Sumário: 1. Introdução: lançando novos olhos sobre o novo – 2. A Reclamação nº 4.335/AC e a tese da mutação constitucional do art. 52, X, da CRFB/1988 – 3. Abstratalização do controle de constitucionalidade e fatores reais de poder – 4. Texto e norma, hermenêutica da faticidade e hermenêutica filosófica – 5. Concluindo: o Estado Democrático de Direito e a sua incompatibilidade com posturas discricionárias – 6. Bibliografia
Resumo: A atuação democrática de juízes e tribunais no paradigma atual do direito é uma exigência incontornável. Esse trabalho pretende contribuir para as discussões acerca da interpretação do direito, elegendo como mais apropriada para essa tarefa a hermenêutica de cunho filosófico, assim como dá relevo as relações institucionais entre Legislativo e Judiciário nesse contexto.
Abstract:The democratic role of judges and courts in the current law’s paradigm is an inescapable requirement. This paper aims to contribute to the discussions on law’s interpretation, electing philosophical hermeneutics as the most appropriate current for this task, as well emphasizes the institutional relationship between legislature and judiciary in this context.
Palavras-chave:Direito Constitucional – Mutação Constitucional – Democracia – Hermenêutica Filosófica – Atuação Democrática do Judiciário.
Keywords:Constitutional Law – Constitutional Mutation – Democracy –Philosophical Hermeneutics – Judiciary Democratic Role.
1.Introdução: lançando novos olhos sobre o novo
Desde a promulgação da Constituição-Cidadã, há quase vinte e cinco anos atrás, muita coisa mudou (para melhor) no Brasil. Sobre isso já foram escritos rios de tinta. Pra esse novo ambiente brasileiro, Paulo Bonavides[1] identificou o grande desiderato (não cumprido e desprestigiado em contextos anteriores) da nova Carta: a efetivação dos direitos ali consagrados – sendo certo que alguns desses direitos já constavam, formalmente, em documentos anteriores, podendo-se dizer que a CRFB/1988 é resultado da concentração de direitos angariados no curso da história jurídica brasileira e do acréscimo de outros mais novos, como aqueles marcados pela nota da transidividualidade (direitos do consumidor, direito ao meio ambiente equilibrado, etc.).
De fato, nosso texto constitucional não se acanhou em reconhecer tais falhas do passado, bastando um breve lançar de olhos aos seus dispositivos iniciais para perceber qual o norte estabelecido para a democracia restaurada.[2]
Sem dúvidas, as promessas estampadas na nova ordem constitucional demandam uma nova maneira de tratar as questões, sejam elas políticas, sociais, econômicas ou jurídicas, cada qual com suas especificidades. No que tange ao campo jurídico, que nos interessa no presente,[3]não é possível satisfazermo-nos com categorias dogmáticas consectárias de um modelo positivista que desconhece os desafios proporcionados por demandas advindas de conflitos transindividuais, ou seja, aqueles em que Tício, Caio e Mévio não são os únicos protagonistas, mas sim coletividades.[4]
O problema é que, a despeito de consideráveis avanços, principalmente através da produção acadêmica,[5] ainda tropeçamos no passado. Veja-se, como forte evidência, o que foi feito do mandado de injunção, fonte de grandes esperanças no novo paradigma constitucional, sub-aproveitado pela prática jurídica.[6]Na AP 470 (o famoso mensalão), o crime de evasão de divisas, em que dois réus eram acusados, foi desconsiderado através de uma... Circular do Banco Central! Ou seja, descriminalizou-se uma conduta por Circular. Percebe-se, nesses casos, a persistente dificuldade de compreensão do instrumental disposto para a garantia de direitos, bem como da Constituição como norma fundamental de todo o ordenamento.
Ressalte-se: não se trata de uma exclusividade da dogmática/prática jurídica. Após quase vinte e cinco anos de vigência da Constituição é que se estabeleceu comissão no legislativo federal para suprir as demandas por regulamentação ordinária de dispositivos constitucionais.[7] Ou seja, um vácuo legislativo de um quarto de século! Não é pouco tempo, ainda mais quando se trata de questões como a regulamentação do direito de greve de servidores públicos.
