Introdução
De início, denota-se que o intuito do Autor, através da presente obra, foi refletir sobre a urgência da formação de um “Ethos Mundial” capaz de salvar a humanidade e, mais especificamente, toda a vida no planeta Terra.
Nesse enfoque, muito bem descreve Vanderlei Barbosa[1] que:
Nessa obra, sua intenção é propor uma reflexão sobre o significado e a urgência de um novo ethos mundial que garanta a preservação e a possibilidade da vida humana sobre a Terra, assegurando um mundo habitável não apenas para nós, mas também para as futuras gerações. A relevância dessa problemática filosófica envolvendo o tema da ética vem ocupando destaque no pensamento contemporâneo, como pode ser constatada pela abundante bibliografia sobre o tema de diferentes pensadores contemporâneos.
A expressão Ethos, num primeiro momento, é traduzida pelo Autor como “cuidado, cooperação, corresponsabilidade, compaixão e reverência”, responsável por salvar a humanidade, a vida e a própria Terra.[2]
E com base nela propõe o Autor incialmente duas indagações fundamentais:
a) Como garantir um consenso mínimo entre todos para que possam conviver em paz e em solidariedade?
b) Como encontrar um denominador mínimo que permita a convergência na diversidade?
Dividida em sete capítulos principais, além de conclusões e anexos, a obra de Leonardo Boff expõe com muita perspicácia não apenas a sua preocupação pela perpetuação da raça humana, mas a própria sobrevivência do planeta, com toda sua biodiversidade e complexidade.
Assim, para melhor compreendê-la, passa-se a analisar cada um de seus capítulos.
Capítulo I
No primeiro capítulo, denominado “Urgência de um ethos mundial”, o Autor trata de três problemas globais, que suscitam a urgência de uma ética mundial, a saber: a crise social, a crise do sistema de trabalho e a crise ecológica.
Segundo o Autor, a crise social decorreria da enorme desigualdade na distribuição de riquezas, gerando um grande abismo/fosso entre ricos e pobres, sendo um fator responsável pelo aumento considerável da pobreza mundial. Já a crise do sistema de trabalho, caracterizar-se-ia pelas novas formas de produção que cada vez mais substituem o trabalho humano pela máquina inteligente, gerando “um imenso exército de excluídos em todas as sociedades mundiais”.[3]
E, por fim, a questão da crise ecológica, que decorreria da irresponsável atividade humana causadora de danos irreparáveis à biosfera, bem como pela grave ameaça de desequilíbrio ecológico capaz de atingir a sustentabilidade de todo o planeta. De forma categórica, refere-se ao surgimento do “princípio da autodestruição” [4].
Contudo, em tempos de globalização, aduz BOFF ser necessário para resolver esses problemas globais uma revolução ética mundial. Para tanto, “far-se-ia necessária uma ideologia revolucionária global, com seus portadores sociais globais que tivessem tal articulação, coesão e tanto poder que fossem capazes de impor a todos” [5], através de uma base ética mínima.
Por fim, com muita propriedade Leonardo Boff cita Cristovam Buarque, que de forma inconteste, explicou que:
O programa de erradicação da pobreza não será o resultado de uma revolução social, nem será possível com o poder exclusivo de um único partido; qualquer que seja o governo, será necessária uma base de apoio ampla, baseada numa coalização que se fará por razões éticas, muito mais do que por razões políticas. [6]
Capítulo II
No segundo capítulo, intitulado “O planetário: novo patamar da terra e da humanidade”, o Autor destaca a necessidade de se criar uma consciência acerca da Terra como pátria comum de todos os homens. Em outras palavras: “Trata-se de entender a Terra como totalidade físico-química, biológica, socioantropológica e espiritual, una e complexa; numa expressão: nossa casa comum.”[7]
Nesse aspecto, explica que para uma realidade global, surge a necessidade de uma ética global, que não pode ser baseada apenas nas morais de certos locais ou culturas do planeta. A atual demanda, segundo BOFF “é por um ethos que seja adequado ao novo patamar da história, que é global e planetário.”[8] Por isso a necessidade de se fomentar uma postura global, ou seja, de “pensar globalmente e agir localmente” e, de igual modo, de “pensar localmente e agir globalmente”.[9]
Ao final, faz o Autor a seguinte indagação: “Que ética e que moral importa viver nesta era ecozóica e planetária?”
