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Análise crítica da prisão civil do depositário infiel no âmbito jurisprudência constitucional brasileira

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Agenda 25/10/2013 às 06:07

Houve uma mudança radical no posicionamento do Supremo Tribunal Federal acerca da prisão civil do depositário infiel.

Resumo: O presente estudo tem por escopo realizar uma análise da evolução do tratamento dado pela jurisprudência do Supremo tribunal Federal ao tema da prisão civil do depositário infiel no decorrer da vigência da Constituição federal de 1988, objetivando apresentar um olhar crítico sobre as diversas decisões proferidas pela Corte Constitucional nesse âmbito. Serão abordadas, primeiramente, as questões acerca da abrangência do termo “depositário infiel”, analisando-se quais casos de prisão encontram respaldo na Carta de 1998 e quais estariam eivados de inconstitucionalidade. Após isso, serão trabalhados os problemas concernentes aos efeitos que a ratificação do Pacto de San José da Costa Rica produziu nessa seara.

Palavras-Chave: Depósito, Depositário Infiel, Prisão Civil, Jurisprudência, STF

Sumário: 1 - INTRODUÇÃO. 2 - O CONCEITO DO TERMO DEPOSITÁRIO INFIEL. 2.1 – As acepções tradicionais do nomen iuris “depósito”. 2.1.1 – O caso do depósito judicial. 2.2 – A equiparação do devedor-fiduciante a depositário. 3 - A PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL E OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. 3.1 – O Pacto de San José da Costa Rica. 3.2 – Relação hierárquico-normativa entre os tratado internacionais de direitos humanos e a Constituição Federal. 3.2.1 – A supraconstitucionalidade dos tratados internacionais de direitos humanos. 3.2.2 – Os acordos internacionais de direitos humanos como normas de hierarquia constitucional. 3.2.3 – Convenções internacionais sobre direitos humanos com força de lei ordinária. 3.2.4 – O posicionamento atual do STF: A supralegalidade dos tratados internacionais que versem sobre direitos humanos. 3.3 – O entendimento jurisprudencial atual acerca da prisão civil do depositário infiel. 4 – CONCLUSÃO. 5 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


1 - INTRODUÇÃO

É fato que a experiência constitucional brasileira sempre conviveu com hipóteses de aplicação de prisão civil por dívida. Tal mecanismo, no entanto, foi sendo paulatinamente mitigado no direito pátrio, que, desde a promulgação da Constituição de 1946, passou a vedar esse tipo de medida, admitindo-a apenas no caso do devedor de alimentos e do depositário infiel. Essas duas ressalvas à proibição da prisão civil por dívida perduraram no ordenamento jurídico brasileiro desde então, estando presentes inclusive no texto da Carta de 1988, que diz que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”[1].Dentre essas duas hipóteses de prisão civil, a mais polêmica sem dúvida é a do depositário infiel.

A primeira grande discussão que se instalou em relação ao tema foi em torno da abrangência dessa permissão constitucional, pois questionava-se acerca do grau de liberdade que deveria ser concedido ao legislador infraconstitucional para definir em quais situações ela deveria ser aplicada.Outro importante debate ocorrido nesse âmbito foi o que se deu em relação aos efeitos que o Pacto de San José da Costa Rica teria sobre a aplicação da prisão civil ao depositário infiel, uma vez que tal convenção internacional exclui essa possiblidade, permitindo a prisão civil por dívida apenas no caso do devedor de alimentos.

São essas as questões que serão analisadas a seguir.


2 - O CONCEITO DO TERMO DEPOSITÁRIO INFIEL

Inicialmente, o debate acerca temaestava relacionado principalmente com problema de se definir a abrangência do termo “depositário infiel” empregado pelo legislador constitucional de 1988. Como se verá a seguir, há uma certa dificuldade em se saber em quais situações exatamente pode-se aplicar o instituto da prisão civil a um determinado devedor.