Por isso, impende uma adaptação mais efetiva das nossas práticas ao novo paradigma, que tem arrimo em uma sociedade extremamente complexa e ansiosa pelas promessas constitucionais. Nesse contexto,é preciso que a dogmática jurídica[8] seja capaz de fornecer respostas mais adequadas às situações do cotidiano. Assim, não são suficientes implementações de ordem qualitativa, tão caras à Análise Econômica do Direito. Necessita-se levar os direitos e a democracia a sério. Cada qual deve compreender seu papel constitucional na sociedade, sem pretender atropelar o seu desenvolvimento por meio de medidas estritamente pragmáticas. Já não é possível conviver com discricionariedades judiciais, categoria marcadamente positivista e inconciliável com uma democracia como a nossa. O Poder Judiciário e suas decisões necessitam ser controladas.
O objetivo deste trabalho é provocar a discussão sobre a democracia e a aplicação do direito neste novo paradigma constitucional, bem como oferecer a sua singela contribuição para o debate,, tendo como foco as questões tratadas no âmbito da Reclamação nº 4.335/AC, por certo profícua nessa temática.
2. A Reclamação nº 4.335/AC e a tese da mutação constitucional do art. 52, X, da CRFB/1988
A Reclamação nº 4.335/AC, de relatoria do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, proposta pela Defensoria Pública da União, questiona decisão de um juiz do Estado do Acre que afastou a aplicação a determinado caso concreto da posição firmada pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle de constitucionalidade difuso, no sentido da inconstitucionalidade da vedação de progressão de regime de cumprimento de pena pela Lei de Crimes Hediondos (Lei Federal nº 8.072, de 1990).
Em outras palavras, a pretensão plasmada no pedido é a da atribuição de efeitos erga omnes à mencionada decisão, equiparando-se àqueles observados no controle de constitucionalidade concentrado e abstrato, a fim de que seja possível a sua aplicação direta e vinculante aos demais casos semelhantes. Esse posicionamento, se acatado, implicaria a superação do disposto ao art. 52, X, da Constituição de 1988[9], que determina as decisões proferidas pelo STF em sede de controle de constitucionalidade difuso serem suspensas, no todo ou em parte, por deliberação do Senado Federal, através de resolução, reservando a tal órgão, a partir daí, o mero dever de publicação da decisão do STF. Ou seja, passaria-se a compreender o vocábulo “suspensão” com o significado de “publicação”, substituiçãofruto de uma suposta mutação constitucional. O pleito ainda está pendente de julgamento pelo Pleno do Supremo, sendo que o Ministro Relator Gilmar Mendes votou pelo provimento do pedido, no que foi acompanhado pelo Ministro Eros Grau (aposentado). A divergência é formada por Sepúlveda Pertence (aposentado), Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski.[10]
Para efeito do estudo a ser empreendido, centraremo-nos nos argumentos dos defensores da tese da mutação constitucional (Gilmar Mendes e Eros Grau).
Para Mendes[11], a proeminência conferida ao controle de constitucionalidade abstrato de normas e a possibilidade de suspensão liminar da eficácia de leis e atos normativos questionados nessa seara ofuscaram a importância do comando contido no art. 52, X, da Constituição de 1988, que se assentaria, atualmente, em meras razões históricas. Segundo o jurista, as próprias disposições da Carta reduziram o significado do controle de constitucionalidade difuso, procedimento que implica em decisões geradoras de efeitos meramente inter partes, dando ênfase maior ao controle de constitucionalidade abstrato, o que vem ocasionando uma suposta “abstratalização” do sistema como um todo.
Outro argumento de Mendes arrima-se no entendimento de que, se a suspensão de execução de lei declarada inconstitucional em controle de constitucionalidade se dá por atuação do Senado Federal, a afirmação da teoria da nulidade da norma inconstitucional no Brasil fica prejudicada. Nesse sentido, aduz que, por coerência, a doutrina e a jurisprudência defensoras da nulidade da lei inconstitucional deveriam compreender a atribuição do Senado Federal de suspender a execução da mesma como mera publicação da decisão proferida pelo STF.
Mendes ainda ressalta suposta incongruência do sistema com o advento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, que possui a qualidade de obtenção de decisões providas de efeitos erga omnesem casos concretos. Segundo ele, não seria sensato que, em sede de controle difuso, fossem atribuídos efeitos às decisões diferentes daqueles atribuídos em ação de controle concentrado.
Uma razão ligada à legislaçãoinfraconstitucional também é considerada. O art. 577, § 1º-A, do Código Processo Civil, inserido pela Lei Federal nº 9.756, de 1998, possibilita ao relator prover recurso se a decisão recorrida estiver em confronto com súmula ou jurisprudência dominante do STF. Na visão de Mendes, isso significa um alargamento, pelo legislador ordinário, dos efeitos vinculantes da decisão adotada pelo tribunal, seja em declaração de inconstitucionalidade incidental de lei federal, estadual ou municipal, seja nos casos de fixação de interpretação constitucional dada pelo órgão.
