilidade preventiva. A idéia não é nova, pois os romanos antigos já conheciam a instituição da cautio damni infecti, que protegia precisamente a vítima potencial de um dano ainda não consumado, mediante a imposição de medidas preventivas.

Os efeitos de ato ou atividade não contrários ao direito também pode ser objeto de responsabilidade, que não tem por finalidade a reparação, o que seria contradição nos termos. O exemplo frisante é o do § 2º do art. 225 da Constituição: “Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei”. A recuperação do meio ambiente degradado é o modo específico de responsabilidade civil, mediante obrigação de fazer. A degradação do meio ambiente teve causa lícita, necessária e inevitável, para que a atividade pudesse ser exercida. Ainda assim, a obrigação legal há de ser cumprida. Ninguém, em particular, é titular desse direito, pois é “de todos” (“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado” – art. 225 da Constituição), cujo inadimplemento leva à utilização de ação civil pública pelo representante processual adequado (Ministério Público, associação civil, entidade pública, OAB), que não age em nome próprio.

Cogita-se dos danos sociais, decorrentes de lesões à sociedade, no seu nível de vida, tanto por rebaixamento de seu patrimônio moral – principalmente a respeito da segurança – quanto por diminuição de sua qualidade de vida. Nesses casos, haveria indenização punitiva por dolo ou culpa grave (punitive damages), especialmente se os atos reduzem as condições coletivas de segurança, e de indenização dissuasória, para atos em geral da pessoa jurídica que trazem diminuição do índice de qualidade de vida da população. A pena civil visa a restaurar o nível social de tranquilidade diminuída pelo ato ilícito (AZEVEDO, 2004, p. 216-7).

4. O PADRÃO DA CULPA

No âmbito da responsabilidade civil, que mais interessa ao nosso tema, houve o progressivo distanciamento do requisito liberal e individualista da culpa, condicionante da ilicitude do evento danoso, para a imputação de responsabilidade a alguém, em virtude de certas situações, independentemente de culpa do responsável ou até mesmo quando exerce ato ou atividade lícitos. Alguns autores insistem em que a responsabilidade civil, no Brasil, continua sendo preferencialmente culposa, reservando-se a responsabilidade civil objetiva para situações excepcionais, que estejam explicitadas na lei. Partem da leitura equivocada do alcance do art. 186 do Código Civil de 2002, que não trata da responsabilidade civil e sim da caracterização do ato ilícito. Contudo, há responsabilidade civil causada por ato ilícito (culposo) e responsabilidade civil causada por outros fatos jurídicos não culposos ou mesmo lícitos. Quando o art. 931 do Código Civil estabelece a responsabilidade das empresas, pelos danos que o produto causou, dispensa o requisito da ilicitude e concentra-se no dano em si, que deve ser reparado. Antes, justamente pela ausência de contrariedade a direito, a lei não admitia a reparação desse dano, que se entendia inserido nos riscos da vida social, ou o preço a pagar pelo progresso econômico.

Indicação marcante do declínio do papel da culpa na responsabilidade civil é a trajetória da natureza da responsabilidade dos pais pelo danos causados por seus filhos. Durante o predomínio do individualismo liberal, cuja expressão jurídica no Brasil foi o Código Civil de 1916, responsáveis eram os pais quando a vítima conseguia provar a culpa por atos ou omissões deles. O ônus da prova era da vítima. Depois, a doutrina e a jurisprudência trilharam caminho adjacente, passando a considerar que a culpa era presumida, transferindo o ônus da prova para os pais, que poderiam demonstrar que não tinham agido com imprudência, negligência ou imperícia. Finalmente, o art. 933 do Código Civil de 2002 estabeleceu, sem restrições, a responsabilidade objetiva dos pais, que não podem mais alegar ausência de culpa, mas inexistência do dano ou de que seu filho não teria causado diretamente o dano, ou alguma hipótese de afastamento da responsabilidade, como a culpa exclusiva da vítima ou caso fortuito e força maior.