2.1 – As acepções tradicionais do nomen iuris “depósito”

Pode-se dizer que, numa concepção civilista clássica, o depósito se dá quando uma pessoa (depositante) entrega a outra (depositário) um determinado bem móvel, ficando este último indivíduo com a obrigação de restituir tal coisa na ocasião ajustada ou quando lhe for solicitado[2].

Nesse sentido, existem, no âmbito civil, dois tipos básicos de depósito: depósito convencional e depósito necessário. A primeira modalidade encontra fundamento legal do art. 627 do Código Civil, que assim dispõe: “Pelo contrato de depósito recebe o depositário um objeto móvel, para guardar, até que o depositante o reclame”. Trata-se, portanto, de depósito decorrente da autonomia da vontade das partes envolvidas.

O depósito necessário, por sua vez, consiste naquele que se constitui por imposição legal ou por força de circunstâncias imperiosas. São três as hipóteses em que isso ocorre: depósito legal, depósito miserável e depósito do hospedeiro. O primeiro tipo é aquele que ocorre em cumprimento de obrigação prevista em lei. Segundo Washington de Barros Monteiro, isso acontece nas seguintes situações:

a) aquele que é obrigado a fazer o inventor da coisa perdida (CC/2002, art. 1.233, parágrafo único); b) o de dívida vencida, pendente a lide, quando vários credores lhe disputarem o montante, uns excluindo outros (art. 345); c) o que deve ser feito pelo administrador dos bens do depositário que se tenha tornado incapaz (art. 641); d) o do lote compromissado, no caso de recusa de recebimento da escritura definitiva (Dec.-lei n. 58, de 10-12-1937, art. 17, parágrafo único, e Dec. n. 3.079, de 15-9-1938, art. 17, parágrafo único)[3]

A segunda modalidade, o depósito miserável, recebe este nome por ocorrer em situações de calamidade, sendo, de acordo com o art. 647, II, CC, aquele “que se efetua por ocasião de alguma calamidade, como o incêndio, a inundação, o naufrágio ou o saque”. Trata-se de um caso onde o indivíduo, imerso numa situação de emergência, se vê obrigado a deixar seus bens com a primeira pessoa que aceite guardá-los.

Já a terceira e última espécie de depósito necessário consiste no depósito do hospedeiro, também conhecido como “necessário por equiparação”.  Trata-se da figura jurídica prevista no art. 649 do Código Civil, onde é afirmado que:

Art. 649. Aos depósitos previstos no artigo antecedente é equiparado o das bagagens dos viajantes ou hóspedes nas hospedarias onde estiverem.

Parágrafo único. Os hospedeiros responderão como depositários, assim como pelos furtos e roubos que perpetrarem as pessoas empregadas ou admitidas nos seus estabelecimentos.

Quanto às hipóteses de depósito acima descritas, não há dúvida alguma de que estão aptas a ensejar a prisão civil de seu devedor com base no permissivo constitucional doArt. 5º, LXVII, da CF/88.

2.1.1 – O caso do depósito judicial

Além dos casos até aqui apresentados, outra situação que tradicionalmente recebe o nome de depósito é aquela que ocorre por força de determinação judicial. O objetivo desse tipo de medida é geralmente o de permitir a prática de certos atos processuais como a penhora, o arresto, o seqüestro, o arrolamento de bens, etc.[4] Nesse cenário, o depositário figura como auxiliar da justiça e se encontra vinculado ao juízo através de norma de natureza administrativa.[5]

O STF sempre se mostrou firme em afirmar a possibilidade da prisão do depositário infiel nesse caso.[6] Porém, Gelson Amaro de Souza[7] nos mostra que há bons motivos para discordar desse posicionamento.

Primeiramente, a previsão legal onde se funda a prisão civil do depositário infiel se encontra no art. 652 do Código Civil: “Seja o depósito voluntário ou necessário, o depositário que não o restituir quando exigido será compelido a fazê-lo mediante prisão não excedente a um ano, e ressarcir os prejuízos”. Ocorre que tal dispositivo normativo não faz referencia à possibilidade de a referida prisão ser aplicada em casos de depósito judicial. O depósito judicial não é regulado pelo direito civil. Como já foi dito, trata-se de uma relação de caráter administrativo.

