CAPÍTULO 3 DA (IR)RECORRIBILIDADE DAS DECISÕES INTERLOCUTÓRIAS NOS JEC’S
3.1 Preclusão das decisões interlocutórias
Preclusão, na clássica definição de Chiovenda[45], é “a perda, ou extinção, ou consumação de uma faculdade processual”. Trata-se de condição “sine qua non” para o regular desenvolvimento do feito, porquanto a ausência de preclusão conduziria à eternização do processo, e, por conseguinte, do litígio.
O processo tradicional, severamente marcado pelo formalismo, é uma estrutura progressiva de preclusões. Nesse sentido, o eventual inconformismo da parte contra uma determinada decisão interlocutória demanda, em regra, a interposição de agravo retido[46], cuja finalidade é evitar a preclusão sobre a matéria decidida. Não sobrevindo o aludido recurso no prazo de 10 (dez) dias (art. 522 do CPC), a decisão é consolidada, não admitindo futuras discussões[47].
O mesmo não ocorre, no entanto, no procedimento sumaríssimo. Conforme exaustivamente exposto, a Lei n. 9.099/95 não previu um instrumento processual específico para atacar as decisões interlocutórias, o que não significa que elas não estejam sujeitas a um duplo juízo de mérito, mas apenas que não podem ser impugnadas de forma imediata e em separado.
Por essa razão, a quase totalidade da doutrina e da jurisprudência tem se filiado ao entendimento de que as decisões proferidas incidentalmente nos processos em trâmite nos Juizados não sofrem os efeitos da preclusão, uma vez que podem ser impugnadas, em sede de preliminar, no momento da interposição do recurso inominado. Nesse sentido, confiram-se os ensinamentos do professor Alexandre Freitas Câmara[48]:
[...] Aplica-se, pois, em sede de Juizados Especiais Cíveis, a máxima estabelecida por Liebman para o processo civil comum italiano: os vícios do processo, uma vez proferida a sentença, transformam-se em razões de apelação. Significa isto dizer que, uma vez proferida a decisão interlocutória, contra ela não cabe recurso mas, por outro lado, a matéria sobre a qual a mesma versa não fica coberta pela preclusão. Deste modo, uma vez proferida a sentença, será possível, no recurso que contra ela venha a ser interposto, sejam suscitadas todas as matérias que tenham sido objeto das decisões interlocutórias proferidas ao longo do processo [...].
Felippe Borring Rocha[49], ao discorrer sobre a não preclusão dessas decisões, vincula a adoção do princípio da irrecorribilidade das interlocutórias à necessidade de evitar que a concentração dos atos e a identidade física do juiz sejam comprometidas. De fato, possibilitar que, a cada instante, o curso do procedimento fosse interrompido em razão dos recursos interpostos contra as decisões interlocutórias comprometeria não só os aspectos supracitados, corolários do princípio da oralidade, como também os postulados da celeridade e da simplicidade, insculpidos no art. 2º da Lei n. 9.099/95.
Em sentido contrário, no entanto, está o posicionamento de uma doutrina minoritária, que invoca a utilização do agravo retido no âmbito dos Juizados Especiais, tal qual no processo comum, com o propósito de evitar os efeitos da preclusão. Essa é a tese defendida por Humberto Theodoro Júnior[50], in verbis:
[...] Havendo risco de configurar-se a preclusão em prejuízo de uma das partes, caberá o recurso de agravo, por invocação supletiva do Código de Processo Civil.
Para manter-se fiel ao princípio da oralidade, no entanto, o agravo deverá, no Juizado Especial, ser utilizado apenas sob a forma retida, evitando delongas e tumultos que seriam incompatíveis com o princípio da simplicidade e celeridade preconizados pelo art. 2º da Lei nº 9.099. [...]. (Destacado no original)
Tal controvérsia seria facilmente evitada caso o legislador tivesse tido a cautela de excepcionar a regra da preclusão no microssistema dos Juizados, ou seja, deveria ter sido expressamente consignado no texto da Lei n. 9.099/95 que as interlocutórias, ao contrário do que ocorre no processo tradicional, não se sujeitam aos efeitos da preclusão. No entanto, possivelmente por considerar que a previsão supracitada é decorrência lógica dos princípios norteadores dos Juizados, notadamente da oralidade, optou o legislador por não fazê-lo, de modo que coube à doutrina e à jurisprudência a tarefa de sedimentar esse entendimento. Confira-se, nesse sentido, a crítica de Joel Dias Figueira Júnior e outro[51], ad litteram:
[...] Contudo, por ser o princípio da eventualidade (ou preclusão) norteador de todo o sistema processual civil, seria de boa técnica que o legislador tivesse tomado o cuidado de excepcioná-lo explicitamente.