Outro ponto a destacar é que a imputabilidade, na evolução do direito, desligou-se da culpa e da causa da responsabilidade pelo ilícito   civil. No direito anterior da responsabilidade civil, de teor subjetivista, a imputabilidade estava vinculada à culpa. Imputável era o culpado. Se não fosse possível caracterizar a culpa do autor do ato ilícito ou de outra pessoa que a assumisse, então não se poderia cogitar de imputabilidade. Por consequência, a ausência de culpa levava à inimputabilidade, à irresponsabilidade e ao desaparecimento da própria ilicitude. No quadro atual do direito, imputabilidade é a aptidão de ser civilmente responsável, independentemente de culpa.  A imputabilidade, nos dias atuais, diz respeito à atribuição de responsabilidade pelo dano, independentemente de ter havido culpa ou participação no evento (exemplo, empregador pelo fato danoso do empregado). É simplesmente imputação de responsabilidade patrimonial. Deslocou-se da causa do dano para os efeitos do dano, máxime com o crescimento das hipóteses de responsabilidade que têm na origem atos e atividades lícitas. Assim, não mais a imputabilidade está relacionada à capacidade delitual do agente, ou capacidade para praticar ilícito, salvo para os atos ilícitos referidos no art. 186 do Código Civil. O ato cometido pelo menor absolutamente incapaz, contrário a direito, é ilícito civil, ainda que ele pessoalmente seja inimputável; a imputabilidade é objetivamente trasladada para seus pais, que não participaram ou mesmo não sabiam do evento.

5. PERSPECTIVAS

Houve verdadeira implosão dos pressupostos e requisitos da responsabilidade civil construída pelo liberalismo jurídico, e que pode ser denominada doutrina tradicional. Contrariando esta, surgiram, então, responsabilidade sem culpa, responsabilidade por causa lícita, responsabilidade preventiva, responsabilidade sem dano efetivo. Novos conceitos foram difundidos para conformação da responsabilidade civil na contemporaneidade: danos não patrimoniais, medidas preventivas, atividade, risco, sanção civil ou indenização punitiva, primazia da vítima, proteção, preservação, novos sujeitos de direito, consolação ou satisfação da vítima no lugar de reparação.    

Se a culpa, o risco, o ato ilícito, o dano efetivo, o nexo de causalidade e a reparação não constituem pressupostos ou requisitos abrangentes de todas as hipóteses de responsabilidade civil, o que há de comum ou nuclear, ou seja, o que se encontra presente em todas elas? Apenas a imputação da responsabilidade a alguém em face de determinado fato lícito ou ilícito gerador de obrigação extranegocial. Não são mais determinantes a licitude ou ilicitude do fato gerador, a existência ou não de dano real, a possibilidade ou não de reparação, a equivalência da reparação em razão da extensão do dano, o nexo causal entre determinado fato e o dano, a culpa do agente.  

Esse quadro, aparentemente inseguro, abre amplas possibilidades para a reconfiguração da responsabilidade no direito privado que abranja tanto as obrigações decorrentes de fatos passados (consequências negativas ou repressivas), principalmente quando geradores de danos, quanto as obrigações de fazer em virtude de situações e posições jurídicas (consequências positivas ou promocionais). Neste ponto, fazemos uma releitura por aproximação da distinção proposta por Norberto Bobbio entre sanções coercitivas, para os comportamentos indesejados, e sanções promocionais, para os comportamentos desejados (BOBBIO, 1977, passim), que caracterizariam o ordenamento jurídico contemporâneo.

A afirmação dos direitos fundamentais, notadamente no mundo ocidental, duramente conquistada contra os despotismos de todos os matizes, de certa forma obliterou a compreensão dos consequentes deveres fundamentais, onde se insere a noção alargada de responsabilidade de cada pessoa humana. O predomínio exclusivo dos direitos fundamentais oponíveis ao Estado ou das liberdades públicas, de caráter negativo, apenas faz sentido em uma visão de mundo individualista e antropocêntrica, na qual o Estado, a sociedade e a natureza são apenas tolerados quando favorecem a realização individual. Os deveres fundamentais são necessariamente transindividuais, pois têm como destinatários a outra pessoa humana, a coletividade e os meios de vida digna das atuais e futuras gerações, implicando fins e futuridade. A reciprocidade é a tônica dos deveres fundamentais, pois cada pessoa humana é responsável pela outra, e ela é também responsabilidade das outras.

