Resumo: A noção de contrato, assim como outros institutos jurídicos, sofreu transformações de acordo com o momento histórico da sociedade em que se insere. Com a evolução da teoria contratual, especialmente o advento do Código Civil de 2002, percebe-se uma evolução na teoria dos contratos, com a inserção de novos princípios contratuais, tais como a boa-fé objetiva, a função social do contrato e o princípio da equivalência material, além dos já consagrados princípios fundamentais da autonomia da vontade, do pacta sunt servanda e da relatividade dos efeitos. Isso evidencia uma maior preocupação com os interesses sociais envolvidos, e a tentativa de realização de contratações mais justas e eqüitativas.
Palavras-chave: contrato; função social; boa-fé objetiva; equivalência material.
Introdução
O contrato, além de ser – ao lado da família e da propriedade – um dos pilares do direito privado, é um dos institutos jurídicos mais antigos e relevantes, sempre estreitamente relacionado à realidade social. Diante de sua ligação com a sociedade em que está inserido, o contrato vem sofrendo inúmeras transformações em sua configuração, para se adaptar aos anseios sociais de cada momento histórico.
Mesmo com as transformações sobrevindas à concepção de contrato, especialmente no decorrer no século XX, o advento do Código Civil de 2002 transformou a teoria contratual, ao inserir no ordenamento jurídico positivo a boa-fé objetiva e a função social do contrato, e manifestar, através de vários dispositivos, a preocupação com o equilíbrio material nas contratações.
Nesse sentido, este trabalho tem o intuito de analisar as transformações ocorridas na concepção de contrato, especialmente com o advento do Código Civil brasileiro de 2002, que trouxe novos princípios à teoria contratual. Para o desenvolvimento desse raciocínio, o estudo divide-se em duas partes.
A primeira parte trata das tendências e perspectivas do direito contratual, fazendo um breve paralelo entre o contrato em sua perspectiva clássica e a concepção contemporânea de contrato, trazendo os objetivos a serem alcançados em cada perspectiva de contrato.
A segunda parte aborda os denominados princípios sociais dos contratos: o princípio da boa-fé objetiva, a função social do contrato e o princípio da equivalência material, que, aliados aos princípios tradicionais dos contratos – a autonomia da vontade, o pacta sunt servanda e a relatividade dos efeitos – regulam as relações contratuais contemporâneas.
A importância desse artigo, ressalte-se, é demonstrar a transformação ocorrida na concepção de contrato, que não pode mais ser percebida de forma restrita, com o caráter formalista e individualista de outrora, dando lugar a uma nova concepção, em que valores éticos e sociais impostos recentemente pela legislação demonstram uma maior preocupação com os interesses sociais envolvidos, e a tentativa de realização de contratações mais justas e eqüitativas.
1 Tendências e perspectivas do direito contratual
O mundo contemporâneo impõe uma nova concepção de contrato, onde determinados ditames, tais como a boa-fé objetiva, a eqüidade das prestações, a justiça contratual e a finalidade do contrato – devem ser obrigatoriamente observados, revelando um respeito maior ao interesse coletivo em detrimento do individual.
Na concepção liberal, o fundamento desse instituto era a autonomia da vontade, visto que as partes podiam convencionar livremente, sem a interferência estatal ou qualquer preocupação com a realização de justiça contratual. Foi o reinado do princípio do pacta sunt servanda, pelo qual o contrato fazia leis entre as partes, e era considerado intangível, já que se acreditava que o contrato era justo pelo simples fato de ter sido querido pelas partes.
