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Interpretação constitucional:

entre a dogmática e a zetética

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Agenda 22/11/2013 às 23:00

Trata-se de estudo da interpretação constitucional, demandando análise das espécies interpretativas, postulados e limites da interpretação, finalizado pelo cotejo das perspectivas dogmática e zetética.

Resumo: A presente pesquisa tem por objeto principal o aprofundamento no tema interpretação constitucional, com o objetivo de vislumbrar as linhas então existentes e entraves decorrentes do erro ou vício do intérprete. Para tanto, como ponto de partida buscou-se dissecar a atividade interpretativa, com a elucidação de questões pertinentes às suas diversas espécies, aí contidos método, agente e extensão. Superado o tema, apresentou-se como necessidade a abordagem acerca dos postulados de interpretação constitucional, sistemas interpretativos e limites da interpretação. Por fim, conceituados todos os elementos básicos necessários ao exercício da tarefa hermenêutica, as perspectivas zetética e dogmática puderam ser estudadas como posturas a serem adotadas na condição de intérprete. Concluiu-se serem a dogmática e a zetética visões antagônicas cuja co-existência é necessária à manutenção do sistema, eis que a primeira é criadora de segurança jurídica enquanto a última propõe-se a atender às necessidades primordiais da justiça. Para o trabalho utilizou-se como método de abordagem o dedutivo e de procedimento o monográfico.

Palavras-chave:

interpretação, constituição, dogmática, zetética.

ABSTRACT

The main purpose of this study is to deepen the constitutional interpretation theme, in order to glimpse the then existing lines and barriers arising from error or defect of the interpreter. To do so, as a starting point we sought to dissect the activity of interpretation, the elucidation of relevant issues to its several possibilities, methods contained therein, agents and extensions. Overcome the issue, there was a need to approach on the postulates of constitutional interpretation, interpretative systems and limits of interpretation. Finally, respected all the basics needed to practice the hermeneutical task, zetetic and dogmatic prospects could be considered as positions to be adopted as an interpreter. We concluded that the dogmatic and the zetetic visions are antagonistic, although their co-existence is necessary to maintain the system, since the first is the creator of legal certainty, while the latter is proposed to meet the basic needs of justice. The deductive method of approach was used for the work as well as the monograph procedure.

Keywords:

interpretation, constitution, dogmatic, zetetic.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO8

1. A INTERPRETAÇÃO E SUAS ESPÉCIES10

1.1. Panorama geral10

1.2. Interpretação12

1.2.1.2. Interpretação privada14

1.2.1.3. Outras espécies de interpretação quanto ao agente16

1.2.2. A Interpretação quanto à Natureza18

1.2.2.1. Interpretação gramatical19

1.2.2.2. Interpretação teleológica20

1.2.2.3. Interpretação histórica21

1.2.2.4. Interpretação sistemática22

1.2.3. A Interpretação quanto à extensão23

2. INTERPRETAÇÃO: INÍCIO, MEIO E FIM24

2.1. Princípios de interpretação constitucional24

2.1.1. Princípio da Supremacia da Constituição25

2.1.2. Princípio da Unidade da Constituição25

2.1.3. Princípio da maior efetividade possível26

2.1.4. Princípio da Harmonização27

2.1.5. Outros princípios28

2.2. Sistemas interpretativos30

2.2.1. Sistema dogmático30

2.2.2. Sistema histórico-evolutivo31

2.2.3. Sistema da livre pesquisa31

2.3. Limites da interpretação constitucional32

2.3.1. Mutações Constitucionais33

2.3.2. Normas constitucionais inconstitucionais34

2.3.2.1. Contradições transcendentes34

2.3.2.2. Contradições positivas35

3. A CERTEZA DOGMÁTICA E A DÚVIDA ZETÉTICA37

3.1. Dogmática38

3.1.1. Segurança jurisdicional40

3.1.2. Segurança científica39

3.2. Zetética42

3.2.1. Reflexos da zetética42

3.2.1.1. Quebra de paradigmas42

3.2.1.2. Transição constitucional45

3.3. Ponderação de perspectivas47

CONCLUSÃO52

REFERÊNCIAS54

INTRODUÇÃO

É fato que a interpretação constitucional e das normas em geral é fator decisivo para determinar o destino do jurisdicionado. Afinal, muito embora a função da criação das normas seja do constituinte, originário ou derivado, é somente quando de sua aplicação efetiva que o seu propósito se consuma. Sendo a Constituição a lei maior, sua adequada interpretação passa a ser objeto de estudo profundo, em especial pelo caráter amplo e genérico trazido por este tipo de norma, o que confere ao intérprete grande poder e responsabilidade.

