4. Os Argumentos contrários à Judicialização.
O crescimento da Judicialização do direito à saúde tem encontrado resistência da União, Distrito Federal, Estados e Municípios, notadamente em razão da necessidade de realocação de recursos públicos para atender às decisões judiciais que determinam o fornecimento de determinado fármaco, tratamento ou procedimento cirúrgico.
Alegam os entes estatais, que tal procedimento tem ocasionado descompasso nas contas públicas, tanto em razão de não estarem previstas em prévias dotações orçamentárias, como pelo fato de alcançarem cifras muito altas, o que, por vezes, estaria causando desequilíbrio no direcionamento dos próprios recursos destinados à saúde.
Diversos outros argumentos também são utilizados para combater a Judicialização, vista como perniciosa pela Administração Pública, no intuito de impedir que o Poder Judiciário possa deferir determinações concretas contra o Estado. Dentre elas destacam-se a ausência de solidariedade entre os entes estatais na consecução do direito à saúde; a invasão do Poder Judiciário nas esferas de atribuição exclusiva do Poder Executivo; a necessidade de previsão orçamentária prévia para que se realize a correspondente despesa na área da saúde pública; a reserva do possível como balizadora da impossibilidade de concessão de medidas judiciais que acarretem ônus financeiro ao Estado; os quais serão analisados a seguir.
4.1. A ausência de solidariedade entre os entes estatais na consecução do direito à saúde.
Um dos principais argumentos utilizados por aqueles que ajuízam ações judiciais relativas à saúde é o de que a obrigação estatal, nessa área, é solidária – lastreada na existência de um sistema único de saúde –, cabendo à União, Distrito Federal, Estados e Municípios, de forma individual ou conjunta, a responsabilidade por arcarem com o cumprimento das decisões judiciais que reconhecem o direito do postulante.
Por sua vez, os entes estatais defendem a ideia de que essa solidariedade não existe, uma vez que o sistema de saúde, embora único, estabelece, de acordo com os artigos 16, 17 e 18 da lei 8.080/90[4], atribuições distintas para União, Distrito Federal, Estados e Municípios, possibilitando que cada um deles, dentro de suas esferas, possam cumprir os mandamentos constitucionais de forma mais eficiente.
Dessa forma, caberia à União a gestão e financiamento do sistema único de saúde, aos Municípios a prestação direta dos serviços médicos e aos Estados e Distrito Federal o financiamento e, em caráter suplementar aos Municípios, a execução de ações e serviços em saúde.
Por tal razão, não seria possível postular judicialmente a condenação solidária de dois ou mais entes, devendo o requerente discriminar qual o ente da Federação estaria legitimado a atender ao seu interesse processual.
Ocorre, no entanto, que a divisão administrativa das tarefas dos entes estatais, junto ao Sistema Único, é meramente burocrática com vistas à facilitação e coordenação dos serviços em saúde, destinando-se a uma melhor gestão desse sistema.
Além disso, verifica-se dos próprios dispositivos legais atinentes (artigos 16, 17 e 18 da lei 8.080/90), uma vasta rede de atribuições deveras confusa e que, por vezes, entrelaça as mais diversas competências administrativas entre os três entes federativos. Não de outro modo, é comum que cada ente atribua ao outro determinada tarefa que, em tese, lhe competiria. As normas, portanto, não são claras e põem os próprios entes estatais em conflito.
Não se mostra consentâneo com o disposto no artigo 196 da Constituição Federal, até porque aludido dispositivo enaltece o dever estatal à saúde de forma ampla, que se restrinja a obrigação estatal em prol de uma pretensa divisão administrativa de funções.
As delimitações de competência administrativa traçadas pela lei 8.080/90, portanto, destinam-se a garantir uma melhor gestão do Sistema Único, não servindo como empecilho a uma efetiva prestação de um serviço de saúde, tendo, assim, seu enquadramento destinado muito mais à organização interna desse próprio sistema.
Outrossim, tratando-se de um “Sistema Único” a inoperância de um determinado ente federativo não pode conduzir à ausência de responsabilização dos demais, pois estar-se-ia minorando a importância do direito à saúde, erigido a direito fundamental social, rechaçando-se a determinação constitucional que prevê a sua garantia da forma mais ampla possível.