Na atual concepção, a vontade continua presente na formação dos negócios jurídicos, mas perde parte de sua importância e de sua força, visto que é a lei que vai legitimar e proteger o vínculo contratual, ao delimitar o poder da vontade.[2] Assim, a vontade das partes não é mais a única fonte de interpretação de um instrumento contratual – o que demonstra um respeito maior pelos interesses sociais envolvidos, pelas legítimas expectativas que as partes depositaram no vínculo, e da busca do equilíbrio contratual. O interesse social passa a fazer parte dos elementos que configuram o suporte fático do contrato, que perde seu caráter exclusivo de instrumento da autonomia privada.[3]
Nesse sentido, ressalta Cláudia Lima Marques,
a nova concepção de contrato é uma concepção social deste instrumento jurídico, para a qual não só o momento da manifestação da vontade (consenso) importa, mas onde também e principalmente os efeitos do contrato na sociedade serão levados em conta e onde a condição social e econômica das pessoas nele envolvidas ganha em importância.[4]
Diante de tantas transformações sociais ocorridas – tais como a crescente industrialização e a massificação das relações –, alguns falam em crise do contrato. No entanto, não é o instituto do contrato que se encontra em crise, mas a sua concepção tradicional.[5] O contrato acompanha as exigências de cada momento histórico, por isso deve se adequar às necessidades contemporâneas – o que não significa, obviamente, o seu fim, mas apenas uma mudança de modelo. Como bem expressa Enzo Roppo, “o contrato não está ‘morto’, mas está simplesmente ‘diferente’ de como era no passado”.[6]
A teoria contratual contemporânea não está baseada apenas nos princípios liberais – autonomia da vontade, força obrigatória das convenções, e relatividade dos efeitos – que configuravam o contrato em sua concepção tradicional. A estes foram acrescidos novos princípios, que buscam aprimorar a teoria dos contratos, e adequá-la aos valores éticos e sociais impostos pelo Estado Democrático de Direito.
Os princípios sociais do contrato – o equilíbrio econômico, a boa-fé objetiva e a função social – não substituem os princípios liberais clássicos, mas limitam seu alcance e conteúdo.[7] Com a imposição desses novos princípios, ressalte-se, há uma atenuação dos princípios tradicionais, sem, no entanto, excluí-los. Busca-se a justiça contratual, mas sem se perder de vista a segurança jurídica.[8] O Código Civil brasileiro de 2002 traz de modo expresso os três novos princípios que regem o direito contratual – a boa-fé objetiva, o equilíbrio econômico e a função social do contrato – que serão tratados a seguir.
2 Princípios sociais dos contratos
2.1 O princípio da boa-fé objetiva
Devido a importância que a boa-fé possui dentro do atual cenário do direito contratual, seria desejável iniciar a abordagem desse princípio com um conceito, com um delineamento preciso de sua noção. Ocorre que diante de sua grandeza, não é tarefa fácil realizar uma definição que não diminua sua importância ou restrinja seu alcance.[9] Mas na configuração da boa-fé objetiva, são inafastáveis as noções de probidade, honestidade, lealdade, e confiança, que devem nortear o comportamento das partes em todas as fases da contratação.[10]
Em um primeiro momento, é fundamental esclarecer que a boa-fé tratada nesse estudo é a boa-fé objetiva, que se distingue da outra espécie de boa-fé, a subjetiva. A boa-fé objetiva é o modelo de conduta social, standard jurídico, segundo o qual as partes, no contrato ou na relação obrigacional, devem agir com lealdade e correção. A boa-fé subjetiva é o estado de consciência, ou convencimento individual, ainda que equivocado, de agir em conformidade ao Direito. É aplicável, em regra, aos direitos reais, especialmente em matéria possessória.
A boa-fé subjetiva se refere à correta situação do sujeito na relação jurídica, e não ao conteúdo ou aos efeitos da relação em si, como é o caso da boa-fé objetiva. Uma das hipóteses em que pode se configurar a boa-fé subjetiva se refere a própria situação do sujeito, e consiste na crença ou ignorância de que não está prejudicando um interesse alheio tutelado pelo direito. A outra está fundada na aparência jurídica, ou seja, a crença ou o erro não se referem a situação do sujeito, mas a de quem com ele se relaciona.[11]
O Código Civil brasileiro de 2002 expressa a boa-fé em diversos dispositivos, e sob diferentes aspectos, através de suas diferentes funções no ordenamento jurídico – mas sempre estabelecendo uma conduta ética ao comportamento das partes envolvidas.[12]
O artigo 113 do Código Civil trata da boa-fé como norma de interpretação dos negócios jurídicos. A boa-fé hermenêutica já era prevista no artigo 131, inciso I, do Código Comercial, e podia ser encontrada em algumas decisões da jurisprudência pátria, mas de forma incipiente.