Assim sendo, o depósito judicial se encontra regulado pelos arts. 148 a 150 do Código de Processo Civil, onde não se prevê a prisão como hipótese de medida sancionatória em caso de descumprimento da obrigação de depósito. Desse modo, a prisão do depositário judicial carece de regulamentação infraconstitucional que lhe dê fundamento. É o que se depreende do seguinte trecho da obra de Amaro de Souza:

Em se tratando de depósito judicial, diferentemente do que acontece com o depositário civil, não existe cominação legal de pena de prisão, sendo que a responsabilidade do depósito está limitada às conseqüências previstas no art. 150 do CPC, que apenas diz que, no caso de violação dos deveres, o depositário responde por perdas e danos[8]

Ademais, mesmo que tal previsão legal existisse em nosso ordenamento jurídico, haveria fortes argumentos para duvidar de sua constitucionalidade. Isso porque restaria configurada hipótese de prisão administrativa, o que é vedado pelo inciso LXI, do art. 5º, da CF: “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”. Note-se que única situação onde a prisão administrativa é permitida é no caso da prisão militar, todos os outros casos estão proibidos.

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Assim, a despeito daqueles que defendem a prisão do depositário judicial como meio necessário para garantia da efetividade do prestação jurisdicional[9], não nos parece que a Constituição Federal acolha a possibilidade da aplicação de tal medida.

2.2 – A equiparação do devedor-fiduciante a depositário

Analisaremos, agora, a polêmica construção jurisprudencial do STF que equipara o devedor-fiduciante a depositário infiel. Podemos encontrar o conceito de propriedade fiduciária no art. 1.361, do Código Civil: “Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor”. Trata-se, então, do caso em que o devedor (fiduciante), com o intuito de fornecer uma garantia ao seu credor (fiduciário), lhe transfere a propriedade de um bem, readquirindo-a apenas quando pagar sua dívida.

Ocorre que o Decreto-Lei 911/68, que estabelece normas de processo sobre alienação fiduciária, dispõe da seguinte forma em seu art. 4º:

Art. 4 º Se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou não se achar na posse do devedor, o credor poderá requerer a conversão do pedido de busca e apreensão, nos mesmos autos, em ação de depósito, na forma prevista no Capítulo II, do Título I, do Livro IV, do Código de Processo Civil.  

Diante dessa previsão legal, fica a pergunta: pode, então, ser aplicada a prisão civil ao devedor fiduciário? A jurisprudência do STF, por muito tempo, respondeu afirmativamente a essa questão,conferindo à expressão “depositário infiel” um sentido bastante amplo. É o que se depreende da leitura da decisão do Recurso Extraordinário 250812/RS:

- Recurso extraordinário. Ação de depósito. Prisão Civil do depositário infiel. Penhor agrícola. Art. 5º, LXVII, da Constituição. - Esta Corte, em inúmeros acórdãos, inclusive de seu Plenário, já firmou o entendimento de que a Constituição, em seu artigo 5º, LXVII, empregou a expressão "depositário infiel" tanto para o caso do depósito convencional quanto para os casos de depósito legal, tanto assim que considera constitucional a prisão civil do devedor-depositário na alienação fiduciária em garantia, em que o depósito integra necessariamente a estrutura da garantia representada pela propriedade fiduciária. - Note-se, ademais, que esta Primeira Turma, ao indeferir o HC 75.904, admitiu a prisão civil do proprietário-depositário na figura do penhor agrícola, que é um dos casos de penhor sem desapossamento do devedor. Recurso extraordinário conhecido e provido.[10]