Analisando o teor dessa distribuição de competências, João Agnaldo Donizeti, Samantha Ferreira e André Evangelista de Souza (2007, p. 18/19) afirmam:
Não obstante essa divisão administrativa, o Poder Judiciário brasileiro vem se posicionando no sentido de que a responsabilidade pelo fornecimento de medicamentos é solidária entre as três esferas de poder, independentemente das atribuições/divisões administrativas ditadas pela legislação infraconstitucional.
(…)
Tal posicionamento traduz a ideia de que a repartição de atribuições havida entre as três esferas de Poder não pode ser imposta em detrimento do direito à saúde titularizado pelo cidadão.
Embora essa solidariedade seja defendida, predominantemente, sob o argumento de que o direito à saúde, enquanto direito fundamental, deve prevalecer sobre os demais, também é possível sustentá-la com base na hierarquização de fixação de atribuições.
E ratificando essa assertiva, verifica-se que a jurisprudência nacional majoritária entende que a responsabilidade é solidária entre os entes federativos[5], tendo em vista a essencialidade do direito à saúde.
O argumento atinente à ausência da solidariedade entre União, Estados e Municípios, quando se fala em direito à saúde, portanto, consiste em estratagema voltado à dilação processual, não podendo servir como substrato para se negar vigência a tal direito, o qual deve prevalecer sobre quaisquer divisões de competências administrativas junto ao Sistema Único de Saúde.
Ademais, não haveria qualquer lógica em se criar um sistema único em que as atribuições de cada um dos entes federativos estivesse estabelecida de modo individualizado e estanque.
Eventuais percalços quanto a quem efetivamente deve cumprir a decisão judicial, ou a quem deva custear determinado tratamento ou medicamento, deve ser resolvido, internamente, pelos próprios entes federativos, não havendo que se erigir tais percalços a óbices quanto à real concretização de um direito de matiz constitucional.
4.2. A invasão do Poder Judiciário nas esferas de atribuição exclusiva do Poder Executivo.
O segundo argumento utilizado pela União, Distrito Federal, Estados e Municípios em desfavor da Judicialização do direito à saúde, é o de que ao adentrar nessa área estaria o Poder Judiciário a se imiscuir nas esferas de atribuição do Poder Executivo, abnegando os preceitos constitucionais atinentes à tripartição das funções estatais, previsto no artigo 2º da Constituição Federal[6].
Uma vez que o Poder Judiciário profira decisão que determine a compra de um medicamento ou mesmo de um tratamento não ordinariamente previsto, estaria invadindo a reserva de competência do Poder Executivo em ditar as políticas públicas, atuando como legislador ordinário.
A separação dos poderes ou funções estatais, baseada nas lições do Barão de La Brède e de Monstesquieu, fundamenta-se no reconhecimento da fragilidade do ser humano, quando concentra sob sua esfera um grande plexo de atribuições, uma vez que o governante tende a extrapolar critérios de razoabilidade, impondo a satisfação de sua vontade e interesses pessoais acima dos interesses coletivos, o que ocorreu principalmente nos Estados Absolutistas.
O próprio Barão de La Brède e de Monstesquieu (2009, p. 86) afirmou:
Existe em cada Estado três espécies de poderes: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e o executivo das que dependem do direito civil.
Pelo primeiro, o príncipe ou o magistrado faz leis por certo tempo ou para sempre e corrige ou ab-roga as que estão feitas. Pelo segundo, faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece a segurança, previne as invasões. Pelo terceiro pune os crimes ou julga as querelas dos indivíduos. Chamar-se-á este último o poder de julgar e, o outro, simplesmente o poder executivo do Estado. […]
Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade, pois pode-se temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas estabelecem leis tirânicas para executá-las tiranicamente.
Não haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse ligado ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor.
Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos.[...]
Por tal razão, convencionou-se, ao longo do tempo, por dotar o Estado de um aparelhamento equilibrado, onde as diversas funções pudessem ser exercidas por personagens distintos, evitando-se a indicada concentração do exercício do poder.
Outrossim, a divisão não se afigura estanque, uma vez que as funções correlacionam-se, muitas vezes cabendo a determinado “Poder” incumbir-se de atribuições pertencentes a outro e ao mesmo tempo exercer o controle sobre os demais, no que se denomina de sistema de freios e contrapesos.
A atuação do Poder Judiciário, nessa senda, mostra-se plausível e aceitável quando se verifica a omissão dos demais Poderes da República em concretizar o direito à saúde assegurado pelo texto constitucional.