A Súmula Vinculante também enfraqueceria o mandamento do dispositivo do art. 52, X, da Constituição de 1988, pois, se utilizada em situação que envolva a declaração de inconstitucionalidade de determinada lei ou ato normativo, conferirá efeitos vinculantes (tanto para os outros órgãos do Judiciário quanto para os da Administração Pública) e erga omnes àquela decisão. Na verdade, entende o eminente jurista ser a disciplina da Súmula Vinculante um notável reforço à superação da competência para a suspensão de execução (pelo Senado Federal) de lei declarada inconstitucional, pois permite ao próprio Tribunal atribuir os efeitos de tal inconstitucionalidade, sem a interferência daquele órgão do Poder Legislativo.
Por fim, alega que a possibilidade do STF manipular os efeitos de uma decisão de inconstitucionalidade, por ocasião do art. 27, da Lei Federal nº 9.868, de 1999, o permitiria a fazer o mesmo em outras situações.
Diante de tais argumentos, Mendes julgou procedente a Reclamação em questão, reconhecendo desrespeito à eficácia erga omnes da decisão proferida no Habeas Corpus nº 82.959/SP.
Os apontamentos de Eros Roberto Grau nessa Reclamação demandam transcrição, pela notável construção que externam. O jurista preocupou-se em definir a mutação constitucional, perguntando-se se Mendes houvera excedido a “moldura do texto” do art. 52, X, da Constituição de 1988, quando de sua exegese. Para Grau:
a mutação constitucional é transformação de sentido do enunciado da Constituição sem que o próprio texto seja alterado em sua redação , vale dizer, na sua dimensão constitucional textual. Quando ela se dá, o intérprete extrai do texto norma diversa daquelas que nele originalmente estavam involucradas, em estado de potência.
Todavia, respondendo à essa mesma pergunta acerca da moldura textual, a afirmação de Grau de que a mutação constitucional preconizada por Mendes é legítima causa perplexidade se confrontada ao conceito de mutação constitucional que estabeleceu:
Note-se bem que S. Exa. não se limita a interpretar um texto, a partir dele produzindo a norma que lhe corresponde, porém avança até o ponto de propor a substituição de um texto normativo por outro. Por isso aqui mencionamos a mutação da Constituição. [...] Há, então, mais do que interpretação, esta concebida como processo que opera a transformação de texto em norma. Na mutação constitucional caminhamos não de um texto a uma norma, porém de um texto a outro texto, que substitui o primeiro.
Nesses termos, Grau acompanhou o entendimento da relatoria e julgou procedente a Reclamação, entendendo a decisão como resultado de uma legítima mutação constitucional.
3. Abstratalização do controle de constitucionalidade e fatores reais de poder
Como visto, Mendes defende um gradual sobrepujamento do controle de constitucionalidade difuso pelo abstrado no contexto jurídico brasileiro, o que legitimaria, portanto, a desconsideração da redação originária dada ao art. 52, X, da CRFB/1988, tornando idênticos os efeitos das declarações de inconstitucionalidade em sede difusa e abstrata. Grau, por sua vez, aponta que, na mutação constitucional não estamos diante de mera interpretação do texto jurídico, mas sim de sua reforma.
Esses apontamentos nos levam a um retorno ao período compreendido pelo fim do século XIX e início do XX, mais precisamente ao Império Alemão, quando Laband e Jellinek empreenderam seus estudos tendo por objeto a Constituição Imperial de 1871. Laband, em publicação de 1895, denominada Transformações da Constituição Imperial Alemã (Wandlungen der deutschen Reichverfassung), a partir do exame da referida Constituição, percebeu importantes alterações fáticas contrárias ao texto constitucional absorvidas pelo regime para acompanhar o desenvolvimento da situação constitucional do Império (verfassungszustand), distinguindo a reforma constitucional (verfassungänderung) da mutação constitucional (verfassungswandel).[12] Jellinek, por sua vez, em 1906, através da publicação de obra denominada Reforma e Mutação da Constituição (Verfassungsänderung und Verfassungswandlung), conferiu à mutação destaque como “a atribuição de um novo significado para uma antiga questão jurídica, a qual, sem alteração formal na Constituição, encontra um novo significado”[13].