6. A RESPONSABILIDADE NO DIREITO DE FAMÍLIA

                        A responsabilidade na família é igualmente pluridimensional e não se esgota nas consequências dos atos do passado, de natureza negativa. Mais importante e desafiadora é a responsabilidade pela promoção dos outros integrantes das relações familiares e pela realização de atos que assegurem as condições de vida digna das atuais e futuras gerações, de natureza positiva. A família, mais que qualquer outro organismo social, carrega consigo o compromisso com o futuro, por ser o mais importante espaço dinâmico de realização existencial da pessoa humana e de integração das gerações.

            O problema delicado da responsabilidade nas relações de amor ou de afeto, do ponto de vista da ordem moral (e jurídica) já tinha sido enfrentado por Kant, para ressaltar sua relação com a liberdade. Para ele o amor enquanto inclinação não pode ser ordenado, mas o bem-fazer por dever, mesmo que a isso não sejamos levados por nenhuma inclinação e até tenhamos aversão, “é amor prático e não patológico, que reside na vontade e não na tendência da sensibilidade” (KANT, 1986, p. 30), e pode ser ordenado.

Já vimos como Hans Jonas considera a responsabilidade parental como arquétipo de toda responsabilidade, no sentido positivo que emprega. Pois, ao desafio – “mostre-nos pelo menos um exemplo no qual ocorra a coincidência entre o “existe” e o “deve-se” – podemos apontar para a mais familiar das visões: o recém-nascido, cujo simples respirar dirige um “dever” irrefutável ao entorno, o de dele cuidar (JONAS, 2006, p. 220).

A paternidade e a maternidade lidam com seres em desenvolvimento que se tornarão pessoas humanas em plenitude, exigentes de formação até quando atinjam autonomia e possam assumir responsabilidades próprias, em constante devir.  Não somente os pais, mas também todos os que integram as relações de parentesco ou grupo familiar. Nesta linha, o art. 227 da Constituição impõe à família, em sentido amplo, e bem assim à sociedade e ao Estado, deveres em relação à criança e ao adolescente concernentes à preservação da vida, à saúde, à educação familiar e escolar, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, à liberdade, e à convivência familiar. Por seu turno, o art. 229 da Constituição estabelece que os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores. Esse complexo enlaçamento de deveres fundamentais existe pelo simples fato da existência da criança e do adolescente, sem necessidade de ser exigível por estas. Basta a situação jurídica da existência, do nascer com vida.

A viragem copernicana da assunção de deveres fundamentais em face da criança resulta de sua emersão como sujeito de direitos próprio. A responsabilidade com sua formação integral, em respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento, é muito recente, na história da humanidade. A concepção então existente de pátrio poder era de submissão do filho aos desígnios quase ilimitados do pai; a criança era tida mais como objeto de cuidado e correção do que como sujeito próprio de direitos. Fora da família, a criança era tida como menor em condição irregular. No Brasil, a viragem, decorrente da difusão internacional da doutrina de proteção integral da criança, concretiza-se com o advento da Constituição de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990. De objeto a sujeito chega-se à responsabilidade e aos deveres fundamentais.

Ainda com relação aos filhos, a supressão ou limitação dos direitos dos havidos fora do casamento legitimavam a irresponsabilidade. Os filhos ilegítimos, que marcaram o direito de família brasileiro, até 1988, não podiam sequer ser reconhecidos juridicamente pelos pais, na legislação anterior. E, assim, a responsabilidade natural era vedada pela lei, inexistindo direitos e deveres. Diferentemente da noção ética de responsabilidade contemporânea, a liberdade era dela dissociada; livre era o genitor do filho ilegítimo e, conseqüentemente, irresponsável.

A mudança radical em prol da responsabilidade, faz ressaltar a importância da ressignificação do poder familiar como autoridade parental, que deixou de ser um conjunto de competências atribuídas ao pai, para converter-se em conjunto de deveres de ambos os pais no melhor interesse do filho, principalmente da convivência familiar. O poder familiar deixou de ser um conjunto de competências do pai ou dos pais sobre os filhos para constituir um múnus, em que ressaltam os deveres, a que não se pode fugir. Passou a ser “ofício finalizado à promoção das potencialidades criativas dos filhos” (PERLINGIERI, 1997, p. 258), onde não é possível conceber um sujeito subjugado a outro.