[...]
Porém, pela incidência do princípio da oralidade, não há que se cogitar de preclusão em sede de Juizados Especiais. [...].
Conclui-se, portanto, que, no microssistema dos Juizados Especiais Cíveis, as decisões interlocutórias só se consolidam quando do trânsito em julgado da sentença (caso não seja interposto recurso inominado ou, ainda que havendo recurso pendente de julgamento, esse não devolva à Turma Recursal a reanálise das interlocutórias) ou do acórdão (caso o recurso inominado provoque a Turma acerca do acerto/desacerto de tais decisões).
3.2 Decisões hábeis a transpor a barreira da irrecorribilidade
Aparada essa aresta, avança-se para a questão que ensejou a realização deste trabalho: o princípio da irrecorribilidade das interlocutórias frente a decisões que podem acarretar às partes dano de difícil ou de incerta reparação. Primeiramente, há de salientar que a regra da irrecorribilidade foi pensada e desenvolvida para um sistema que adotasse o princípio da oralidade em sua forma plena, o que pressupõe a concentração dos atos processuais.
Dessa feita, partindo-se da premissa de que todo o procedimento concentrar-se-ia numa única audiência (audiência una de conciliação, instrução e julgamento), na qual o insucesso da conciliação conduziria à imediata instrução e julgamento do feito, conforme dicção do caput do art. 27 da Lei n. 9.099/95, não haveria que se cogitar de um recurso para atacar as interlocutórias, porquanto todos os incidentes ocorridos durante a audiência seriam decididos por meio de sentença, cuja via de impugnação, repita-se, é o recurso inominado. Contudo, a prática revelou realidade distinta do sistema idealizado pelo legislador. Assim, razões diversas, tais como o elevado índice de demandas, a falta de estrutura, bem como o ranço dos magistrados, serventuários e advogados, acostumados aos tecnicismos das Varas Cíveis, conduziram ao desvirtuamento do espírito da lei.
A fragmentação da audiência una bem ilustra essa distorção, pois, na prática, a exceção prevista pelo legislador no parágrafo único do dispositivo legal supracitado[52] passou a ser a regra nos Juizados Especiais Cíveis, sendo que, não raras vezes, o hiato entre a conciliação e a instrução, para o qual o legislador instituiu o intervalo máximo de 15 (quinze) dias, perdura por meses ou até anos, o que, além de constituir ofensa direta a todos os postulados de regência dos Juizados, aumenta substancialmente o número de decisões interlocutórias proferidas ao longo do procedimento.
De toda sorte, em que pese a ofensa a mens legis, doutrina e jurisprudência, conforme já explicitado, perfilham o entendimento da irrecorribilidade imediata e em separado das interlocutórias. No entanto, tal princípio não é adotado de forma absoluta, porquanto há situações específicas em que a regra da impugnação pela via do recurso inominado revela-se totalmente inócua, e, por conseguinte, capaz de acarretar sérios prejuízos às partes.
Com efeito, quatro tipos de decisões costumam ser apontadas pela doutrina e pela jurisprudência como hábeis a quebrar a regra da irrecorribilidade, quais sejam: a decisão que defere ou indefere a antecipação dos efeitos da tutela; a que deixa de receber o recurso inominado; a relacionada aos efeitos em que o recurso inominado é recebido; e, por fim, as decisões proferidas ao longo do processo de execução, o que engloba tanto as provenientes de execução autônoma quanto as de cumprimento de sentença.