A Judicialização, portanto, não parte de um premissa puramente intervencionista lastreada em um interesse escuso do Poder Judiciário em assumir uma função que não lhe cabe, mas de resguardar a ordem jurídica em consonância com a sua típica função jurisdicional.
É importante ressaltar, ademais, que a atuação do Poder Judiciário, nas demandas relativa à saúde decorre de expressa provocação do interessado, em típica análise de um caso concreto posto à apreciação, em estreita consonância, portanto com o disposto no art. 5º, inciso XXXV, do testo constitucional: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Nesse contexto, são salutares as lições de João Agnaldo Donizeti, Samantha Ferreira e André Evangelista de Souza (2007, p. 10):
Um dos argumentos relacionados com a implementação de políticas públicas por determinação do Poder Judiciário é a de que tal medida fere de morte o princípio da separação dos poderes, argumento este com o qual, diga-se de passagem, não concordamos. Explica-se.
A implementação de políticas públicas por determinação judicial não representa invasão de poderes nem ofensa à Constituição Federal, pois realizada dentro das peculiaridades do caso concreto e lastreada na dignidade da pessoa humana, ou seja, pela necessidade de preservação do núcleo essencial dos direitos fundamentais, em que se inserem os chamados direitos de subsistência, quais sejam, saúde, moradia, educação e alimentação. Além disso, é preciso reconhecer que a atividade implementadora do Poder Judiciário não lhe autoriza criar políticas públicas, mas apenas implementar as já existentes.
Essa atuação do Poder Judiciário, aliás, por mais paradoxal que isso possa parecer, permite uma correta leitura – e até mesmo uma confirmação – da regra da separação dos poderes, pois no sistema de “freios e contrapesos” que essa regra encerra, é cabível ao judiciário controlar os abusos (seja por ação ou por omissão) dos demais poderes no exercício de suas competências
E, de forma idêntica, Augusto Vieira Santos de Brito (2012, p. 3) ressalta:
Não obstante esteja o princípio da separação dos poderes inserido no rol das cláusulas pétreas, ele não é absoluto. Ao contrário, é facilmente mitigado quando posto na balança da ponderação juntamente com outros princípios constitucionais, a exemplo da vida, de onde se origina o direito à saúde. A conclusão pela relatividade deste princípio decorre da regra hermenêutica da Máxima Efetividade das Normas Constitucionais, segundo a qual estas devem ter a mais ampla efetividade social. Utiliza-se também o princípio hermenêutico da Concordância Prática, que veda a possibilidade de um princípio anular os efeitos de outro quando em rota de colisão, devendo-se aproveitar o máximo da efetividade de cada um deles.
Não se pode deixar de reconhecer que as decisões judiciais relacionadas ao direito à saúde causam impactos para o Poder Executivo, interferindo em políticas públicas nessa seara. No entanto, verifica-se que tal atividade só é e deve ser exercida diante de uma omissão, em que reste sobejamente comprovado a inobservância de um preceito constitucional, mormente quando tal preceito, no presente caso, detém aplicabilidade direta e imediata.
Pensar de forma diversa, seria tolher qualquer possibilidade de manifestação do Poder Judiciário na implementação de direitos e garantias fundamentais, atribuindo-se ao Poder Executivo uma inimaginável prerrogativa de império, sem amarras, sem controle.
Nesse mesmo sentido, o voto do Ministro do STF, Celso de Melllo, no Agr na SS n. 3.724/CE ratifica:
É certo - tal como observei no exame da ADPF 45/DF - Rel. Min. CELSO DE MELLO (Informativo/STF n. 345/2004) – que não se inclui, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário – e nas desta Suprema Corte, em especial – a atribuição de formular e implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, p. 207, item n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo.
Impende assinalar, contudo, que a incumbência de fazer implementar políticas públicas fundadas na Constituição poderá atribuir-se, ainda que excepcionalmente, ao Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, como sucede na espécie ora em exame.
Mais do que nunca, Senhor Presidente, é preciso enfatizar que o dever estatal de atribuir efetividade aos direitos fundamentais, de índole social, qualifica-se como expressiva limitação à discricionariedade administrativa.
Isso significa que a intervenção jurisdicional, justificada pela ocorrência de arbitrária recusa governamental em conferir significação real ao direito à saúde, tornar-se-á plenamente legítima (sem qualquer ofensa, portanto, ao postulado de separação de poderes), sempre que se impuser, nesse processo de ponderação de interesses e de valores em conflito, a necessidade de fazer prevalecer a decisão política fundamental que o legislador constituinte adotou em tema de respeito e de proteção ao direito à saúde.