Capítulo III
Através do título do terceiro capítulo (“Como fundar uma ética planetária”), BOFF questiona como se pode construir uma plataforma comum passível de ser estabelecida para assentar a todos?
Segundo o Autor, os homens precisam criar certos consensos, coordenar certas ações, coibir certar práticas e elaborar expectativas e projetos coletivos por meio de uma base ética e moral mínima e comum a todos, para que possam coexistir pacificamente, preservando o lar comum e garantindo um futuro a vida no Planeta.
Adentrando na concepção e filologia das palavras ética e moral, explica que:
Ética vem do grego ethos. Essa palavra se escreve de duas formas: com eta (a letra e em tamanho pequeno) e com o epsílon (a letra E em tamanho grande).[10]
Ethos com e pequeno significa a morada, o abrigo permanente, seja dos animais (estábulo), seja dos seres humanos (casa) [...] A morada o enraíza na realidade, dá-lhe segurança e permite a ele sentir-se bem no mundo [...] o ethos não é algo acabado, mas algo aberto a ser sempre feito, refeito e cuidado como só acontece com a moradia humana. Ethos se traduz, então, por ética. [11]
[...] ethos, mas escrito com E grande (o epsílo, em grego). Ele significa os costumes, vale dizer, o conjunto de valores e de hábitos consagrados pela tradição cultural de um povo. Ethos como conjunto de meios ordenados ao fim (bem/autorrealização), se traduz comumente por moral. Moral (mos-mores, em latim) significa, exatamente, os costumes e valores de uma determinada cultura.[12]
Feita a devida diferenciação, justifica o autor que os hábitos e os costumes visam a fazer a moradia e o meio social sustentáveis, autônomos e habitáveis para toda humanidade.
Ao final, esclarece que na nova cosmologia, a natureza possui subjetividade e espiritualidade, sendo muito mais que a natura dos medievais e ou a natureza dos modernos. Destaca, ainda, haver uma relação dialética entre homem e natureza, visto que “ambos se encontram indissoluvelmente intrincados um no outro, de tal forma que o destino de um se transforma no destino do outro.” [13]
Capítulo IV
No quarto capítulo, intitulado “Formas de universalização do discurso ético”, BOFF analisa as seis principais formas de argumentação que poderiam contribuir para a elaboração de uma base para uma ética planetária, quais sejam:
a) o utilitarismo social;
b) as éticas do discurso comunicativo e da justiça;
c) a ética baseada na natureza;
d) a ética enraizada nas tradições religiosas da humanidade;
e) a ética fundada no pobre e no excluído;
f) a ética fundada na dignidade da Terra.
Nesta última, apresenta a questão relativa a Carta da Terra, expondo seus princípios e valores éticos, destacando ser esta proposta de ética mundial “a mais articulada, universal e elegante que se produziu até agora” [14].
Ao final, conclui que todas as formas de argumentação ética e moral analisadas contemplam dimensões verdadeiras, porém com certos limites, visto que não tratam individualmente de todos os problemas globais inicialmente identificados. Contudo, esclarece que se todas forem tomadas em conjunto, elas se completam para a formação de uma ética planetária.
Capítulo V
No capítulo quinto, denominado “O pathos e o cuidado como nova plataforma do ethos humano e planetário”, o Autor apresenta sua própria visão acerca da possibilidade de um ethos mundial. Neste passo, destaca que a experiência base da vida humana é o sentimento, o afeto e o cuidado, ou seja, o pathos e não o logos, superando o logocentrismo grego e o cogito cartesiano, que influenciaram quase todos os sistemas éticos no Ocidente.
Ressalta, ainda, que “a evolução do pensamento filosófico e o próprio processo histórico vieram mostrar mais e mais que a razão não explica tudo nem abarca tudo”.[15]
Assim, BOFF refere-se ao pathos como sendo “a capacidade de sentir, de ser afetado e de afetar” [16], destacando que:
O pathos não se opõe ao logos. O sentimento também é uma forma de conhecimento, mas de natureza diversa. Engloba dentro de si a razão, transbordando-a por todos os lados. [17]
Ao final, expõe que a essência concreta do ser humano é definida pelo cuidado (originário da combinação entre logos e pathos, em outras palavras: cabeça e coração), defendendo a chamada “ética do cuidado”, como a mais imperativa na atualidade.