A atuação integradora da boa-fé se manifesta na atividade interpretativa do magistrado, especialmente quando se faz necessário preencher lacunas ou imprecisões do contrato. Ao interpretar as disposições de seu conteúdo, o juiz deve determinar o cumprimento de preceitos que não foram estabelecidos apenas através das declarações de vontade das partes, mas da imposição de ditames tais como a lealdade, a informação e a cooperação recíproca, exigidas em todas as relações obrigacionais.
O artigo 187 do Código Civil expressa a função limitativa da boa-fé, que serve como um limite interno ao direito subjetivo, como instrumento de controle de seu exercício, visando impedir o abuso de direito – ato ilícito que gera o dever de indenizar.
No artigo 422 do Código Civil, que dispõe “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé”, está a função integrativa da boa-fé, que impõe uma norma de conduta aos contratantes em todo o processo obrigacional.
A boa-fé objetiva impõe uma conduta correta, que serve para limitar a autonomia da vontade, e para criar novos deveres contratuais, chamados de deveres anexos.[13] Esses deveres também são chamados de secundários, laterais ou acessórios, por estarem em segundo plano em relação à obrigação principal, de cumprimento do objeto do contrato.
Esses deveres de conduta estão relacionados com a boa-fé pela imposição de agir com lealdade e licitude, respeitando os interesses do parceiro contratual. Assim, não é apenas o acordo de vontades que obriga os contratantes, pois, além das obrigações originadas pelo vínculo contratual, há de se observar o cumprimento dos deveres acessórios, tais como o dever de informar, o dever de cooperação ou lealdade, o dever de cuidado, entre outros.[14]
As regras secundárias de conduta são manifestações da boa-fé contratual, e expressam seu caráter mais saliente.[15] Seja como diretiva de interpretação ou como critério de comportamento, a boa-fé não se esgota na simples execução da prestação, e norteia a conduta dos contratantes desde as tratativas que precedem sua formação até o período pós-contratual.[16]
Assim, a prestação deve ser executada de acordo com o convencionado pelas partes, ou com o que estabelece a lei. Ainda que as partes não tenham estipulado a respeito da forma de cumprimento da prestação, e o ordenamento legal não apresentar regulação expressa, a boa-fé servirá de diretiva para o intérprete, especialmente ao que verossimilmente as partes entenderam ou puderam entender, agindo com cuidado e previsão. As regras secundárias de conduta se fundam em deveres de convivência e de solidariedade social.[17]
Como bem ressalta Luiz Guilherme Loureiro, o princípio da solidariedade social está previsto na Constituição Federal, no artigo 3º, inciso I, que dispõe que constitui um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil uma sociedade livre, justa e solidária. De modo que os contratantes devem apresentar condutas que visem não apenas o benefício de uma ou de ambas as partes envolvidas na contratação, mas de toda a coletividade, pois têm o compromisso social de colaborar para a consecução do bem comum.[18]
A boa-fé sempre foi significativa nas relações contratuais, mas sempre teve maior importância na interpretação do que na estrutura do contrato, determinando que deve prevalecer a intenção em relação à declaração literal, representando a necessidade e o interesse geral de segurança jurídica, onde os contratantes devem agir com lealdade e confiança, colaborando para a perfeita execução do contrato. A devida importância atualmente dada à boa-fé objetiva é conseqüência da compreensão da complexidade da relação obrigacional e seus múltiplos deveres, que evidencia a necessidade de fiscalizar o comportamento do contratante.
O princípio da boa-fé, na verdade, assegura a aplicação de outros princípios que informam o sistema jurídico, consagrados a partir do texto constitucional. Valoriza a pessoa humana, na medida em que limita o império da vontade individual, realidade não mais tolerada atualmente, onde o contrato passa a ser concebido como instrumento de realização social, havendo de efetivar-se com absoluta lealdade entre as partes e sobretudo para com o alter – indivíduo inserido no contexto social.