Alexandre Freitas Câmara[53] faz interessante observação ao pontuar que “[...] Teria sido certamente melhor que a lei previsse a irrecorribilidade das interlocutórias apenas quando se tratasse de atividade cognitiva”. Nessa esteira, não se afigura razoável impor à parte prejudicada que aguarde a sentença que põe termo à execução, que nada mais é do que um ato formal de declaração de encerramento do processo, para que, só então, em sede de recurso inominado, questione a plausibilidade da decisão que deferiu penhora on line em conta-salário, por exemplo.
Também seria desprovida de qualquer lógica a situação em que eventual decisão pelo não recebimento de recurso inominado, fundada em intempestividade, tivesse que aguardar o encerramento da fase de cumprimento de sentença para que pudesse ser revista mediante interposição de um segundo recurso inominado. Imagine-se que, em sendo provido o recurso, ter-se-ia o absurdo de anular meses ou até anos despendidos com o cumprimento de sentença. Tudo teria sido em vão e voltar-se-ia para o reexame da sentença que apreciou o mérito da demanda.
No que tange à antecipação de tutela, consigne-se que a Lei n. 9.099/95 silenciou acerca do cabimento ou não dessa medida nos Juizados Especiais Estaduais, sendo esse outro tema bastante nebuloso na comunidade forense. Não se pretende com esse estudo analisar o acerto ou desacerto do (in) deferimento de tal pedido. Fato é que muitos magistrados, considerando o lapso temporal entre a audiência de conciliação e a prolação de sentença, bem como a possibilidade de imposição de sérios gravames às partes, deferem a medida. Nesse sentido, não seria prudente admitir a concessão de antecipação dos efeitos da tutela no microssistema dos Juizados sem que a parte contrária, a qual também pode sofrer graves danos com a decisão positiva (deferimento), pudesse se utilizar de algum remédio ou antídoto para combater a decisão hábil a lhe causar dano de difícil ou de incerta reparação, sob pena de comprometimento do equilíbrio processual.
Contudo, voltando para as quatro decisões identificadas pela doutrina e pela jurisprudência como passíveis de impugnação imediata (a que defere ou indefere antecipação de tutela, a que deixa de receber o recurso inominado, a relacionada aos efeitos em que o inominado é recebido e as provenientes da execução), exsurge um novo questionamento: qual é o meio de impugnação adequado para atacar tais decisões? E é sobre esse ponto que paira grande divergência doutrinária e jurisprudencial, o que tem sido alvo de muitas críticas, ante a insegurança que acarreta no meio jurídico.
3.3 Remédios processuais cabíveis
Três costumam ser as vias impugnativas consideradas apropriadas para atacar as decisões que fogem à regra da irrecorribilidade. São elas: agravo de instrumento, mandado de segurança e reclamação regimental. Assim, será realizado um detido estudo acerca desses remédios processuais, o que se fará pela análise conjunta de dois critérios: eficácia da medida do ponto de vista processual, ou seja, aptidão dessas vias impugnativas para provocar a reforma ou anulação da decisão guerreada; e compatibilidade de tais meios de impugnação com o microssistema dos Juizados Especiais Cíveis.
Também será dado especial destaque ao Recurso Extraordinário (RE) 576847, de relatoria do Exmo. Ministro Eros Grau, no qual o Plenário do Supremo Tribunal Federal proferiu acórdão, com repercussão geral reconhecida, assentando importante entendimento acerca da matéria em questão.
3.3.1 Agravo de instrumento
Aqueles que defendem que o agravo de instrumento é o meio processual adequado para atacar as decisões supracitadas invocam a aplicação subsidiária do CPC, notadamente o art. 522[54], 2ª parte, do diploma processual civil.
Alexandre Freitas Câmara e Bruno Garcia Redondo[55], ao discorrerem sobre a hipótese específica de decisão que defere ou indefere antecipação de tutela, reforçam a tese supracitada com o argumento de que as Leis n. 9.099/95 e 10.259/01, as quais disciplinam os Juizados Especiais Estaduais e Federais, respectivamente, formam um único estatuto. Dessa feita, considerando que a Lei dos Juizados Federais, em seus arts. 4º e 5º[56], admite recurso contra a decisão que (in)defere liminar, essa disposição deveria ser aplicável também aos Juizados Estaduais, de modo que fosse estabelecido entre esses dois sistemas normativos um “diálogo das fontes”.