Outros sujeitos vulneráveis nas relações existenciais e de família estão emergindo, reclamando proteção da família, do Estado e da sociedade, como o idoso. São deveres assemelhados aos conferidos historicamente à criança, mas com singularidades afetas aos que estão na curva final da vida e que já contribuíram para o desenvolvimento da sociedade. Se na criança os deveres voltam-se a assegurar sua formação, no idoso são essencialmente de amparo. Em comum, os deveres com a vida, a saúde, o lazer, a cultura, a convivência familiar e, principalmente, com sua dignidade.

A união estável é outro exemplo na direção da responsabilidade positiva no direito de família. Jogada na vala comum das relações concubinárias, a irresponsabilidade imposta aos companheiros pelo direito apenas foi atenuada com a construção doutrinária e jurisprudencial da sociedade de fato. Retirada das sombras da ilegalidade e convertida em entidade familiar resultou em assunção de responsabilidades igualitárias dos companheiros, que passaram a ser sujeitos recíprocos de direitos e deveres de natureza material e moral.

7. DO PADRÃO DA CULPA PARA A RESPONSABILIDADE POSITIVA NAS RELAÇÕES DE FAMÍLIA

O distanciamento do padrão da culpa, para a conformação da responsabilidade, é mais acentuado no direito de família contemporâneo. A culpa, em virtude de sua moral individualista, é incompatível com o princípio da solidariedade familiar, cujo traço tem sido destacado pela doutrina atual. As diretrizes do direito de família não são mais informadas pela punição de condutas; têm por finalidade, essencialmente, a promoção da dignidade e da solidariedade entre os integrantes das relações familiares, de seus deveres recíprocos, de modo mais objetivo possível, condicionando a noção de responsabilidade, que é forçosamente positiva, para cônjuges, companheiros, pais, filhos, parentes.

A responsabilidade civil por danos, nas relações de família, tem função residual. Não tem por causa a constituição, o desenvolvimento ou a dissolução da relação familiar. Seu efeito é indireto e, portanto, regido pelas regras comuns da reparação dos danos, que ocorreria independentemente dessa relação. Por essa razão, a responsabilidade civil dos pais pelos danos causados por seus filhos encontra-se tratada no direito das obrigações, no Código Civil, apenas no que interessa à imputabilidade objetiva.

A responsabilidade civil por danos não é intrinsecamente de direito de família, mas de direito civil em geral: a ofensa física e a ofensa moral devem ser objeto de reparação civil segundo as regras comuns e não em razão do exercício de direito. Por exemplo, qualquer pessoa tem direito de se divorciar diretamente; se antes do divórcio houve danos materiais ou morais de um cônjuge contra outro, ou se os atos cometidos por cônjuge ou companheiro lesarem direitos da personalidade do outro, nada há que diferencie da responsabilidade civil comum. A pretensão e a ação pela reparação do dano têm fonte na ofensa em si e não na dissolução do casamento ou da união estável. O pedido de dissolução resulta de exercício de direito, que em si não configura dano reparável.

Mesmo nas hipóteses das causas subjetivas ou culposas para a separação judicial, mantidas no Código Civil de 2002, a ocorrência de qualquer delas não constitui dano reparável. São causas que possibilitam a separação judicial, mas não necessariamente se confunde com evento causador de dano. Se dano material ou moral houve, então cai-se na regra comum da responsabilidade civil geral.

O Código Civil estabelece deveres comuns para os cônjuges e para os companheiros, de natureza mais ética que jurídica. Quais as sanções para sua violação? Nenhuma, diretamente, como se vê nos arts. 1.566 e 1.725: são normas jurídicas sem sanção direta. Na tradição da culpa, havia consequências indiretas, relacionadas a supressão de direitos do culpado pela separação, em relação à guarda dos filhos, aos alimentos, à partilha dos bens, ao uso do nome. Essas restrições odiosas, que encobriam a ideologia religiosa da indissolubilidade do casamento, foram gradativamente suprimidas da legislação. No Código Civil de 2002, deixaram de existir em relação à guarda dos filhos, pois independentemente de culpa ou violação dos deveres conjugais ela é atribuída ao que ofereça as melhores condições para exercê-la (art. 1.584); em relação aos alimentos, são devidos ao cônjuge culpado, em valor indispensável a sua sobrevivência (art. 1.704); a partilha dos bens não é afetada pela existência de culpa; o direito a usar o sobrenome do outro cônjuge é assegurado quando sua perda acarretar prejuízo para a identificação ou dano (art. 1.578).