Para tanto, a pesquisa tem por intuito adentrar nas nuances dos sistemas, métodos e visões interpretativas, eis que tais fatores definem o produto final da atividade hermenêutica em matéria constitucional, tornando-se imperiosa a observação de que, neste caso, os meios definem o fim, ainda que por vezes possam as diferentes linhas de raciocínio vir a convergir para a mesma conclusão.

Para tanto, propõe-se o estudo da atividade da interpretação constitucional em três diferentes etapas: a interpretação em si e suas espécies, o trajeto da interpretação constitucional e, por fim, as antagônicas perspectivas zetética e dogmática.

Por tais razões, adotou-se como metodologia de abordagem o método dedutivo, cuja angariação de um apanhado geral de conceitos passa a ser uma necessidade prévia para criar uma base sobre a qual trabalhar a pesquisa, viabilizando-se desta forma a obtenção de subsídios para uma conclusão congruente.

No que tange à metodologia de procedimento, ainda que se trate de assunto amplo, exige-se grande foco, sob pena de restar frustrada a intenção primordial do trabalho. Destarte, o método monográfico apresenta-se como o mais apropriado ao propósito.

O primeiro capítulo trabalha, portanto, a interpretação, aprofundando o conceito e adentrando nas diversas espécies – agente, natureza e extensão – o que viabiliza a compreensão da atividade dando a primeira base para o prosseguimento da pesquisa.

O capítulo seguinte tem por intuito justamente oportunizar o vislumbre do caminho que é percorrido quando da apreciação do sentido da norma constitucional. Assim, aborda inicialmente os postulados de interpretação constitucional como ponto de partida, por serem princípios inarredáveis na tarefa. Ato contínuo, traz a lume os sistemas de interpretação então reconhecidos pela doutrina majoritária, o que em verdade é meio adotado pelo hermeneuta. Por fim, impõe os limites da interpretação constitucional, fechando simbolicamente o ciclo.

Por derradeiro, o enfoque do terceiro capítulo recai sobre as óticas dogmática e zetética, que dada a sua oposição de polaridades, tem influência determinante sobre o intérprete, haja vista ter a primeira o intuito de enrijecer a interpretação então vigente, na medida em que a segunda tem caráter reciclador, suscitando a dúvida quando oportuno.

1. A INTERPRETAÇÃO E SUAS ESPÉCIES

1.1. Panorama geral

Sabe-se que a interpretação e a hermenêutica por vezes são utilizadas como sinônimos, ambas as expressões trazendo consigo, via de regra, o intuito de referir-se à atividade interpretativa das normas.

Entretanto, é oportuno iniciar explanação sobre o assunto com a diferenciação terminológica dos termos em questão, evitando-se destarte a sua equivocada utilização e conseqüente confusão de conceitos.

Inicialmente, cumpre salientar que Hermenêutica é ciência, que engloba, dentre outras atividades, a de interpretação. Assim, a Hermenêutica busca definir os critérios a serem adotados para o desenvolvimento da atividade interpretativa, resultando na interpretação mais fidedigna da norma – a depender, ainda, do sistema interpretativo adotado.

Jane Reis Gonçalves Pereira[1] esclarece que “a interpretação constitucional é uma modalidade de interpretação jurídica. Esta, por sua vez, pertence ao domínio da hermenêutica, que, na dicção de Emilio Betti, é a ciência do espírito que se ocupa da atividade de interpretar.”