Outro argumento que costuma ser apresentado pelos adeptos dessa teoria é o de que o agravo de instrumento, em uma análise comparativa com o mandado de segurança, revela-se mais compatibilizado ao microssistema dos Juizados, visto que a admissão do manejo do writ como forma de se suprir a lacuna do agravo de instrumento ensejaria um injustificado e indesejável alargamento do prazo recursal, o qual passaria de 10 (dez) para 120 (cento e vinte) dias.
Nesse sentido, estabelece o enunciado n. 2 do Primeiro Colégio Recursal de São Paulo que: “É admissível, no caso de lesão grave e difícil reparação, o recurso de agravo de instrumento no juizado especial cível”. Dentre os autores que perfilham esse entendimento, podemos citar: Joel Dias Figueira Júnior[57], Alexandre Freitas Câmara[58], Ricardo Cunha Chimenti[59], Pimentel Bernardo Souza[60], Ronaldo Frigini[61] e J. S. Fagundes Cunha[62].
Já os que refutam a possibilidade de manejo de agravo de instrumento nos Juizados Especiais Cíveis alicerçam o seu posicionamento sob dois pilares: o primeiro, é o de que inexiste previsão legal do aludido recurso no texto da lei especial; o segundo, é que, tratando-se de matéria recursal, não há que se falar em aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, sob pena de violação dos princípios norteadores e possível colapso do microssistema. É essa a inteligência do Enunciado n. 15 do FONAJE, o qual estatui que “Nos Juizados Especiais não é cabível o recurso de agravo”.
Noutro giro, cumpre salientar que, na hipótese específica de decisão que nega seguimento a recurso extraordinário, o c. Supremo Tribunal de Federal editou a Súmula 727, in verbis: “Não pode o magistrado deixar de encaminhar ao Supremo Tribunal Federal o agravo de instrumento interposto da decisão que não admite o recurso extraordinário, ainda que referente a causa instaurada no âmbito dos Juizados Especiais” (Grifou-se).
3.3.2 Mandado de segurança como sucedâneo recursal
A ausência de previsão legal de recurso contra as decisões interlocutórias proferidas em sede de Juizados Especiais aliada ao verbete n. 267 do Supremo Tribunal Federal deu origem a uma segunda corrente, a qual admite o emprego do mandado de segurança como sucedâneo recursal.
Com efeito, dispõe a aludida Súmula do Pretório Excelso que “não cabe mandado de segurança contra ato judicial passível de recurso ou correição”. Então, por uma interpretação a contrario sensu, pode-se dizer que contra ato judicial irrecorrível cabe mandado de segurança. Sob essa ótica, no microssistema instituído pela Lei n. 9.099/95, o mandamus supriria a lacuna deixada pelo agravo de instrumento.
Sustenta-se, ainda, que o mandado de segurança, na qualidade de remédio constitucional, jamais pode ser excluído de qualquer microssistema, bem como o fato de que seria incoerente admiti-lo no procedimento comum, que conta com um vasto número de recursos, mas excluí-lo dos Juizados Especiais, cujo sistema recursal é bastante reduzido.
Questão muito controvertida, mas hoje já superada, girou em torno da competência para o processamento e o julgamento do mandamus. Ou seja, impetrado o writ contra ato de juiz do Juizado Especial ou da Turma Recursal, quem seria o órgão competente para análise do feito: Tribunal de Justiça ou Turma Recursal?
Os adeptos de que a competência seria do Tribunal de Justiça fundamentavam o seu entendimento no princípio da hierarquia, porquanto, sendo as Turmas Recursais compostas por magistrados em exercício na primeira instância, não poderia a decisão proferida pelo juiz a quo ser revista, pela via do mandamus, por juízes em exercício no mesmo grau de jurisdição em que a autoridade apontada como coatora.
No entanto, prevaleceu a tese de que tal atribuição caberia à Turma Recursal, sob o fundamento de que os Tribunais locais não detêm competência em matéria de Juizados, uma vez que as Turmas representam a última instância ordinária desse microssistema. Ademais, no que tange à hierarquia, embora não haja hierarquia funcional entre os juízes singulares e os membros das Turmas, existe hierarquia administrativa entre tais magistrados. Nessa senda, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 376, cuja redação ora se colaciona: “Compete a turma recursal processar e julgar o mandado de segurança contra ato de juizado especial”.