8. UM EXEMPLO PARADGMÁTICO: RESPONSABILIDADE PELA CONVIVÊNCIA FAMILIAR

Tradicionalmente, a culpa pela separação dos pais determinava a guarda exclusiva. O culpado ficava relegado ao direito de visita, como punição, revelada na restrição à convivência com o filho. No direito contemporâneo, a convivência converteu-se em direito e dever fundamentais de intensa reciprocidade, no sentido de relação afetiva desimpedida, de contato e de acesso: direito amplo do filho de conviver com o genitor com quem não resida e, reciprocamente, do genitor com seu filho.

O direito à convivência familiar não se esgota na chamada família nuclear, composta apenas pelos pais e filhos. O Poder Judiciário, em caso de conflito, deve levar em conta a abrangência da família considerada em cada comunidade, de acordo com seus valores e costumes. Na maioria das comunidades brasileiras, entende-se como natural a convivência com os avós e, em muitos locais, com os tios, todos integrando um grande ambiente familiar solidário. Consequentemente têm igualmente fundamento nos deveres da convivência familiar as decisões judiciais que asseguram aos avós o direito de visita a seus netos (LÔBO, 2009b, p. 52).

    A convivência familiar é direito-dever de contato e convívio de cada pessoa com seu grupo familiar. É direito porque pode ser exercido contra quem o obsta, seja o Estado, o grupo familiar, o grupo social ou até mesmo outro membro da família. É dever porque cada integrante do grupo familiar, ou cônjuge, ou companheiro, ou filho, ou parente está legalmente obrigado a cumpri-lo, além da família como um todo, ou, ainda, a sociedade e o Estado. É dever de prestação de fazer ou de obrigação de fazer, configurando responsabilidade em sentido positivo.

No direito infraconstitucional brasileiro, o direito à convivência familiar está radicado em diversas fontes. No Código Civil, o princípio se expressa na alusão do art. 1.513 à não interferência “na comunhão de vida instituída pela família”. A Convenção dos Direitos da Criança, no art. 9.3, estabelece que, no caso de pais separados, a criança tem direito de “manter regularmente relações pessoais e contato direto com ambos, ao menos que isso seja contrário ao interesse maior da criança”.  O art. 19  do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece que deve ser assegurada à criança e ao adolescente a “convivência familiar e comunitária”. O art. 3º do Estatuto do Idoso, por sua vez, estabelece que é obrigação da família, da sociedade e do Estado assegurar ao idoso, com prioridade, a efetivação da convivência familiar. 

9. ALGUMAS SITUAÇÕES EM QUE SE INSCREVE A RESPONSABILIDADE NAS RELAÇÕES FAMILIARES

            a) As relações familiares hauridas da convivência familiar duradoura ou constituídas por laços afetivos, fora da consangüinidade, têm recebido proteção legal crescente, importando assunção de responsabilidades. A socioafetividade é conceito em expansão, com reflexos positivos nas decisões judiciais. No que respeita à filiação, o direito brasileiro contempla três modalidades para além da origem biológica: a adoção, a posse de estado de filho e a concepção mediante inseminação artificial heteróloga. Nestas hipóteses, o estado de filiação é inviolável e não pode ser desfeito por decisão judicial, salvo na situação comum de perda do poder familiar (art. 1.638 do Código Civil). A responsabilidade parental é idêntica à resultante da filiação biológica. Pai, com todas as dimensões sociais, afetivas e jurídicas que o envolvem, não se confunde com genitor biológico; é mais que este.