A autora diferencia com clareza solar a distinção das figuras da interpretação e da hermenêutica:

A hermenêutica nasceu como uma disciplina filológica, consubstanciando uma técnica de leitura que visava a recuperar o sentido de escritos religiosos, como a Bíblia, e de obras da antiguidade clássica, como a Ilíada de Homero. O propósito da hermenêutica era, inicialmente, resgatar o sentido perdido dos textos, desvelando o seu significado autêntico, que o tempo obscureça. No século XX, o aporte de autores como schleiermacher e Dilthey ampliou o objeto da hermenêutica, a qual passou a abranger a compreensão de todas as formas de ação humana, tornando-se, assim, uma teoria geral da interpretação. A partir da obra desses autores, o foco primordial da hermenêutica deixa de ser o texto , passando a buscar-se a intenção do autor ou do agente histórico envolvido no fenômeno interpretado.[2]

Aliás, enriquece a explicação remetendo à origem do termo interpretação:

a origem etimológica da palavra interpretação abarca a preposição latina inter (entre) e a expressão indoeuropéia pre, que significa falar. Indica, assim, a idéia de pôr em contato duas partes falantes, remetendo à idéia de mediação. A palavra hermenêutica, por sua vez, procede do vocabulário grego “hermeneutike” – que significa arte de interpretar. Tal termo encontra-se estreitamente ligado ao simbolismo que cerca o mito de Hermes, Deus grego dotado de singular capacidade intelectual e de comunicação. Filho e mensageiro de Zeus, Hermes atuava como mediador entre os Deuses do Olimpo e entre estes e os mortais, decodificando a vontade divina e a transmitindo aos homens na forma de mensagens.[3]

Corroborando tal informação acerca da origem do termo empregado, Flávia de Almeida Viveiros Castro[4] acrescenta:

Etimologicamente a palavra interpretação deriva do verbo latino interpretari (interpretatio, interpres...). No latim, o vocábulo interpres é formado a partir da preposição inter, que evoca a idéia de ligação, e do substantivo praes, que é uma forma nominal tirada de um verbo antigo, significando comprar ou vender, lembrando o valor de algo. O primeiro sentido do termo interpretar é, portanto, aquele de intermediar valores. O intérprete é, pois, inicialmente, um intermediário, é ele que está entre, que se impõe para assegurar a comunicação e a valoração de duas instâncias distintas.

Assim, é correto pensar na Hermenêutica como ciência que regula as regras de interpretação, sendo plenamente aplicável às situações de cunho abstrato, o que não ocorre com a interpretação da norma, que, via de regra, para se situar exige o caso concreto como objeto de análise.

Feita a diferenciação, parte-se do ponto de que o ato de interpretar é mera atividade, que observa as regras – ou critérios – definidas pelo tipo de interpretação e sistemas interpretativos, estes por sua vez elementos que compõem a ciência da Hermenêutica.

Uma vez enquadrada na condição de ciência, a Hermenêutica comporta, para fins didáticos, divisões que auxiliam no melhor entendimento acerca da atividade interpretativa e das diversas espécies de interpretação e correspondentes peculiaridades, por assim dizer.

1.2. Interpretação

Resta claro, evidentemente, que os efeitos da aplicação da norma estão condicionados diretamente ao sentido que lhe é atribuído, de modo que a interpretação desempenha papel de inexorável importância para que se alcance o fim a que se destina a Constituição e leis infraconstitucionais.

Naturalmente, espera-se que a interpretação, independentemente da linha seguida, esteja sintonizada com as circunstâncias que permeiam a norma, de modo que a comunicação entre o abstrato e o concreto não se distorça.

Levando isso em conta, o mestre Norberto Bobbio[5] ministra cuidadosa explanação acerca da atividade interpretativa:

Mas o que significa interpretar? Este termo, com efeito, não é exclusivo da linguagem jurídica, sendo usado em muitos outros campos: assim se fala de interpretação das Escrituras Sagradas, de interpretação das inscrições arqueológicas, de interpretação literária, de interpretação musical... Pois bem, interpretar significa remontar do signo (signum) à coisa significada (designatum), isto é, compreender o significado do signo, individualizando a coisa por este indicada. Ora, a linguagem humana (falada ou escrita) é um complexo de signos, é uma especies do genus signo (tanto é verdade que é substituível por outros signos, por exemplo os gestos das mãos, embora seja mais perfeito porque mais rico e maleável). Assim, por exemplo, quando digo “cavalo”, me limito a produzir um som vocal, mas com isso indico uma coisa diferente de tal som. Como o complexo de signos, a linguagem exige a interpretação; esta é exigida pelo fato de que a relação existente entre o signo e a coisa significada (neste caso, entre a palavra e a idéia) não é uma relação necessária, mas puramente convencional, tanto que a mesma idéia pode ser expressa de modos diversos (o mesmo objeto, aliás, é indicado em cada língua com um som diverso). Ademais há sempre um certo desajuste entre idéia e a palavra, porque a primeira é mais rica , mais complexa, mais articulada do que a segunda, que serve para exprimi-la; além disto, nós não usamos nunca as palavras isoladamente (exceto o menino que aprende a falar ou quem se encontra num país estrangeiro de cuja língua só conhece alguns termos), mas formamos complexos de palavras, ou proposições. Ora, dependendo do contexto em que esteja inserida, a mesma palavra assume significados diferentes (e podemos até dizer que um termo tem tantos significados quantos são os contextos em que pode ser usado).