No entanto, tal posicionamento sempre foi duramente criticado pela doutrina e pela jurisprudência inferior. O STJ, por exemplo, sempre se mostrou contrário à caracterização da figura do depositário infiel no bojo de contratos de alienação fiduciária sob a justificativa de que se estaria criando uma espécie de “depósito por equiparação”, o que seria inadmissível perante o sistema constitucional brasileiro. Afirma o aludido tribunal que “reconhecer à lei ordinária a possibilidade de equiparar outras situações, substancialmente diversas, à do depositário infiel, para o fim de tornar aplicável a prisão civil, equivale a esvaziar a garantia constitucional”[11]

Mesmo no âmbito do próprio STF, o entendimento majoritário era fortemente combatido pelos Ministros Marco Aurélio, Francisco Rezek, Carlos Velloso e Sepúlveda Pertence. Essa dissidência se encontra muito bem representada no voto prolatado pelo Min. Pertence no HC 72.131/RJ:

É manifesto que a Constituição excetuou, da proibição de prisão por dívida, a prisão do inadimplente de obrigação alimentar e a do depositário infiel. A extensão dessa norma de exceção, não o contesto, pode sofrer mutações ditadas pelo legislador ordinário e até por Tratado. Mas, também me parece, ninguém discordará, em tese, de que, ao concretizar os seus termos — isto é, os conceitos de obrigação alimentar ou de depositário infiel — o legislador não pode, mediante ficções ou equiparações, ampliar arbitrariamente o texto constitucional, além da opção constituinte nele traduzida. E esta há de ser aferida à base da Constituição e de suas inspirações. Não, à base da lei. Em outras palavras, a admissibilidade, segundo a Constituição, da prisão por dívida de alimentos e da prisão do depositário infiel não é cheque em branco passado ao legislador ordinário. Assim como não lhe é lícito, até com uma aparente base constitucional no art. 100, autorizar a prisão do governante que atrase a satisfação de débitos de natureza alimentar da Fazenda Pública, não creio que possa estender, além da marca que há de ser buscada dentro da própria Constituição, o âmbito conceitual do depósito.[12]

Percebe-se que tais críticas não são de modo algum desprovidas de razão, pois, se, ao criar ressalvas a uma garantia fundamental, a constituição dá liberdade irrestrita ao legislador para definir o conteúdo e a abrangência de tais exceções, a vedação à prisão civil por dívida perderia todo o seu sentido, pois careceria de força vinculante perante o legislador infraconstitucional. Desse modo, não pode de nenhuma maneira prosperar o entendimento do STF que confere ao termo “depositário infiel” a maior abrangência possível dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Não é diferente a posição de Gilmar Mendes em relação ao tema:

Nesse sentido, deve-se ter em conta que a expressão “depositário infiel” possui um significado constitucional peculiar que não pode ser menosprezado pelo legislador. Existe um desenho constitucional específico para a figura do depósito, o que lhe empresta a forma de instituto a ser observado pela legislação que lhe dá conformação. [13]

Também é interessante reproduzir aqui a esclarecedora explanação de Katiane da Silva Oliveira:

A constituição ao estabelecer como exceção a hipótese de prisão do depositário infiel considerou a noção de depósito como a tradicionalmente construída. Entendimento em sentido contrário dizimaria o caráter de garantia da vedação a prisão civil. Se a constituição estipulou duas hipóteses taxativas e exaustivas em que cabe a prisão civil não é possível que a legislação infraconstitucional altere o alcance dessas exceções ampliando-o. Não se concebe que a mera aposição do nome “depósito” a situações que não veiculam o elemento nuclear desse instituto, com o objetivo de estender-lhe mecanismos de tutela que a constituição excepcionalmente havia deferido em caráter excepcional.[14]

Resta, então, completamente absurda a hipótese de se aplicar a prisão civil ao devedor nos casos de alienação fiduciária, pois o legislador, ao transportar a figura do depositário infiel, se vale de ficções jurídicas que distorcem a verdadeira natureza desse instituto jurídico que nada tem a ver com o do depósito.