O elemento comum sobressalente no pensamento dos dois juristas germânicos é a estrita separação entre direito e realidade[14], típica do paradigma do positivismo jurídico prevalecente à época. Em virtude disso, podemos então vislumbrar a existência de um Direito Político separado da Ciência Política. Isso porque ao direito não era dado conter as forças políticas existentes na sociedade, ao passo que a Constituição era compreendida como mera carta de intenções, desprovida de qualquer normatividade. Assim, a estrutura básica do Estado e todas as demais instituições ficavam à mercê dos denominados fatores reais de poder, que sempre superavam o jurídico.
Portanto, a mutação constitucional, nesse estágio, era compreendida como uma categoria não puramente jurídica, mas, pelo contrário, estava eivada de caracteres sociológicos e políticos, assim como as demais categorias do direito. Essa situação só veio a sofrer uma reviravolta após os acontecimentos do período entre-guerras.
Dito isso, é possível traçar um paralelo com a afirmação de Mendes acerca da suposta abstratalização de nosso controle de constitucionalidade. Alega o eminente jurista mato-grossense que, principalmente em virtude de inovações legislativas e reformas textuais à Constituição, favorecidas pela amplitude conferida pelo constituinte originário ao controle de constitucionalidade em abstrato, impende-se, no momento, a equiparação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade em sede difusa à abstrata, sendo que aquela vem perdendo importância no contexto geral. Ou seja, mesmo que o dispositivo do art. 52, X, da CRFB/1988, não haja sido revogado por qualquer emenda à Constituição, na visão de Mendes seria adequado proceder à equiparação.
Com toda a vênia, parece haver uma tentativa de sobrepujar o texto constitucional por meio de alegações de pura conveniência. Isso talvez seja um sintoma da busca irrefreada por efetividades quantitativas em detrimento das qualitativas na prestação jurisdicional, o que não é em si algo ruim. É preciso desentupir os nossos tribunais das quantidades sobre-humanas de processos com que têm de lidar, mas isso não pode ser feito ao arrepio da nossa Constituição, do Estado Democrático de Direito e de seus ditâmes. A grande conquista do pós-guerra, momento que usualmente é denominado pós-positivismo, pode ser representada pela compreensão da Constituição como verdadeira norma[15] apta a conformar a realidade. Fazer pouco caso disso para resolver qualquer eventualidade que apareça pela frente é abrir uma brecha para perigos ainda maiores.
Um momento oportuno para que a regra contida no art. 52, X, da CRFB/1988, pudesse ser desconsiderada seria o da edição da Emenda Constitucional nº 45/2004, que além de introduzir diversas mudanças relativas ao Poder Judiciário, criou a figura da súmula vinculante, prevista no atual art. 103-A, da CRFB/1988. Ao instituir esse novo mecanismo de complementação do controle de constitucionalidade difuso, o constituinte reformador poderia muito bem revogar expressamente a competência do Senado Federal para suspender os dispositivos declarados inconstitucionais em controle difuso pelo STF – mas não o fez. Desse modo, permanece vigente a disposição, que só poderia ser suprimida por ação daquele poder. Portanto, há incompatibilidade entre o posicionamento de Mendes e do constituinte reformador, devendo este, evidentemente, prevalecer.[16]
Ademais, quando Mendes lança mão de argumentos calcados em inovações infraconstitucionais para justificar a suposta mutação, ocorre algo inusitado: pretende-se interpretar a Constituição em conformidade com a lei. Como assevera Gomes Canotilho, trata-se de uma concepção merecedora de desconfiança, pois nada impede que interpretações infraconstitucionais veiculem sentidos inconstitucionais à Constituição, de modo que a legalidade da Constituição sobrepor-se-ia à constitucionalidade da lei.[17]
O importante é ter em mente que muito água já passou por debaixo da ponte até chegarmos onde estamos. O aprimoramento da teoria da Constituição como norma tornou-se um imperativo após as atrocidades do totalitarismo; e a compreensão do direito como concretização (principalmente dos direitos fundamentais) veio nessa esteira.
O direito é entendido no contexto atual como inegável atividade interpretativa e, no que tange a essa temática, é amplamente aceito que o texto é fator extremamente relevante. Em relação à mutação constitucional não poderia ser diferente.[18] Surge o alerta: nesses novos ares, não é recomendável fazer vista grossa quando o assunto é texto constitucional. Esse ponto começa a ficar mais iluminado a partir dos estudos de Friedrich Müller sobre a relação entre texto e norma, que fizeram a ciência jurídica tomar novos rumos no tema interpretação/concretização do direito.