A imposição da boa-fé objetiva em toda a teoria dos contratos não substitui o acordo de vontades, que continua o fundamento das relações contratuais. Seu objetivo não é modificar a substância dos contratos, mas adequá-los, de forma que a sua concretização ocorra de forma ética, de acordo com os usos e costumes observados pelas pessoas honestas.[19]
2.2 A função social do contrato
A função social do contrato já era prevista na Constituição Federal de 1988 – ainda que por interpretação extensiva –, com base no preceito constitucional da função social da propriedade considerada em sentido amplo, estendida às obrigações e aos contratos, como concepção de justiça que orienta toda a ordem econômica.
Nesse sentido, ressalta Paulo Lobo: “A propriedade é o segmento estático da atividade econômica, enquanto o contrato é seu segmento dinâmico. Assim, a função social da propriedade afeta necessariamente o contrato, como instrumento que a faz circular”.[20]
Com o advento do Código Civil de 2002, a função social é prevista em disposição específica, através do artigo 421, que restringe expressamente os limites da liberdade contratual, ao dispor “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.
Desse modo, o contrato não se presta apenas a criar direitos e deveres para as partes individualmente consideradas, mas também o aspecto social que incrementa seu engajamento na sociedade globalizada. A função social é orientada pelos ideais do Estado social, que recoloca o ser humano como centro da preocupação do Direito, com objetivo de promover a dignidade humana e a justiça social. Pois, ao contrário do que ocorria no Estado liberal, o Estado social tem um papel intervencionista em relação a atividade negocial, estabelecendo através da legislação os fins sociais que os institutos privados devem obedecer, relativos “à dignidade da pessoa humana e à redução das desigualdades culturais e materiais”.[21]
A base da função social do contrato não é consenso entre os autores. Para alguns, a superação do individualismo e a imposição da solidariedade no direito contratual estariam baseadas no princípio da igualdade substancial.[22] Outros entendem que a função social do contrato é estabelecida constitucionalmente pelo caput do artigo 170 da Constituição Federal, que impõe que as relações contratuais não podem trazer qualquer prejuízo à sociedade, devendo se estabelecer em uma “ordem social harmônica”.[23]
Há, ainda, quem baseie a fundamentação constitucional do contrato nos princípios da dignidade da pessoa humana e da livre iniciativa, em que o contrato deve conciliar esses dois preceitos constitucionais, em busca do desenvolvimento nacional e da justiça social. Nesse sentido, sentencia João Hora Neto: “busca-se o contrato constitucionalizado, isto é, o contrato que concilie a livre iniciativa à justiça social, posto que permeado pelos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e o da livre iniciativa”.[24]
Conforme Paulo Nalin, ainda que haja certa dificuldade de uma definição conceitual, deve-se conceber que o princípio privado da boa-fé objetiva, fundado no valor constitucional da solidariedade, seria o fundamento mais sólido para caracterizar a função social do contrato.[25][26]
É importante ressaltar que, embora o contrato tenha uma função social a cumprir, sua função econômica não foi afastada. De maneira que, ao mesmo tempo em que deve haver a conciliação entre os interesses particulares e os da coletividade, os direitos individuais devem ser respeitados, vez que também protegidos constitucionalmente.[27] O contrato continua um instrumento eficaz na finalidade de possibilitar a circulação e acumulação de riquezas, mas, da mesma forma que a propriedade, atualmente é regulado e limitado, com o objetivo de alcançar sua função social.[28]
Apesar da redação do artigo 421 do Código Civil, entende-se que a função social não é o fundamento – a razão – do contrato, mas estabelece apenas um limite à sua execução.[29] A livre iniciativa, que compreende a liberdade de contratar, é valor social protegido pela Constituição Federal, que não pode ser obstado por tal limitação. Esse dispositivo não impõe apenas limites ao instituto do contrato, mas determina o compromisso dele com a coletividade.[30]
Para cumprir com sua função social, o contrato, ao realizar operações econômicas, deve realizar o equilíbrio contratual e favorecer o desenvolvimento e a justiça sociais. O contrato deve atingir o bem comum, favorecendo as partes envolvidas, e a sociedade como um todo. Ademais, deve atender os princípios fundamentais impostos pela Constituição Federal – tais como da dignidade da pessoa humana, do valor social do trabalho e da livre iniciativa, da solidariedade social.[31]
2.3 O princípio da equivalência material
O princípio da equivalência material é manifestação da busca da efetiva igualdade entre as partes. Quando a igualdade jurídico-formal característica da concepção liberal mostrou-se insuficiente para garantir o equilíbrio das prestações nos contratos, esse princípio passou a ter grande importância na teoria contratual. A equivalência material busca harmonizar os interesses das partes envolvidas, e realizar o equilíbrio real das prestações em todo o processo obrigacional.[32]
Esse princípio relativiza o princípio clássico do pacta sunt servanda, que determina que, estabelecidas as condições do acordo, essas possuem força obrigatória e devem ser cumpridas a qualquer custo, independentemente da realidade fática. Isso porque com o reconhecimento de que a simples igualdade formal não basta para se alcançar a justiça contratual, foi preciso levar em consideração as condições reais para a execução do contrato realizado. Assim, o contrato continua obrigatório, mas à medida que se mantenha dos limites de equilíbrio entre as prestações.