            O art. 1.593 do Código Civil enuncia regra geral que contempla a socioafetividade em geral, ao estabelecer que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem”. Essa regra impede que o Poder Judiciário apenas considere como verdade real a biológica. Assim os laços de parentesco na família (incluindo a filiação), sejam eles consangüíneos ou de outra origem têm a mesma dignidade e submetem-se às mesmas regras de responsabilidade.

            b) A responsabilidade por alimentos que decorre da relação de família ou da relação de parentesco conjuga obrigações de dar e de fazer. Responsável é o cônjuge, companheiro ou parente que possa suportar o sustento material do outro, em comprovada necessidade. Os alimentos podem decorrer, ainda, da exigibilidade do dever de amparo cujo titular do direito é o idoso (art. 230 da Constituição e Estatuto do Idoso). O descumprimento dos deveres jurídicos de sustento, assistência ou amparo faz nascer a pretensão e a correlativa obrigação de alimentos, de caráter pessoal.

           

            A responsabilidade e a consequente obrigação exsurgem da situação jurídica criada com o parentesco ou a união, por imposição legal de solidariedade; somos parentes, somos responsáveis uns com os outros. Os alimentos já foram concebidos como imposição do dever de caridade, de piedade ou de consciência, contendo-se nos campos moral e religioso. A grande família, com filhos numerosos e agregados, era a única segurança de amparo aos que não estavam no mercado de trabalho, especialmente os menores e os idosos. No século XX, com o advento do Estado social, organizou-se progressivamente o sistema de seguridade social, entendendo-se ser de inarredável política pública, com os recursos arrecadados dos que exercem atividade econômica, a garantia de assistência social, de saúde e de previdência. Mas a rede pública de seguridade social não cobre a necessidade de todos os que necessitam de meios para viver, especialmente as crianças e os adolescentes, mantendo-se os parentes e familiares responsáveis por assegurar-lhe o mínimo existencial, especialmente quando as entidades familiares se desconstituem ou não chegam a se constituir (LÔBO, 2009b, p. 348).

c) É do Estado-legislador a responsabilidade por garantir a tutela jurídica às relações existenciais afetivas, como já fez explicitamente com a união estável e com as famílias monoparentais. Nessa direção é o Projeto de Lei nº 2285, de 2007, da Câmara dos Deputados. É responsabilidade do Estado-juiz dar efetiva aplicabilidade à norma de inclusão do art. 226 da Constituição, relativamente às entidades familiares constitucionalmente implícitas, sempre que se comprovar convivência familiar duradoura e pública, consolidada na afetividade.

Como tivemos oportunidade de dizer alhures, os tipos de entidades familiares explicitados nos parágrafos do art. 226 da Constituição são meramente exemplificativos, sem embargo de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. As demais entidades familiares, socialmente reconhecidas, são tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência do conceito amplo e indeterminado de família indicado no caput. Como todo conceito indeterminado, depende de concretização dos tipos, na experiência da vida, conduzindo à tipicidade aberta, dotada de ductilidade e adaptabilidade (LÔBO, 2002, p. 45). Assinale-se, ante a responsabilidade do Estado pela tutela da dignidade da pessoa humana, que a proteção da família é proteção mediata, ou seja, no interesse da realização existencial e afetiva das pessoas. Não é a família per se que é constitucionalmente protegida, mas o locus indispensável de realização e desenvolvimento da pessoa humana. Sob o ponto de vista do melhor interesse da pessoa, não podem ser protegidas algumas entidades familiares e desprotegidas outras, pois a exclusão refletiria nas pessoas que as integram por opção ou por circunstâncias da vida, comprometendo a realização do princípio da dignidade humana.

 d) Independentemente da preservação das relações familiares socioafetivas, impõe-se a responsabilidade do Estado, da sociedade, dos genitores biológicos por assegurar o conhecimento da origem genética dos filhos cujo parentesco decorre de outras origens. Com relação ao filho havido por adoção, a Lei 12.010, de 2009, que introduziu profundas modificações no modelo de adoção, estabelece que o “adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos”. Como se vê, na sequência do que a doutrina contemporânea brasileira já enunciava, o direito ao conhecimento da origem genética não tem propósitos de impugnar ou modificar o parentesco constituído pela adoção, que é definitivo;  sua natureza é de direito fundamental ou direito da personalidade, que tutela a pessoa em si.