Reside aí, portanto, a necessidade evidente de cautela quando da realização da interpretação, sob pena de ver-se desvirtuada a norma e perdido o seu propósito, tornando-se inócua frente à tarefa de tutelar o bem ou regular a conduta a que originalmente se destinava.

Não se deve prescindir, portanto, da correta situação da interpretação como ferramenta hermenêutica, conforme salienta Flávia de Almeida Viveiros de Castro[6]:

A interpretação ocupa uma sutil posição entre duas outras. Ela é a ligação entre plúrimos elementos. Deste ponto de vista, ela penetra em todos os campos da vida social. Na área do direito, Alea relaciona essencialmente o texto jurídico e o universo ao qual este se dirige. A lei, o direito são essencialmente inscritos dentro de textos que, por sua vez, são aplicados para dirimir litígios do cotidiano.

Para tanto, é recomendável que seja a interpretação dissecada, dividindo-se para fins didáticos em classificações que viabilizem melhor vislumbre do tema.

Fazendo referência a outros tantos renomados autores (Savigny, Fiore, Maximiliano, Serpa Lopes, entre outros), cuja adesão de ideias dá-se no mesmo sentido, R. Limongi França define que a interpretação de normas pode ser classificada em três espécies de interpretação: quanto ao agente, quanto à natureza e, por fim, quanto à extensão.[7]

1.2.1. A interpretação quanto ao Agente

O interpretador desempenha papel fundamental quanto à aplicação que será conferida à norma sob sua análise, o que implica em afirmar que é ele quem acabará por fazer com que a lei chegue ao seu destino.

Peter Häberle[8], cuja obra fora traduzida[9] por Gilmar Ferreira Mendes, esclarece que quem vive a norma acaba por interpretá-la ou co-interpretá-la, ainda que originariamente denomine-se interpretação apenas a atividade que busca de forma intencional e consciente a explicitação do sentido da norma.

Dentre os possíveis agentes interpretantes, pode-se dividir a atividade em duas grandes linhas de interpretação: pública ou privada.

1.2.1.1. Interpretação pública

Como se deduz, a interpretação pública é aquela emanada dos agentes públicos no exercício da função, tal como membros do Judiciário, Legislativo e Executivo. Ante esta variedade de pessoas que figuram no rol que compõem a já mencionada interpretação de cunho público, surge subdivisão: interpretação pública autêntica e interpretação pública judicial.

No que tange à primeira, resta evidente a ligação direta com os órgãos que editam a norma, que possuem plena atribuição para a edição de outros tantos diplomas de igual importância – hierárquica – para conferir ao texto original a interpretação mais apropriada.

Entretanto, em se tratando de interpretação constitucional, Luís Roberto Barroso[10] atenta para a impropriedade técnica do termo “interpretação autêntica”, explicitando o porquê do entendimento:

A rigor, a interpretação constitucional, para ser verdadeiramente autêntica, na conformidade da definição, teria de emanar da mesma fonte instituidora: o poder constituinte originário. Isso, normalmente, não será possível, pois, uma vez concluída a sua obra, o poder constituinte originário se exaure, ou, melhor dizendo, volta ao seu estado latente e difuso. De modo que não se pode falar em interpretação constitucional verdadeiramente autêntica.

De outra banda, a interpretação pública Judicial – ou jurisdicional – é aquela realizada pelo Judiciário, quando da execução de sua missão constitucional de se fazer cumprir a lei. A consequência de tal interpretação – ainda que não como no Common Law – é a geração de jurisprudência capaz de nortear casos idênticos ou análogos.