É importante ressaltar que o princípio da obrigatoriedade foi abrandado, mas não desapareceu. Aliás, isso nem seria possível, em nome da segurança jurídica – valor tão importante para o Direito como os valores éticos e sociais. O que ocorre é não se admite mais que, em nome da obrigatoriedade, possa haver proveito injustificado de umas das partes em detrimento da outra conseqüência de disparidades entre elas.[33]
Essa preocupação com a comutatividade nas prestações está expressa no Código Civil de 2002 com a previsão da teoria da imprevisão (artigos 478 a 480/CC), e dos institutos do estado de perigo (artigo 156/CC) e da lesão (artigo 157/CC), que permitem a revisão das condições contratadas.
Na teoria da imprevisão, na hipótese de superveniência de acontecimentos imprevisíveis e extraordinários, que tornem a prestação excessivamente onerosa para um dos contratantes e extremamente vantajosa para o outro, é possível pedir a resolução do contrato ou a revisão de seus termos, para restabelecer o equilíbrio econômico entre prestação e contraprestação (artigo 478/CC).[34]
A aplicação da fórmula rebus sic stantibus é possível nos contratos de trato sucessivo ou a termo, em que o princípio pacta sunt servanda, que rege a força obrigatória dos contratos, é limitado. Assemelha-se ao fato fortuito ou força maior, mas a diferença é que na onerosidade excessiva o evento extraordinário e imprevisível determina apenas uma dificuldade, e não a impossibilidade de prestar.
No estado de perigo, a parte, premida pela necessidade de se salvar, ou de salvar pessoa de sua família, de um grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação extremamente onerosa. O agente só assume a obrigação em razão de a vida ou a saúde, própria ou de seu familiar, estar em perigo. Em condições normais, a pessoa não assumiria tal negócio, pois paga-se o preço desproporcionado para obtenção de socorro.
O estado de perigo se encontrava, em restritas hipóteses, dentro da coação. Segundo Humberto Theodoro Junior, o estado de perigo se aproxima da coação moral, porque a vítima que contrata sob seu impacto não tem, praticamente, condições para declarar livremente sua vontade negocial.[35] Mas o estado de perigo difere da coação porque nele “o beneficiário não empregou violência psicológica ou ameaça para que o declarante assumisse obrigação excessivamente onerosa. O perigo de não salvar-se, não causado pelo favorecido, embora de seu conhecimento, é que determinou a celebração do negócio prejudicial”.[36]
A configuração do estado de perigo compõe-se de requisitos objetivos e subjetivos. O primeiro diz respeito à ameaça de grave dano – atual ou iminente – à própria pessoa ou à pessoa de sua família, que leva a pessoa à assunção de obrigação excessivamente onerosa. O segundo, ao conhecimento do perigo pela outra parte, que obtém vantagem com a situação.
No entanto, obrigação excessivamente onerosa não significa desequilíbrio de prestações, pois o estado de necessidade pode conduzir a negócios unilaterais, em que a prestação assumida é exclusivamente pela vítima (v.g. remissão de dívida, promessa de recompensa, renúncia de direitos, testamento). Ou seja, o negócio acarreta uma oneração para a vítima do estado de perigo não compatível com o negócio que se praticasse fora do contexto de perigo.