4. Texto e norma, hermenêutica da faticidade e hermenêutica filosófica
Friedrich Müller foi responsável pela elaboração de seminal estudo acerca da estrutura normativa: delineou o pós-positivista alemão o que se entende por programa normativo e âmbito normativo, demonstrando como se dá a relação entre tais elementos no que denominou teoria estruturante do direito. De acordo com Müller, o teor literal do texto seria apenas a “ponta do iceberg”, servindo à formulação do programa da norma.[19] O âmbito normativo preencheria-se pelo “recorte da realidade social na sua estrutura básica, que o programa da norma ‘escolheu’ para si ou em parte criou para si como seu ãmbito de regulamentação”[20]Desse modo, texto e norma são tidos como coisas diferentes, porém, incindíveis. O programa normativo como que define o seu espaçode concretização de sentido a ser atribuído.[21]
Falar em atribuição de sentidos[22] explicita uma inclinação especial. Sempre foi o desiderato da Hermenêutica fornecer subsídios para a tarefa de interpretação e compreensão de textos, descrevendo como se dá esse processo. A princípio, como se pode observar dos estudos empreendidos no seio da hermenêutica especial e da teoria geral da interpretação, a sua preocupação era o método. Ou seja, os estudiosos desse período tentaram organizar uma técnica interpretativa específica, em que as bases primordiais da cognição humana tornariam-se controláveis por um método, que, por sua vez, seria capaz de extrair todo o sentido supostamente contido em um texto.
Essa concepção sofre uma viragem a partir de Heidegger, que proporciona um deslocamento do objeto da hermenêutica para a faticidade, introduzindo o conceito de Ser-aí (Dasein).[23] A partir desse momento, a tarefa primordial da hermenêutica será desvendar o nosso acesso ao mundo, pois o ser só é ser-no-mundo. Dasein “é o que ele já foi, ou seja: o seu passado”; e esse passado histórico é exatamente a faticidade. Essa condição o direciona para o futuro: existência, nosso modo de ser, nossas possibilidades, abertura de horizontes.
Nesse sentido Hans-Georg Gadamer desenvolveu sua hermenêutica com inclinação filosófica, já que direcionada para a compreensão da totalidade de nosso acesso ao mundo, através da reformulação do papel da linguagem nesse desiderato. A linguagem deixa de ser uma coisa entreposta a sujeito e objeto e passa a ser condição de possibilidade:permite, então, a nossa inserção no mundo, pois “suporta não somente o entendimento entre os homens, senão também o entendimento sobre as coisas de que é feito nosso mundo”. É algo compartilhado entre todos nós, que nos põe na história. Como bem diz Ernildo Stein:
O sujeito que compreende é finito, isto é, ocupa um ponto no tempo, determinado de muitos modos pela história. A partir daí desenvolve seu horizonte de compreensão, o qual pode ser ampliado e fundido com outros horizontes. O sujeito que compreende não pode escapar da história pela reflexão. Dela faz parte. Estar na história tem como consequência que o sujeito é ocupado por pré-conceitos que pode modificar no processo da experiência, mas que não pode liquidar inteiramente.[24]
Essa constatação torna impossível a resposta à pergunta pelo “por quê” de compreendermos: ela sempre chega tarde, pois já compreendemos. Impossível negar a faticidade. O controle do intérprete, para que não diga qualquer coisa sobre qualquer coisa, se dá através da tradição, que, no direito, é representada pelo dever de coerência e integridade (moralidade política, em Dworkin). Daí o direito fundamental do cidadão a uma resposta constitucionalmente adequada e bem fundamentada, nos termos do art. 93, IX, de nossa Constituição. É nesse ponto que Ronald Dworkin aproxima-se da hermenêutica filosófica, com a sua ideia do direito como integridade, fundada na moralidade política. Veja-se a fala do saudoso jusfilósofo norte-americano:
Os juízes não decidem os casos difíceis em duas etapas, avaliando, em um primeiro momento, os limites das restrições institucionais, para só então deixar os livros de lado e resolver as coisas a seu próprio modo. As restrições institucionais que eles intuem estão disseminadas, e perduram até a própria decisão.[25]
Assim, temos que a norma sempre será o resultado da interpretação do texto, o que reafirma a incindibilidade de ambos. A interpretação ocorrerá como uma atribuição de sentidos, pois somos compelidos pela faticidade, frente ao texto, a vislumbrar a sua “normação” a partir de nossa inserção no mundo. Não há essências escondidas no próprio texto. Ele não é plenipotenciário, como se pensa no paradigma do positivismo exegético, bem como não está à disposição da vontade do intérprete, como se dá no positivismo normativista kelseniano. O primeiro pode ser dado como superado, mas o segundo continua a nos assombrar.