A ficção deriva do fato de que, no contrato de alienação fiduciária, o alienante não pode ser considerado proprietário em termos absolutos. Na vigência desse contrato, o alienante tem apenas a posse indireta, já que a posse direta pertence ao devedor-fiduciante.[15] Além disso, mesmo na hipótese de inadimplemento e consequente apreensão do bem em questão, não estaria configurada propriedade plena, pois o alienante-fiduciário é obrigado a vender o bem para que se retire do valor obtido apenas o correspondente ao seu crédito, devendo devolver o restante ao devedor-fiduciante.[16]

Ademais, a figura do devedor-fiduciante difere muito da do depositário, pois aquele não recebe o bem para guardá-lo e o alienante não pode exigir a restituição da coisa quando bem entender.

Não se pode esquecer também que o alienante dispõe de vários mecanismos jurídicos que permitem a satisfação de seu crédito sem que se precise recorrer à drástica medida da prisão civil. Se o devedor entrega por vontade própria o bem alienado, o credor pode facilmente obter o valor da dívida vendendo-o a terceiro. Pode ainda o alienante ajuizar ação de busca e apreensão e, caso o bem não seja encontrado, converter a busca e apreensão em ação de depósito. Por fim, há também a possibilidade de o credor ajuizar ação de execução.

Tudo isso faz com que a aplicação da prisão civil ao devedor-fiduciante encontre sérias barreiras no princípio da proporcionalidade, pois se mostra notória a desnecessidade desse tipo de medida diante da grande quantidade de alternativas menos gravosas ao devedor. É o que nos ensina Gilmar Mendes:

Diante desse quadro, não há dúvida de que a prisão civil é uma medida executória extrema de coerção do devedor-fiduciante inadimplente, que não passa no exame da proporcionalidade como proibição de excesso (Übermassverbot), em sua tríplice configuração: adequação (Geeingnetheit), necessidade (Erforderlichkeit) e proporcionalidade em sentido estrito.

[...]

A prisão civil do fiduciante só se justificaria diante da realização de outros valores ou bens constitucionais que necessitem de maior proteção tendo em vista as circunstâncias da situação concreta, como o valor da assistência familiar no caso da prisão do alimentante inadimplente. Não, porém, nas hipóteses em que vise à mera recomposição patrimonial do credor-fiduciante.[17]


3 - A PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL E OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS

Além das controvérsias anteriormente expostas acerca do alcance que deve ser conferido à permissão constitucional da prisão civil do depositário infiel, é também necessário perquirir como a jurisprudência do STF trata do tema diante dos acordos internacionais que versem sobre direitos humanos.

3.1 – O Pacto de San José da Costa Rica

A Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, é um tratado realizado entre os países membros da Organização dos Estados Americanos, que foi assinado em 22 de novembro de 1969, entrando em vigor em 18 de julho de 1978.

Ocorre que a referida convenção, em seu art. 7º, que cuida do direito à liberdade pessoal, dispõe da seguinte maneira em seu item 7: “Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.”

Percebe-se que o referido tratado, ao contrário da Constituição Federal brasileira, colocou, diante da proibição da prisão civil por dívida, apenas uma exceção (devedor de alimentos), excluindo a hipótese do depositário infiel. Existe então um aparente conflito de normas entre a Constituição Federal e o Pacto de San José da Costa Rica.

3.2 – Relação hierárquico-normativa entre os tratado internacionais de direitos humanos e a Constituição Federal

Inicialmente, a Magna Carta, ao dispor sobre os tratados internacionais de direitos humanos seu art. 5º, afirmava tão somente que “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”[18]

Essa falta de profundidade no tratamento do tema deu azo à existência de 4 vertentes distintas acerca do status que deveria ser conferido aos tratados internacionais que versassem sobre direitos humanos. A primeira corrente defende a natureza supraconstitucional desses tratados. Um segundo grupo atribui a estes acordos status constitucional. A terceira vertente afirma estarem os tratados internacionais no mesmo patamar que as leis ordinárias. A quarta corrente, por fim, é a que concede a essas convenções caráter supralegal.