Cuidado seria, pois, “uma relação amorosa para com a realidade, com o objetivo de garantir-lhe a subsistência e criar-lhe espaço para o seu desenvolvimento.” [18]
Capítulo VI
No capítulo sexto, o Autor expressa os imperativos mínimos de uma ética mundial, sendo este o seu título. Nele, BOFF argumenta a necessidade de serem utilizados cada um dos imperativos a seguir destacados, para a formulação de uma base para a ética mundial.
a) Ética do Cuidado:
O cuidado é uma relação amorosa que descobre o mundo como valor [...] A pessoa se sente envolvida afetivamente e ligada estreitamente ao destino do outro e de tudo o que for objeto de cuidado. Por isso, o cuidado provoca preocupação e faz surgir o sentimento de responsabilidade. Bem dizia o poeta Horácio (65-8 a.C.): "o cuidado é o permanente companheiro do ser humano", no amor às coisas e às pessoas e na responsabilidade e no envolvimento daí decorrentes. [19]
b) Ética da solidariedade:
Os Estados devem orientar suas políticas públicas no espírito da solidariedade, bem como as relações interestatais. [...] Portanto, é por meio de ações interestatais visando à comunidade universal que se expressará a solidariedade, que atende em primeiro lugar ao interesse comum da humanidade e, por refração, ao bem ecológico de cada Estado.[20]
c) Ética da responsabilidade:
[...] A responsabilidade mostra o caráter ético da pessoa. Ela escuta o apelo da realidade ecoando em sua consciência. Ele dá uma resposta a esse apelo, resposta sempre qualificada, seja de maneira negativa, seja positiva, seja de qualquer outra forma. Dessa capacidade de resposta (responsum) nasce a responsabilidade, o dever de responder e de atender aos apelos da realidade captados pela consciência. [21]
d) Ética do diálogo:
[...] O que permite, porém, a construção coletiva da solidariedade universal é o recurso sistemático ao diálogo em todas as frentes e em todos os níveis. Impõe-se, portanto, uma ética do diálogo universal.[22]
e) Ética da com-paixão e da libertação:
[...] o grande desafio ético e político são os dois terços da humanidade, pobres, oprimidos e excluídos.[23]
A reação primeira em face dessa realidade é a com-paixão, aquela atitude de sofrer o padecimento do outro e de participar de suas lutas de libertação.[24]
A libertação, entretanto, só será instaurada quando o próprio empobrecido for sujeito de seu processo; juntamente com aliados de outras classes sociais, poderá mostrar-se uma força histórica, capaz de transformar a história na direção de mais inclusão e participação em todos os bens naturais e culturais.[25]
f) Ética holística:
A perspectiva holística não significa o somatório dos pontos de vista (que são sempre a vista de um ponto), mas a capacidade de ver a transversalidade. Quer dizer, a capacidade de detectar os inter-retrorrelacionamentos de tudo com tudo.[26]
Capítulo VII
No sétimo capítulo, intitulado “Mistica e espiritualidade: base para uma ética mundial?”, BOFF argumenta que imperativos éticos claros são fundamentais para a elaboração do ethos mundial, porém, tornam-se insuficientes para uma nova solidariedade e para uma corresponsabilidade planetária.
Justifica, para tanto, que mesmo sob a ameaça da autodestruição da humanidade, a “razão sozinha e a nova compreensão da natureza (cosmologia) não têm força suficiente para fazer valer incondicionalmente imperativos categóricos”.[27]
E, após esclarecer que “a mística e a espiritualidade se exteriorizam institucionalmente nas religiões do mundo” [28], o Autor expõe que ambas subjazem aos discursos éticos, ou seja, “Sem elas, a ética se transforma num código frio de preceitos e as várias morais em processos de controle social e de domesticação cultural.” [29]
Considerações finais
A reflexão provocada pela obra de BOFF, faz com que seu leitor repense o caminho de injustiça social e a alarmante degradação ambiental em que a humanidade percorreu em sua trajetória pela Terra, sobretudo na necessidade de se repensar uma nova ética mundial, em tempos de globalização e transnacionalidade, antes que a vida humana no planeta se torne totalmente insustentável.