Em outra análise, devem ser prestados pelo Estado não apenas aqueles serviços públicos garantidos em atos normativos, mas também todos aqueles inerentes à preservação da saúde e da vida dos indivíduos. A concretização do direito à saúde deve ser realizada em seu grau máximo, não estando adstrita unicamente às políticas públicas oficiais que, em última análise, além de não serem observadas em sua integralidade, são ineficientes e incompletas, deixando de prover procedimentos há muito tempo já padronizados em outros países.
Essa omissão do Poder Executivo, portanto, não pode ser ignorada pelo Poder Judiciário, a quem cabe, através da função jurisdicional, o último resguardo do texto constitucional.
4.3. A necessidade de previsão orçamentária prévia para que se realize a correspondente despesa na área da saúde pública.
Estabelece a Constituição Federal, nos artigos 165 e seguintes, a necessidade de fixação de diretrizes orçamentárias para o Estado, tendo precipuamente dupla finalidade: estipular o dimensionamento e execução das receitas e despesas, permitindo uma melhor organização da atividade estatal, além de possibilitar o controle da atividade financeira dos Poderes.
Segundo José Afonso da Silva (1998, p. 701) o orçamento público consiste no:
(…) processo e o conjunto integrado de documentos pelos quais se elaboram, se expressam, se aprovam, se executam e se avaliam os planos e programas de obras, serviços e encargos governamentais, com estimativa de receita e fixação das despesas de cada exercício financeiro
Nesse sentido, Antônio Carlos da Cunha Gonçalves (2010, p. 1) ratifica:
Um orçamento, em contabilidade e finanças, é a expressão das receitas e despesas de um indivíduo, organização ou governo, relativamente a um período de execução determinado. Deriva do processo de planejamento da gestão, onde se deve estabelecer objetivos e metas materializados em um plano financeiro, isto é, contendo valores em moeda, para o devido acompanhamento e avaliação da gestão.
Não é apenas a mera fixação de receitas visando o pagamento de certas despesas, mas sim o direcionamento das receitas públicas para cumprimento das diversas finalidades estatais, atribuindo verbas a cada uma das diversas dotações orçamentárias, desdobrando-se cada uma delas em vários elementos de despesas, atendendo ao princípio da transparência orçamentária e possibilitando a fiscalização e o controle eficiente dos gastos públicos pelo Legislativo.
A própria Constituição Federal, em seu art. 167[7], determina que, em regra, as despesas públicas devam ser precedidas da correspondente fonte de custeio, estando inseridas na lei orçamentária anual.
Por tal razão, argumentam os entes federativos que a concessão de medidas judiciais, que acarretem despesas na área da saúde pública, estariam desregrando a atuação financeira do Estado, em virtude do descompasso entre receitas e despesas, o que ocasionaria verdadeiro caos na gestão administrativa, impossibilitando que o Estado possa cumprir as suas demais atribuições constitucionais.
Não se pode deixar de reconhecer que a grande quantidade de ações judiciais relativas ao direito à saúde, com a concessão de medidas que acarretam ônus financeiro ao Estado, certamente contribuem para o desequilíbrio do orçamento, uma vez que são criadas despesas não previstas, obrigando o administrador público a realocar recursos.
Ocorre, no entanto, que se está diante da colisão de dois direitos de cunho constitucional: o direito à saúde e o direito ao orçamento público equilibrado.
Conquanto ambos os direitos guardem relevância, há de se atentar que o direito à saúde, considerado em seu aspecto social, detém maior importância – por todo o seu contexto: ligação com o direito à vida, direito de cunho fundamental e essencial à própria noção de existência do Estado – quanto à imutabilidade do orçamento público.
Além disso, por mais que se possa desejar um orçamento que seja fidedigno aos ditames da lei orçamentária anual, as vicissitudes da vida impõem que aludido orçamento sempre seja revisto e adaptado, não consistindo, portanto em peça estanque, desprovida de mutabilidade.
A prevalência do direito à saúde, portanto, se impõe, exigindo-se que as diretrizes orçamentárias sejam adaptadas à realidade oriunda da Judicialização, sob pena de se estar sufragando um direito de caráter fundamental em detrimento de uma suposta organização financeira do Estado.