Agasalham a tese de cabimento do mandado de segurança nos Juizados Especiais Cíveis os seguintes doutrinadores: Cândido Rangel Dinamarco[63], Roberto Portugal Bacellar[64], Mantovanni Colares Cavalcante[65] e Luiz Cláudio Silva[66].
Por fim, não se poderia concluir o presente tópico sem registrar que o entendimento dessa corrente, permissa venia, não parece ser o mais adequado. É que partir da premissa de que o agravo, na modalidade instrumental, é incompatível com a oralidade e celeridade perquiridas pela Lei n. 9.099/95, para defender o manejo do mandado de segurança com o fito de suprir a lacuna de tal recurso, é no mínimo contraditório. Ora, se o agravo de instrumento, cujo prazo de interposição é de 10 (dez) dias, não se coaduna com o microssistema em questão, seria o mandado de segurança, o qual pode ser interposto num prazo decandencial de 120 (cento e vinte dias), a solução adequada? Some-se a isso o fato de que o uso do mandamus como sucedâneo recursal desvirtua a natureza e a finalidade dessa ação excepcional, a qual só deveria ser manejada para atacar atos jurisdicionais carregados de teratologia contra direito líquido e certo individual do cidadão[67].
3.3.3 Reclamação regimental ou Correição Parcial
Uma terceira corrente, calcada na ausência de previsão legal do agravo de instrumento na Lei n. 9.099/95 e na incompatibilidade do mandado de segurança com o microssistema em exame, em combinação com as disposições contidas nos Regimentos Internos das Turmas Recursais, admite a interposição de reclamação regimental[68] para rever determinadas decisões.
Cumpre esclarecer que o remédio em análise não se confunde com a reclamação constitucional, prevista nos arts. 102, inc. I, alínea “l”, 103-A, § 3º, e 105, inc. I, alínea “f”, todos da Lei Maior, a qual é de competência originária do STJ ou do STF e visa à preservação de suas competências, bem como à garantia da autoridade de suas decisões.
No que tange à natureza jurídica da reclamação, é interessante trazer à baila o entendimento da Corte Suprema, exarado por ocasião do Julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) n. 2.212-1/CE[69], que assim se manifestou: “A natureza jurídica da reclamação não é a de um recurso, de uma ação e nem de um incidente processual. Situa-se ela no âmbito do direito constitucional de petição previsto no artigo 5º, XXXIV da Constituição Federal...”.
Aparadas essas arestas, confira-se, por todos, a redação do artigo 14 do Regimento Interno das Turmas Recursais do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, in verbis:
Art. 14. Admitir-se-á reclamação contra ato judicial que contenha erro de procedimento e que, à falta de recurso específico, puder causar dano irreparável ou de difícil reparação.
§ 1º O prazo para interposição de reclamação será de 5 (cinco) dias, contados da ciência do ato.
§ 2º A petição deverá conter o nome e o endereço completos da parte contrária ou de seu advogado e vir acompanhada de cópia do ato impugnado, da inicial que servirá de contrafé e dos demais documentos essenciais à compreensão do pedido.
§ 3º O relator indeferirá, de plano, a petição inicial se não couber reclamação ou se vier desacompanhada de qualquer dos documentos a que se refere o parágrafo anterior (Sem destaque no original).
Da leitura do dispositivo supracitado, extraem-se duas conclusões: a primeira, é que o processamento da reclamação é muito semelhante ao do agravo na modalidade instrumental, porquanto é formado um instrumento, o qual será dirigido à Turma Recursal; a segunda, e mais importante, é que, para ser conhecida, a reclamação precisa atender a um pressuposto de ordem objetiva, qual seja existência de error in procedendo, que nada mais é do que um vício decorrente de violação a norma processual (vício formal). Assim, a reclamação regimental tem por escopo impugnar decisão teratológica, ou que cause tumulto ou subversão da ordem processual. Colaciona-se, a título de elucidação, ementas de julgados das Turmas Recursais dos Juizados Especiais do Distrito Federal e dos Territórios:
RECLAMAÇÃO. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. DECISÃO QUE REVOGA SENTENÇA ANTERIOR. VIOLAÇÃO AO ARTIGO 463, I e II, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. RECLAMAÇÃO CONHECIDA E PROVIDA.