Vale, aqui, uma breve descrição das ideias principais de Hans Kelsen acerca da interpretação das leis (lato sensu). Para o jusfilósofo frequentador do Círculo de Viena, o que classificaria uma norma como juridicamente válida (ou seja, como direito) seria a) o seu pertencimento a uma ordem hierarquizada-escalonada, em que uma norma inferior buscaria, necessariamente, fundamento de validade em outra superior, esta estabelecida por uma autoridade legiferante investida de competência para tal (que, por sua vez, é proporcionada por uma norma lógico-transcendental fundamental: a Grundnorm) e b) o mínimo de eficácia social do ordenamento.[26] Desse modo, pouco importa o conteúdo veiculado, “todo e qualquer conteúdo pode ser Direito”[27]. É por essa razão que Kelsen relega à interpretação uma importância secundária. Para ele, “a obtenção da norma individual no processo de aplicação da lei é, na medida em que nesse processo seja preenchida a moldura da norma geral, uma função voluntária”[28] (grifos nossos), portanto, não passa de política judicial, ato de vontade. É relativista e discricionária, justamente porque Kelsen é um pessimista moral.
A dogmática jurídica brasileira, a despeito de todos os avanços da teoria constitucional e da hermenêutica, ainda esbarra nesse tipo de positivismo. Veja-se, por exemplo, o posicionamento de Luís Roberto Barroso, um dos mais destacados expoentes do novo direito constitucional brasileiro, recentemente empossado Ministro do STF:
A moderna dogmática jurídica, no entanto, de longa data já não endossa a crença de que as normas jurídicas tenham, invariavelmente, sentido unívoco, oferecendo uma única solução possível para os casos concretos aos quais se aplicam. Em muitas hipóteses, a norma – especialmente a norma constitucional, quando tem conteúdo fluido e textura aberta – oferece um conjunto de possibilidades interpretativas, figurando como uma moldura dentro da qual irá atuar a criatividade do intérprete. Como consequência, a atividade de interpretação da norma consistirá também em um ato de vontade (volitivo), uma escolha, envolvendo uma valoração específica feita pelo intérprete. Tal escolha é vista por parte da doutrina como o exercício de uma discrição judicial.[29]
Como podemos, em pleno paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito, ficar à mercê da vontade de juízes para resolver questões relevantes sobre nossa vida, tanto particular quanto pública? Essa é uma questão a ser abordada no próximo item. Primeiramente, atenhamo-nos à Reclamação que está na berlinda.
Conforme firmado em seu voto, Eros Grau defende a legitimidade da mutação constitucional propugnada por Gilmar Mendes, convencido de que nesta “caminhamos não de um texto a uma norma, porém de um texto a outro texto”. Isso após referir-se à “moldura textual”. Temos, evidentemente, uma situação em que as ideias positivistas-normativistas são levadas às últimas consequências. Essa é a política interpretativa referida por Kelsen: frente a certas circunstâncias, o texto deve ceder a exigências de pura conveniência. Pouco importa que não possamos atribuir a “suspender” o sentido “publicar”, basta estarem atendidas as necessidades de ordem estritamente pragmáticas. Isso é terrível para a democracia, para o direito e para as suas instituições. Desconsidera-se a tradição hermenêutica, bem como a linguagem, rompe-se com a integridade do direito e suplanta-se instituições democráticas de representação popular, como o Congresso Nacional, titular do poder constituinte reformador.
Textos não são palavras ao vento, especialmente no estágio do constitucionalismo atual. Por isso, bem alerta Gadamer: “quem quer compreender um texto, em princípio, tem que estar disposto a deixar que ele diga alguma coisa por si”[30], ou seja, não podemos dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa. Há algo no mundo (na faticidade da qual fazemos parte) que nos diz que uma pedra é uma pedra, que a água é água, que suspender é supender e que publicar é publicar. Quando da interpretação, que não é separada da aplicação (interpretar é aplicar, pois), deve ser respeitada a tradição hermenêutica impregnada na história, que é a do constitucionalismo democrático (a CRFB/1988 está aí!), assim como a linguagem compartilhada por nós torna-se condição de possibilidade para tal. No próximo item, tentaremos deixar mais explícito o porquê dessa postura ser a mais benéfica ao Estado Democrático de Direito brasileiro, rumando para as nossas conclusões.