Nesse sentido, dispõe Fernando Aith (2010, p. 231):
Embora os argumentos econômicos sejam importantes, é fundamental ter em mente o fato de que o sentido do direito sanitário é oferecer uma nova visão jurídica sobre o tema, segundo a qual a vida e a saúde são os bens jurídicos maiores a ser protegidos. Entre a saúde do indivíduo e o equilíbrio orçamentário do gestor, deve o Judiciário sempre optar pela vida e pela saúde.
Os argumentos econômicos bradados não servem para afastar a possibilidade do cidadão de recorrer ao Poder Judiciário sempre que julgar que seu direito à saúde está sendo violado. E o Judiciário, quando tiver que decidir uma causa sobre o tema, haverá sempre de considerar os valores da vida e da saúde antes de verificar questões orçamentárias.
Nesse ponto, é importante ressaltar que diante de interesses econômicos secundários ou de interesses eleitorais, não se furta o administrador público, hodiernamente, a efetuar quaisquer adaptações ou alterações do orçamento público, o fazendo com singela simplicidade e celeridade, sem que maiores discussões sejam travadas a esse respeito.
Então, se não há limites para alteração do orçamento nesses casos, também não há como refutar a necessidade de alteração na hipótese em que se concretiza um direito de caráter fundamental.
Em salutar escólio, sobre tais aspectos, João Agnaldo Donizeti, Samantha Ferreira e André Evangelista de Souza (2007, p. 11) afirmam:
É evidente que estamos diante de normas em colisão, cujos textos - cada qual - envolvem aspectos constitucionais que interferem diretamente na utilização dos recursos pelo Estado e, claro, na melhoria da qualidade de vida das pessoas. A aplicação dos recursos orçamentários pelo Poder Público é, na verdade, uma verdadeira ciência a ser estudada por diversos ramos do conhecimento como a economia, a sociologia, a matemática e o próprio Direito.
Este, aliás, tratou do tema, em âmbito constitucional, nos arts. 165 a 169, prevendo, inclusive, situações de realização de despesas que excedam os créditos orçamentários (art. 167, inc. II), além da possibilidade de transposição, o remanejamento ou a transferência de recursos de uma categoria de programação para outra ou de um órgão para outro, sem prévia autorização legislativa (art. 167, inc. VI).
Vê-se, portanto, que o problema não é de ausência de normas a disciplinarem a forma de gastar do Poder Público. O problema talvez seja mais de gestão administrativa do que propriamente jurídico-constitucional. A verdade é que o Poder Público arrecada muito, porém, também gasta muito, e muito mal, por sinal.
Portanto, a limitação orçamentária não pode ser óbice a impedir a concretização do direito fundamental à saúde pelo Poder Judiciário que, na bela lição do Min. Celso de Mello, quando se vir dividido “entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da República (art. 5º, caput e art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, (…) impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humana (Pet. 1.246-SC e RE-AgR 393175).
4.4. A reserva do possível como balizadora da impossibilidade de concessão de medidas judiciais que acarretem ônus financeiro ao Estado.
O argumento mais utilizado pela União, Estados e Municípios para refutar a Judicialização do direito à saúde é, sem dúvida, o da teoria da reserva do possível.
Consoante Ricardo Augusto Dias da Silva (2010, p. 188/189):
O princípio da reserva do possível teve sua origem na Alemanha, relacionada às decisões proferidas pela Corte Constitucional Federal da Alemanha, as quais tiveram como fundamentação as limitações de ordem econômica que podem comprometer sobremaneira a plena implementação dos direitos sociais, ficando a satisfação destes direitos na pendência da existência de condições materiais de seu atendimento. (…)
Na direção da conformação dogmática da reserva do possível formulada na Alemanha, foi sedimentando-se o entendimento de que os direitos sociais prestacionais estão condicionados à existência de recursos para que o Estado, através de políticas os implementem através de prestações positivas.
A limitação de recursos financeiros para a consecução dos desideratos da Administração Pública é, objetivamente, um dado concreto, que resulta em fator restritivo dos desejos humanos.
A teoria da reserva do possível tem por base essa acepção, ao partir do pressuposto de que a limitação de recursos conduz à restrição de atendimento de um dado direito social. Com base, portanto, em critérios matemáticos, segundo aludida teoria, não se pode exigir que o Estado, desprovido de maiores expedientes financeiros, possa se responsabilizar pela implementação ou zelo dos direitos sociais.