1 - Decisão que revoga, de ofício, a própria sentença.
2 - Assinada e publicada a sentença, o juiz sentenciante não pode alterar nem modificar o seu conteúdo fora das hipóteses do art. 463, do CPC.
3 - Reclamação conhecida e provida[70].
PROCESSUAL CIVIL. JUIZADOS ESPECIAIS. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA IRRECORRÍVEL, EM NÍVEL DE JUIZADO ESPECIAL, QUE NÃO RESTITUI PRAZO PERDIDO PARA A INTERPOSIÇÃO DE RECURSO INOMINADO. CABIMENTO DA RECLAMAÇÃO. AUSÊNCIA DE ERROR IN PROCEDENDO. RECLAMAÇÃO NÃO CONHECIDA. UNÂNIME.
1. Proferida decisão interlocutória, em processo que corre em Juizado Especial, que não restitui prazo para a interposição de recurso inominado, cabível é a Reclamação Regimental, consolidado que se encontra o princípio processual da irrecorribilidade das interlocutórias nesta jurisdição especial, em combinação com o disposto no artigo 14, caput, do Regimento Interno das Turmas Recursais dos Juizados Especiais do Distrito Federal e dos Territórios.
2. A Reclamação, contudo, depende de que se ache preconstituidamente demonstrado que o erro de procedimento (que não é erro de julgamento ou erro de avaliação judicial de pressupostos processuais em nenhuma hipótese), ou erro formal de conclusão do feito (portanto, não erro quanto ao mérito da questão, não importando a sua forma de desate, se despacho de expediente ou interlocutório) se faça presente.
3. Inexistindo error in procedendo e não sendo a Reclamação substituta de recurso, em qualquer de suas modalidades, dela não se conhece como apta a atacar o mérito da controvérsia.
4. Reclamação não conhecida. Unânime[71].
Registre-se, por oportuno, que a reclamação não pode ser utilizada indiscriminadamente, de modo a se tornar um sucedâneo do agravo de instrumento. Nessa senda, ausente o erro de procedimento, ainda que se esteja diante das quatro decisões citadas como sujeitas à impugnação imediata e mesmo que configurado o erro de julgamento, não se admitirá o manejo de reclamação.
3.3.4 RE 576847/BA
Em maio de 2009, o Plenário do. Supremo Tribunal Federal, por ocasião da apreciação do Recurso Extraordinário (RE) 576847, de relatoria do Exmo. Ministro Eros Grau, assentou, por maioria de votos[72], o posicionamento de absoluta inviabilidade de impugnação imediata de decisão interlocutória proferida em Juizado Especial Estadual. Confira-se a ementa do aludido julgado, in verbis:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PROCESSO CIVIL. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. MANDADO DE SEGURANÇA. CABIMENTO. DECISÃO LIMINAR NOS JUIZADOS ESPECIAIS. LEI N. 9.099/95. ART. 5º, LV DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO.
1. Não cabe mandado de segurança das decisões interlocutórias exaradas em processos submetidos ao rito da Lei n. 9.099/95.
2. A Lei n. 9.099/95 está voltada à promoção de celeridade no processamento e julgamento de causas cíveis de complexidade menor. Daí ter consagrado a regra da irrecorribilidade das decisões interlocutórias, inarredável.
3. Não cabe, nos casos por ela abrangidos, aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, sob a forma do agravo de instrumento, ou o uso do instituto do mandado de segurança.
4. Não há afronta ao princípio constitucional da ampla defesa (art. 5º, LV da CB), vez que decisões interlocutórias podem ser impugnadas quando da interposição de recurso inominado. Recurso extraordinário a que se nega provimento[73].
Primeiramente, cumpre salientar que a decisão em comento apreciou a hipótese específica de impugnação de decisão interlocutória proferida no curso do processo de conhecimento. No caso, a recorrente, TELEMAR NORTE LESTE S/A, insurgia-se contra a decisão da 5ª Turma Recursal Cível e Criminal do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia que indeferiu, de plano, a petição inicial de mandado de segurança impetrado com o intuito de atacar a decisão do juízo a quo que deferiu antecipação dos efeitos da tutela.