Nesse enfoque, não há como se negar que o próprio homem será o responsável pela extinção da raça humana, pois, mesmo tendo ciência de todos os problemas ambientais existentes, especialmente relacionados com a poluição e insustentabilidade do atual modelo consumista, que desde a ECO 92 já são debatidos, e agora mais recentemente trazidos a tona com a RIO +20, muito pouco faz para reverter tal situação.
Assim, é pela arrogância e soberba da maioria, e não pela ignorância, que a raça humana caminha rumo a destruição. Todos sabem a solução para que isso não ocorra. Mas poucos estão dispostos a pô-la em prática. Todos querem se salvar, mas quase nenhum quer perder dinheiro ou benefícios nessa empreitada coletiva.
Enquanto o petróleo tiver valor econômico, e a cada dia dar lucro para uma seleta minoria, será utilizado como combustível pelos homens (na grande maioria de seus meios de transportes), independentemente de poluir o planeta. Enquanto o cigarro der lucro, mesmo que a custas de muitas vidas, será vendido livremente. Enquanto não se fiscalizar o alto mar, considerado “terra de ninguém”, será depósito mundial de lixos e dejetos, independentemente de degradar a vida marinha. Enquanto a guerra gerar riquezas, muitas pessoas irão perder suas vidas.
Por isso, enquanto não houver a construção de uma ética mundial, que abarque todos os Estados mundiais, as pessoas vão continuar levando suas vidas sem se importar com o futuro do planeta, sem se importar com o seu próximo, sem fazer nada para mudar este caminho rumo à extinção.
Notas
[1] BARBOSA, Vanderlei. Resenha: Ethos Mundial- um consenso mínimo entre os humanos. Revista Jurídica Eletrônica EDUC@ÇÃO. vol.1. nº 2. São Paulo: UNIPINHAL, 2004. Disponível em: http://189.20.243.4/ojs/educacao/viewissue.php?id=2. Acesso em: 10-6-2012.
[2] BOFF, Leonardo. Ethos Mundial: um consenso mínimo entre os humanos. Rio de Janeiro: Record, 2009; p. 10.
[3] BOFF, Leonardo. op. cit. p. 14.
[4] “Nas últimas décadas, temos construído o princípio da autodestruição. A atividade humana irresponsável, em face da máquina de morte que criou, pode produzir danos irreparáveis à biosfera e destruir as condições de vida dos seres humanos. Numa palavra, vivemos sob uma grave ameaça de desequilíbrio ecológico que poderá afetar a Terra como sistema integrador de sistemas.” (BOFF, Leonardo. op. cit. p. 15.)
[5] BOFF, Leonardo. op. cit. p. 17.
[6] BOFF, Leonardo. op. cit. p. 17-18.
[7] BOFF, Leonardo. op. cit. p. 24.
[8] BOFF, Leonardo. op. cit. p. 23.
[9] BOFF, Leonardo. op. cit. p. 26.
[10] BOFF, Leonardo. op. cit. p. 30.
[11] BOFF, Leonardo. op. cit. p. 30.
[12] BOFF, Leonardo. op. cit. p. 31.
[13] BOFF, Leonardo. op. cit. p. 38.
[14] BOFF, Leonardo. op. cit. p. 75.
[15] BOFF, Leonardo. op. cit. p. 81.
[16] BOFF, Leonardo. op. cit. p. 82.
[17] BOFF, Leonardo. op. cit. p. 83.
[18] BOFF, Leonardo. op. cit. p. 84.
[19] BOFF, Leonardo. op. cit. p. 87-88.
[20] BOFF, Leonardo. op. cit. p. 92.
[21] BOFF, Leonardo. op. cit. p. 93.
[22] BOFF, Leonardo. op. cit. p. 94.
[23] BOFF, Leonardo. op. cit. p. 96.
[24] BOFF, Leonardo. op. cit. p. 96-97.
[25] BOFF, Leonardo. op. cit. p. 97
[26] BOFF, Leonardo. op. cit. p. 98.
[27] BOFF, Leonardo. op. cit. p. 103.
[28] BOFF, Leonardo. op. cit. p. 105.
[29] BOFF, Leonardo. op. cit. p. 105.