Aludida teoria vem sendo indiscriminadamente utilizada no Brasil para explicar a ausência ou inefetividade de políticas públicas sociais, as quais dependeriam da aposição de novos recursos para serem efetivadas.
Tal argumento – a necessidade de fortalecimento do “caixa” – também serve de fundamento para a ampliação da arrecadação, com a majoração ou criação de novos tributos, bem como, para servir de substrato para a redução de direitos sociais e individuais, o que vem acontecendo não apenas no Brasil, mas em diversos outros países, diante da alegação da existência de alguma “crise financeira”.
No entanto, a teoria da reserva do possível não se exaure em si própria, dependo, para a sua confirmação – uma vez que não é meramente abstrata – que se comprove, de forma empírica, que a escassez de recursos atua como fator impediente à efetivação de políticas públicas na área da saúde, principalmente diante da importância de aludido direito, como já salientado.
Dispondo sobre a dicotomia entre a reserva do possível e o direito à saúde, Ingo Wolfgang Sarlet e Mariana Filchtiner Figuiredo ( 2008, p. 217/218) expõem:
(…) não se poderá desconsiderar que o direito à saúde, como os demais direitos fundamentais, encontra-se sempre e de algum modo afetado pela assim designada reserva do possível em suas diversas manifestações, seja pela disponibilidade de recursos existentes (que abrange também a própria estrutura organizacional e a disponibilidade de tecnologias eficientes) e pela capacidade jurídica (e técnica) de deles se dispor (princípio da reserva do possível). Por outro lado, a garantia (implícita) de um direito fundamental ao mínimo existencial opera como parâmetro mínimo dessa efetividade, impedindo tanto omissões quanto medidas de proteção e promoção insuficientes por parte dos atores estatais, assim como na esfera das relações entre particulares, quando for o caso. Em outras palavras e apenas retomando aqui o que já havia sido anunciado, em matéria de tutela do mínimo existencial (o que no campo da saúde, pela sua conexão com os bens mais significativos para a pessoa) há que reconhecer um direito subjetivo definitivo a prestações e uma cogente tutela defensiva, de tal sorte que, em regra, razões vinculadas à reserva do possível não devem prevalecer como argumento a, por si só, afastar a satisfação do direito e exigência do cumprimento dois deveres, tanto conexos quanto autônomos, já que nem o princípio da reserva parlamentar em matéria orçamentária nem o da separação dos poderes assumem feições absolutas. Nesta linha de entendimento, além de significativa doutrina, também já se tem pronunciado a jurisprudência, inclusive no âmbito do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.
A discussão acerca da reserva do possível, desse modo, não pode ser tão apenas acadêmica, mas deve estar relacionada à real capacidade financeira do Estado, demonstrando-se, ainda, que a distribuição de recursos públicos é eficiente e guarda razoabilidade com a importância dos setores (educação, saúde, infraestrutura, publicidade) cujo investimento é disponibilizado.
Deve o Estado, nesse sentido, em um processo que busca a satisfação de um direito relacionado à saúde, demonstrar através de planilhas contábeis, que o interesse do postulante não pode ser deferido sem que se comprometa a capacidade dos entes federativos. Não basta, assim, apenas se alegar a teoria da reserva do possível, como usualmente se faz, mas sim comprová-la, denotando a sua relevância.
Nesse contexto George Marmelstein (2008, p. 318) afirma:
Apesar de a reserva do possível ser uma limitação lógica à possibilidade de efetivação judicial dos direitos socioeconômicos, o que se observa é uma banalização no seu discurso por parte do Poder Público quando se defende em juízo,
sem apresentar elementos concretos a respeito da impossibilidade material de se cumprir a decisão judicial.
Por isso, as alegações de negativa de efetivação de um direito econômico, social e cultural com base no argumento da reserva do possível devem ser sempre analisadas com desconfiança. Não basta simplesmente alegar que não há possibilidades financeiras de se cumprir a ordem judicial; é preciso demonstrá-la. (…)
Assim, o argumento da reserva do possível somente deve ser acolhido se o Poder Público demonstrar suficientemente que a decisão causará mais danos do que vantagens à efetivação de direitos fundamentais. Vale enfatizar: o ônus da prova de que não há recursos para realizar os direitos sociais é do Poder Público. É ele quem deve trazer para os autos os elementos orçamentários e financeiros capazes de justificar, eventualmente, a não-efetivação do direito fundamental”
Tanto os Estados, Distrito Federal e a União, dificilmente farão tal comprovação, uma vez que os gastos em áreas não prioritárias – em atendimento muitas vezes a políticas de interesses privados – são relevantes, demonstrando que tais entes federativos poderiam melhor equacionar a disponibilização de recursos para a saúde pública.