O magistrado, ao verificar o estado de perigo, deverá examinar o caso concreto posto à análise, para verificar a onerosidade excessiva. Deve ser verificado caso a caso, pois o que é negócio onerosamente excessivo para uns, não o será para outros. Deverá ser levada em conta a situação financeira do promitente. O juiz decidirá pelo bom senso, conforme determina o artigo 5º da Lei de Introdução do Código Civil.[37]
A lesão configura-se quando uma das partes obtém uma vantagem desproporcional, em prejuízo da parte que contratou por inexperiência ou diante de uma necessidade urgente (artigo 157, caput/CC). Muitas vezes significa “o abuso do poder econômico de uma das partes, em detrimento da outra, hipossuficiente na relação jurídica”.[38]
Na constatação da premente necessidade, da inexperiência ou da leviandade, deve-se levar em consideração as condições pessoais do lesado, assim como ocorre na apreciação da coação. Mas na lesão, diferentemente do estado de perigo, é irrelevante a situação econômica do lesado. O contrato pode ser anulado ou revisto nesse caso porque é contrário ao princípio da boa-fé, imposto pelo artigo 422 do Código Civil, a realização de um negócio com extrema vantagem de uma parte em detrimento da outra, que contrata em situação de inferioridade.[39]
A premente necessidade tem fundamento econômico e reflexo contratual. Trata-se de uma necessidade contratual, que se caracteriza uma situação extrema, que impõe ao necessitado a celebração do negócio prejudicial. Pode ser de ordem material ou espiritual, desde que se tratem de coisas importantes para a sobrevivência digna da pessoa.[40]
A inexperiência pode ser entendida como a falta de habilidade para o trato nos negócios, mas não significa, necessariamente, falta de instrução ou de cultura geral. Essa definição aproxima a lesão do erro, mas no caso da lesão, a inexperiência é aproveitada pelo contratante mais forte, capaz ou conhecedor, em detrimento do débil ou inexperiente, sem se configure o erro ou mesmo o dolo. O inexperiente nota a desproporção, mas em razão da falta de experiência de vida, acaba concordando irrefletidamente com ela, sem perceber as conseqüências prejudiciais que trará, chegando a um resultado que, conscientemente, não desejaria. Até mesmo uma pessoa culta pode ser lesada, se desconhecer certas circunstâncias que a levem a se envolver, especialmente em determinados tipos de contratos, que exigem conhecimentos técnicos ou de usos e costumes locais, não acessíveis a ela.[41]
A leviandade caracteriza uma atuação impensada, inconseqüente, em que a realização do negócio acontece sem a necessária reflexão em torno das conseqüências provindas do acordo. O que não pode ocorrer é atitude culposa, seja por negligência ou imprudência.[42] Embora o Código não mencione a leviandade como elemento subjetivo que pode causar a lesão, como ocorre no Código Civil alemão e no Código Civil argentino, a doutrina reconhece que, se ocorrer esse estado de ânimo, o ato pode estar recoberto pela lesão. No Brasil, a leviandade já era considerada elemento da lesão na lei que trata dos crimes contra a economia popular (Lei 1.521/51).[43]
Assim, na sua aferição, são considerados o requisito objetivo – clara desproporção entre as prestações, que leva à obtenção de lucro exagerado e incompatível com a normal comutatividade do contrato – e o subjetivo – o aproveitamento por uma das partes do estado psicológico do outro, consistente em premente necessidade, inexperiência ou leviandade.[44]
Assim, é através da teoria da imprevisão e dos institutos da lesão e do estado de perigo que a legislação vigente pretende manter o equilíbrio contratual nas contratações. São medidas de proteção aos contratantes de grande importância, pois sem a equivalência material das prestações, não há como se falar em justiça contratual.
De modo que ao jurista de hoje é imprescindível o abandono do formalismo e do individualismo de outras épocas, e a aceitação da relativização de certos conceitos, na busca de soluções para as questões que se apresentam na realidade contemporânea.[45] Somente com a efetivação dos valores éticos e sociais impostos com a recente legislação civil é que a realidade jurídica estará de acordo com os ditames constitucionais e, principalmente, com os anseios da sociedade.