3.2.1 – A supraconstitucionalidade dos tratados internacionais de direitos humanos

Na doutrina brasileira, pode-se apontar Celso de Albuquerque Mello[19] como principal defensor da primeira vertente. Aduz o ilustre professor que as normas constitucionais não teriam poder para revogar as disposições de um tratado internacional de direitos humanos. Para ele, mesmo que fosse promulgada posteriormente Emenda Constitucional contrariando o texto da Convenção, esta não seria revogada e nem perderia sua eficácia.

Como muito bem aponta Gilmar Mendes[20], tal posicionamento é de difícil aceitação, pois o Direito brasileiro tem como seu fundamento a supremacia formal e material da constituição.

Tais barreiras já foram também apontadas na jurisprudência do STF durante o julgamento do RHC 79785 RJ[21]:

Assim como não o afirma em relação às leis,a Constituição não precisou dizer-se sobreposta aos tratados: a hierarquia está ínsita em preceitos inequívocos seus, como os que submetem a aprovação e a promulgação das convenções ao processo legislativo ditado pela Constituição e menos exigente que o das emendas a ela e aquele que, em conseqüência, explicitamente admite o controle da constitucionalidade dos tratados (CF, art. 102, III, b).

O que ocorre, então, é que os representantes do poder público não se encontram menos submetidos á ordem constitucional quando estão exercendo o treaty-makingpower. O procedimento de aprovação de um acordo internacional não está adstrito somente às regras formais previstas no texto constitucional, pois deve de igual modo estar em consonância com os preceitos materiais da Magna Carta.

Nem mesmo a noção da existência de uma confluência de valores de direitos humanos entre os âmbitos interno e externo poderia salvar esta tese, como nos mostra Gilmar Mendes:

O argumento de que existe uma confluência de valores supremos protegidos nos âmbitos interno e internacional em matéria de direitos humanos não resolve o problema. A sempre possível ampliação inadequada dos sentidos possíveis da expressão “direitos humanos” poderia abrir uma via perigosa para uma produção normativa alheia ao controle de sua compatibilidade com a ordem constitucional interna. O risco de normatizações camufladas seria permanente.[22]

Além disso, a possível supremacia desses tratados internacionais esbarraria na competência que possui o Supremo Tribunal Federal para exercer o controle de constitucionalidade formal e material desses diplomas.

3.2.2 – Os acordos internacionais de direitos humanos como normas de hierarquia constitucional

Esta segunda corrente se baseia na idéia de que o § 2º do art. 5º se traduz em uma clausula aberta de recepção de outros direitos humanos que venham a ser previstos em tratados internacionais. Para os defensores dessa tese, ao dispor desse modo, a constituição estaria colocando as convenções internacionais sobre direitos humanos no mesmo patamar hierárquico das normas constitucionais.

Desse modo, os novos direitos, ao serem incorporados á Constituição Federal, estariam munidos de aplicação imediata por força do § 1º do art. 5º, não necessitando de nenhum ato legislativo adicional para que lhes seja conferida eficácia plena.

Na hipótese de conflitos entre os tratados e a constituição, a diretriz seria a da aplicação da norma que seja mais favorável á vítima, estabelecendo-se, com isso, uma interação constante entre os direitos interno e externo, no sentido de conferir a maior proteção possível aos direitos humanos.

O que foi até agora exposto sobre essa vertente doutrinária se encontra bem sintetizado nas palavras de Antonio Augusto Cançado Trindade:

O propósito do disposto nos §§ 2º e 1º do art. 5º da Constituição não é outro que o de assegurar aaplicabilidade direta pelo Poder Judiciário nacional da normativa internacional de proteção, alçada a nível constitucional.