Nesse sentido, a Suprema Corte, ao examinar o caso supracitado, entendeu por bem não flexibilizar a regra da irrecorribilidade imediata, alicerçando o seu posicionamento em cinco fundamentos distintos, quais sejam: o princípio da celeridade (“A Lei n. 9.099/95 está voltada à promoção da celeridade no processamento e julgamento de causas cíveis de complexidade menor. Daí ter consagrado a regra da irrecorribilidade das decisões interlocutórias, inarredável”); a incompatibilidade do prazo para agravar e para impetrar mandado de segurança com o procedimento instituído pela Lei n. 9.099/95 (“Os prazos para agravar – de 10 dias [art. 522 do CPC] – e para impetrar mandado de segurança – de 120 dias [art. 18 da Lei n. 1.533/51] – não se coadunam com os fins aos quais se volta a Lei 9.099/1995”); a facultatividade dos Juizados (“... a opção pelo rito sumaríssimo é faculdade das partes, com as vantagens e limitações que a sua escolha acarreta”); a incompetência das Turmas Recursais para o processamento e julgamento do writ (“... a admissão do mandado de segurança na hipótese dos autos importaria a ampliação da competência dos juizados especiais, que cabe exclusivamente ao Poder Legislativo”); e ausência de violação ao princípio constitucional da ampla defesa (“... não há, na hipótese, afronta ao princípio constitucional da ampla defesa, vez que decisões interlocutórias podem ser impugnadas quando da interposição de recurso inominado”).
Tal entendimento, contudo, tem sido alvo de muitas críticas, porquanto, em que pesem os seus bem lançados fundamentos, não soluciona, na prática, os impasses decorrentes da impossibilidade de impugnação imediata das quatro decisões apresentadas como hábeis a transpor a barreira da irrecorribilidade. Além disso, a própria jurisprudência, mesmo após o julgamento em questão, no qual foi adotada a técnica prevista no art. 543-B do CPC, que permite a extensão da eficácia da decisão a todos os demais “recursos repetitivos” que versem sobre idêntica controvérsia, tem se mostrado muito oscilante.
Mas, então, qual seria a solução prática para por termo a essa celeuma reinante na doutrina e nos pretórios?
Bom, apenas com o intuito de provocar uma reflexão, sem, em hipótese alguma, esgotar o controvertido assunto, acredita-se que um bom caminho seria uma alteração legislativa que permitisse um recurso[74] imediato para ataque das decisões oriundas do processo de execução (o que abrangeria tanto as decorrentes de execução autônoma quanto as emanadas da fase de cumprimento de sentença), bem como contra as decisões que negam seguimento ao recurso inominado da parte e às relativas aos efeitos em que tal recurso é recebido. A contrario sensu, seria o mesmo que dizer que o princípio da irrecorribilidade imediata só seria aplicado às interlocutórias proferidas na fase cognitiva do processo.
No entanto, ainda que viesse a ser promovida essa alteração na Lei n. 9.099/95, haveria ainda outra questão a ser resolvida, pois permaneceria a problemática acerca das decisões que (in) deferem a antecipação dos efeitos da tutela. Nesse caso, tem-se que a saída para o impasse dependeria da resolução de outra questão não menos polêmica nos Juizados Especiais Cíveis, atinente à viabilidade ou não do pleito de antecipação de tutela nesse microssistema. Dessa feita, caso se entendesse pela viabilidade da medida, dever-se-ia admitir um remédio ou antídoto para combater a referida decisão. Já se o entendimento fosse pelo não-cabimento, não haveria que se cogitar em possibilidade de recurso contra tal decisão.
Frise-se, por fim, que nada impede que futuramente, ao apreciar a viabilidade de impugnação imediata contra decisão oriunda do processo de execução ou da fase de cumprimento de sentença, o posicionamento do Pretório Excelso seja outro. Ademais, também não há óbice para que o próprio STF reveja o seu entendimento no que tange à fase cognitiva.