e) Nota-se crescente distanciamento da responsabilidade das famílias com a formação de suas crianças, transferindo para terceiros, principalmente a escola, seu indeclinável dever de educação integral. Sabe-se, desde os antigos, que a formação da pessoa envolve três ambientes fundamentais: a casa, a escola e o espaço público. É a integração entre espaço privado e espaço público que os gregos antigos denominavam paideia, para diferençar de pedagogia, que fazia parte daquela. A complexidade da vida contemporânea, o mundo do trabalho e os imensos territórios das cidades fazem com que os pais dediquem menos tempo aos filhos, transferindo inclusive a absorção de valores e da compreensão do mundo para a escola e a rua.

A noção de educação, para fins da responsabilidade na família,  é a mais larga possível. Inclui a educação escolar, a formação moral, política, religiosa, profissional, cívica que se dá em família e em todos os ambientes que contribuam para a formação do filho, como pessoa em desenvolvimento. Ela inclui, ainda, todas as medidas que permitam ao filho aprender a viver em sociedade. A educação ou formação moral envolve a elevação da consciência e a abertura para os valores. O art. 205 da Constituição enuncia que a educação “direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Por seu turno, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei n. 9.394, de 1996, estabelece em seu art. 1° que a educação “abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”. Apenas a conjugação família-escola permite cumprir plenamente tais deveres e alcançar os fins legais.

10. FUTURAS GERAÇÕES COMO RESPONSABILIDADE DAS FAMÍLIAS

A Constituição (art. 225) impõe ao Estado e à coletividade do dever de defender e preservar o meio ambiente, “para as presentes e futuras gerações”. Essa responsabilidade, que é de todos, não é algo distante, inatingível ou mero discurso retórico; é tarefa não somente do Estado, não somente da sociedade; é tarefa, sobretudo, da família, que integra a coletividade, pois afinal diz respeito à continuidade de cada grupo familiar. Futura geração é a geração que vem a seguir à atual no grupo familiar. Não há mais qualquer dúvida que a existência humana só é possível se incorporarmos a natureza à ética da responsabilidade.

Não é fácil superar o antropocentrismo que nos séculos anteriores ficou enraizado como lugar comum: a natureza existiria para servir ao homem, que pode modificá-la, “domá-la”, destruí-la se julgar necessário. Nunca o homem acumulou tamanha competência tecnológica e poder de destruição como na atualidade. Nunca se chegou tanto aos limites das reais condições de vida boa, inclusive para as atuais gerações. Os recursos naturais da terra e as possibilidades de produção de alimentos não seriam suficientes se toda a população mundial pudesse desfrutar do modo de vida das famílias dos países mais ricos, pautado no desperdício, no consumo excessivo de energia e nos níveis assustadores de poluição.

As “futuras gerações”, aludidas no art. 225 da Constituição, são investidas como sujeitos de direito, que não existem fisicamente. São sempre “futuras”, pois a expectativa é que a população não se extinga. Como contrapartida ao direito desses sujeitos de direito, as atuais gerações têm o dever jurídico de preservação do meio ambiente, para quando as futuras gerações vierem. Nesses casos de sujeitos de direito coletivos, o ordenamento jurídico legitima órgãos públicos ou entidades para que promovam a defesa, inclusive judicialmente, desses direitos e interesses, como representantes processuais adequados. Esses representantes, como o Ministério Público ou uma associação, não são titulares do direito, mas titulares de legitimação para sua defesa. As famílias, sujeitas como estão aos deveres de preservação, são igualmente sujeitos passivos.

O objeto da responsabilidade positiva e promocional são as outras pessoas humanas, atuais e futuras, o que não mais se consegue isolando-as do meio ambiente em que vivem e viverão e das reais condições de vida digna.


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Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), Professor Emérito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Foi Conselheiro do CNJ nas duas primeiras composições (2005/2009).︎ Membro fundador e dirigente nacional do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎ Professor de pós-graduação nas Universidades Federais de Alagoas, Pernambuco e Brasília. Líder do grupo de pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (UFPE/CNPq).︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Famílias contemporâneas e as dimensões da responsabilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3758, 15 out. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25363. Acesso em: 21 nov. 2024.

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