(…)

Desde a promulgação da atual Constituição, a normativa dos tratados de direitos humanos em que o Brasil é Parte tem efetivamente nível constitucional, e entendimento em contrário requer demonstração. A tese da equiparação dos tratados de direitos humanos à legislação infraconstitucional – tal como ainda seguida por alguns setores em nossa prática judiciária, – não só representa um apego sem reflexão a uma tese anacrônica, já abandonada em alguns países, mas também contraria o disposto no art. 5º(2) da Constituição Federal Brasileira.[23]

Apesar de muito bem fundamentada essa tese terminou por perder seu sentido após a promulgação da Emenda Constitucional 45/2004, que acrescentou o seguinte parágrafo ao art. 5º da CF:

§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Desse modo, o que se tem é que só terão força constitucional os tratados internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados pelo mesmo rito exigido para a aprovação de emendas constitucionais.

No entanto, essa decisão do Congresso Nacional de condicionar o status constitucional de tais tratados à sua aprovação por quórum qualificado, não se encontra isenta de críticas no meio doutrinário. George Rodrigo Bandeira Galindo[24], por exemplo, afirma ser equivocado o modo de pensar que enxerga esse tipo de diploma internacional como norma equiparável a emendas constitucionais. Para ele, o caráter constitucional dessas convenções advém não do procedimento que culminou em sua aprovação, mas sim de seu caráter internacional e da matéria de que tratam. Nas palavras do próprio autor:

É equivocada a associação entre a inclusão de direitos fundamentais em virtude de uma cláusula aberta e as emendas constitucionais. O (sic) tratados de Direitos Humanos não retiram seu status constitucional do iter legislativo em que são aprovados, quer ele exija quórum qualificado para a provação, ou não. Este status é retirado, primeiramente, de sua natureza internacional, e, segundamente, da matéria regulada, qual seja, concernente aos direitos fundamentais, o que leva a crer que, por conta disso, são normas materialmente constitucionais.[25]

3.2.3 – Convenções internacionais sobre direitos humanos com força de lei ordinária

A tese segundo a qual os tratados internacionais sobre direitos humanos possuem força de mera lei ordinária foi, por muito tempo, acolhida pela jurisprudência do STF.

A primeira decisão merecedora de análise, nesse assunto, é o Recurso Extraordinário 80.004/SE, que foi julgado no ano de 1977 e cujo teor se encontra bem exposto no seguinte trecho do voto do Ministro Leitão de Abreu:

(...) Como autorização dessa natureza, segundo entendo, não figura em nosso direito positivo, pois que a Constituição não atribui ao judiciário competência, seja para negar aplicação a leis que contradigam tratado internacional, seja para anular, no mesmo caso, tais leis, a consequência, que me parece inevitável, é que os tribunais estão obrigados, na falta de título jurídico para proceder de outro modo, a aplicar as leis incriminadas de incompatibilidade com tratado. Não se diga que isso equivale a admitir que a lei posterior ao tratado e com ele incompatível reveste eficácia revogatória deste, aplicando-se, assim, para dirimir o conflito, o princípio ‘lex posterior revogat priori’. A orientação, que defendo, não chega a esse resultado, pois, fiel à regra de que o tratado possui forma de revogação própria, nega que este seja, em sentido próprio, revogado pela lei. Conquanto não revogado pela lei que o contradiga, a incidência das normas jurídicas constantes do tratado é obstada pela aplicação, que os tribunais são obrigados a fazer, das normas legais com aqueles conflitantes. Logo, a lei posterior, em tal caso, não revoga, em sentido técnico, o tratado, senão que lhe afasta a aplicação. A diferença está em que, se a lei revogasse o tratado, este não voltaria a aplicar-se, na parte revogada, pela revogação pura e simples da lei dita revogatória. Mas como, a meu juízo, a lei não o revoga, mas simplesmente afasta, enquanto em vigor, as normas do tratado com ela incompatíveis, voltará ele a aplicar-se, se revogada a lei que impediu a aplicação das prescrições nele consubstanciadas[26]

Mesmo após a promulgação da Carta de 1988, ainda se pode encontrar julgados da Suprema Corte sustentando esse mesmo entendimento. É o caso do Habeas Corpus 72.131/RJ, que tratou do problema do depositário infiel na alienação fiduciária em garantia. Assim dispõe a ementa da decisão:

"Habeas corpus". Alienação fiduciária em garantia. Prisão civil do devedor como depositário infiel. - Sendo o devedor, na alienação fiduciária em garantia, depositário necessário por força de disposição legal que não desfigura essa caracterização, sua prisão civil, em caso de infidelidade, se enquadra na ressalva contida na parte final do artigo 5º, LXVII, da Constituição de 1988. - Nada interfere na questão do depositário infiel em matéria de alienação fiduciária o disposto no § 7º do artigo 7º da Convenção de San José da Costa Rica. "Habeas corpus" indeferido, cassada a liminar concedida.[27]

No caso, novamente se afastou a hipótese de superioridade dos tratados internacionais de direitos humanos sobre a legislação infraconstitucional, aplicado- se a regra do lex posterior derrogatlegi priori.

Tal entendimento, entretanto, restou prejudicado pelo advento do § 3º do art. 5º, da CF, vez que é inegável o fato de que tal dispositivo conferiu aos tratados internacionais de direitos humanos uma importância maior em relação aos acordos internacionais em geral, que possuem mera força de lei ordinária.

3.2.4 – O posicionamento atual do STF: A supralegalidade dos tratados internacionais que versem sobre direitos humanos

A quarta e última corrente é a que propugna pelo entendimento de que as convenções internacionais sobre direitos humanos possuem hierarquia supralegal e infraconstitucional. Isso significa que tais atos normativos deveriam sucumbir perante a supremacia da Constituição Federal, mas não poderiam perder sua eficácia por força de uma mera lei ordinária.

No âmbito jurisprudencial, esse entendimento começou a tomar forma durante o julgamento do RHC 79785 RJ, quando o Ministro Sepúlveda Pertence teceu as seguintes palavras em seu voto:

Certo, com o alinhar-me ao consenso em torno da estatura infraconstitucional, na ordem positiva brasileira, dos tratados a ela incorporados, não assumo compromisso de logo — como creio ter deixado expresso no voto proferido na ADInMc 1.480 — com o entendimento, então majoritário — que, também em relação às convenções internacionais de proteção de direitos fundamentais — preserva a jurisprudência que a todos equipara hierarquicamente às leis.

      Na ordem interna, direitos e garantias fundamentais o são, com grande frequência, precisamente porque — alçados ao texto constitucional — se erigem em limitações positivas ou negativas ao conteúdo das leis futuras, assim como à recepção das anteriores à Constituição (...).

      Se assim é, à primeira vista, parificar às leis ordinárias os tratados a que alude o art. 5º, § 2º, da Constituição, seria esvaziar de muito do seu sentido útil a inovação, que, malgrado os termos equívocos do seu enunciado, traduziu uma abertura significativa ao movimento de internacionalização dos direitos humanos”[28]

Porém, tal posição da Suprema Corte somente foi consolidada no Recurso Extraordinário 466.343, cuja ementa aqui se reproduz:

PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE n. 349.703 e dos HCs n. 87.585 e n. 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito.[29]

3.3 – O entendimento jurisprudencial atual acerca da prisão civil do depositário infiel

Como pôde ser visto até aqui, o posicionamento mais recente do STF sobre tema é o de conferir ao tratados internacionais que versem sobre direitos humanos hierarquia infraconstitucional e supralegal. Desse modo, o que se tem é que, apesar de não ter força suficiente para revogar o inciso LXVII, do art. 5º, da Carta de 1988, tais convenções internacionais são capazes de paralisar quaisquer dispositivos legais que contrariem seu texto. Isso significa que toda a legislação infraconstitucional que regulava a prisão do depositário infiel em qualquer de suas hipóteses sofreu incidência do que foi chamado de “efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria”.[30]

Sobre o autor
Thiago Guntzel de Souza

Acadêmico de Direito na Universidade de Brasília - UnB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Thiago Guntzel. Análise crítica da prisão civil do depositário infiel no âmbito jurisprudência constitucional brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3768, 25 out. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25610. Acesso em: 22 nov. 2024.

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