Em relação aos municípios, no entanto, a reserva do possível, por vezes, poderá ser devidamente comprovada, uma vez que vários deles foram criados de forma irresponsável, sem efetiva preocupação com o lastro econômico. Boa parte dos 5561 municípios não dispõem sequer de numerário suficiente para arcar com gastos ordinários com pessoal. Nesse ponto, assaz importante ressaltar a sapiência do legislador constituinte responsável pela criação de um sistema único de saúde, em que a responsabilidade dos entes estatais, como vista alhures, é solidária, garantido que o aludido direito seja concretizado quando da impossibilidade ou inoperância de um ou de alguns deles.
Noutro passo é necessário entender que o Brasil – embora se propale a ausência de recursos e a existência de déficits públicos – é um dos países mais ricos do mundo, atualmente detendo a 6ª economia do globo[8].
Não se está a falar, portanto, de um país periférico ou pobre, o que denota que a teoria da reserva do possível, ao menos por aqui, possui cunho mais ideológico do que empírico.
Cabe salientar que de toda essa riqueza gerada pelo país (do Produto Interno Bruto - PIB), cerca de 36% é destinada especificamente ao Governo[9], sem que grandes benefícios sociais – especialmente os de saúde – sejam disponibilizados à população, em razão dos baixos investimentos em saúde pública (o Brasil é um dos países que menos investe em saúde na América Latina[10]), pela ineficiência ou desvio fraudulento dos gastos realizados nessa área, como pela utilização de recursos em áreas não prioritárias (realização de festividades, publicidade institucional, compra de veículos de luxo oficiais, dentre tantos outros).
Além disso, de acordo com Ricardo Augusto Dias da Silva (2010, p. 190):
Sucede ainda que costumeiramente nem sempre o Estado cumpre o estabelecido na lei orçamentária, quando muito aplicando o percentual mínimo constitucionalmente estabelecido em relação à saúde e educação, destacando-se ainda na peça orçamentária a figura do “remanejamento” conferido ao Executivo, que não raro é gentilmente autorizado pelo Legislativo em elevado percentual (há casos de 40%) para usar de discricionariedade nas alocações de recursos em áreas que também ficará ao nuto do gestor Público estabelecer e da maneira que bem lhe aprouver, inclusive contrárias ao interesse público (...)
E Marlon Alberto Weichert (2010, p.135-136) sintetiza:
Em conclusão, a reserva do possível exige a demonstração de ser impossível ao Estado cumprir seu dever, por absoluta limitação e inexistência de meios. Não é admissível a frustração de direitos fundamentais mediante o subterfúgio da inviabilidade econômica, especialmente enquanto os governos e demais instituições públicas não cumprirem exaustivamente com suas responsabilidades mínimas de probidade, boa governança e igualdade material na distribuição dos encargos e serviços do Estado. Da mesma forma, esse argumento é incapaz de justificar o descumprimento de deveres estabelecidos há mais de duas décadas e cujo adimplemento não coloca em risco a viabilidade financeira do Estado.
(...)
A sociedade brasileira, portanto, tem condições e razões para exigir maior amplitude e qualidade dos serviços públicos de saúde, até mesmo a assistência integral. Não é legítimo, na atual conjuntura econômica, política e social, elidir a responsabilidade estatal com fundamento na cláusula da reserva do possível. Por esse motivo, a Justiça brasileira não tem sido sensível a meros argumentos de ordem econômica para negar ações de pedido de assistência médica e farmacêutica gratuita pelo Estado.
Em verdade, conquanto os recursos naturalmente sejam limitados, no Brasil até hoje não foi dada prioridade à saúde pública, não havendo como, pelos argumentos acima expostos, falar-se em limitação financeira substancial que venha a impedir a concretização desse importante direito social.
Aparentemente, o problema do direito sanitário fundamenta-se na má gestão dos recursos financeiros disponíveis e do próprio sistema único de saúde, razão pela qual, de forma geral, a teoria da reserva do possível não encontra aptidão para rechaçar a concretização judicial do direito à saúde.