O resultado mais marcante, na prática, são os enunciados de súmulas dos Tribunais Superiores, dando-se maior destaque aqui às súmulas vinculantes oriundas do Pretório Excelso, bem como as (intensamente) presentes súmulas do Tribunal Superior do Trabalho.

1.2.1.2. Interpretação privada

Ousa-se dizer que tão importante quanto a interpretação pública, é a interpretação privada. Tal assertiva decorre da constatação de que em maioria volumosa a própria interpretação pública é diretamente influenciada pela privada.

Ora, por mais bem preparados que estejam os agentes públicos em função, a sua formação intelectual, atual ou futura, via de regra é fruto de considerável carga de conhecimento acumulada pelo contato com a doutrina jurídica.

Como se parte do corolário de que o ser humano não nasce tendo conhecimento, a ilação é também no sentido de que todo o conhecimento adquirido é aprendizado do meio. E, no meio jurídico, são as grandes obras e os mestres do direito os responsáveis pela ampliação do horizonte dos julgadores e legisladores. Luís Roberto Barroso[11] acrescenta:

A interpretação doutrinária não se dirige, diretamente, à aplicação das normas constitucionais, mas, sim, a fornecer subsídios para os órgãos encarregados de realizá-la. Trata-se do produto do trabalho intelectual de jurisconsultos, professores, e escritores em geral. Também os advogados, elaborando teses jurídicas e ousando criativamente na defesa dos interesses que patrocinam, prestam importante contribuição de cunho doutrinário.

Então, quando (ilustrativamente) um juiz de direito forma sua convicção com base no que defende um reconhecido autor sobre aquela área do conhecimento jurídico, ele na verdade estará aderindo à interpretação feita por outro agente. Neste momento verifica-se que aparentemente se estará diante de uma manifestação de interpretação pública, quando em verdade a fonte real do ponto de vista é a interpretação privada.

Não obstante o precioso trabalho realizado pelos docentes e pesquisadores que ampliam o horizonte da hermenêutica, uma parcela de mérito deve ser também reservada aos profissionais que atuam na área, que, nesta condição, não se desvestem da atividade interpretativa.

Não se pode olvidar aqui da interpretação privada realizada pelo advogado, figura indispensável à administração da justiça, nos termos do art. 133 da Carta Magna.

São os advogados – em pólos opostos – os responsáveis por levar ao Judiciário as novas teses, com aprofundamento de interpretação sobre as normas em lume no caso concreto. De tal aprofundamento, resulta não raras vezes o questionamento acerca do correto prisma a ser adotado para que se faça ter a norma o valor que efetivamente deveria ter.

Destarte, sem embargo da forte influência doutrinária que recai sobre os julgadores, ainda há que se considerar que são também tentados – pelos profissionais patrocinadores das causas – a rever os seus pontos de vista, dando margem para uma alteração do ponto de vista acerca dos dispositivos legais invocados.

Possivelmente este seja um dos motivos pelo qual o constituinte originário viu-se obrigado a fazer constar, no já referido artigo da Constituição de 1988, a importância do advogado para a justiça. É ele quem provoca a quebra de paradigmas, quem viabiliza a revisão dos dogmas que exigem superação.

Afinal, se de um lado é o advogado seguidamente influenciado pelo posicionamento jurisprudencial, de outro lado, é ele também o responsável por promover a cristalização de tais entendimentos pelos Tribunais.

Vale lembrar, a título de exemplo, da criação doutrinária da figura da exceção de pré-executividade, por Pontes de Miranda, em 1966. Na ocasião, defendia o renomado jurista os interesses da siderúrgica Mannesmann, que sofria execução de títulos executivos extrajudiciais com vício grave, sem que houvesse o direito de realizar efetiva defesa em virtude da ausência de previsão legal.

Para atacar a questão, elaborou o jurista parecer que suscitava a mais óbvia aplicação do senso básico de justiça e licitude. Assim dizia:

Quando se pede ao juiz que execute a dívida, tem o juiz de examinar se o título é executivo, seja judicial, seja extrajudicial. Se alguém entende que pode cobrar dívida que consta de instrumento público, ou particular, assinado pelo devedor e por duas testemunhas, e o demandado – dentro das 24 horas – argüi que o instrumento público é falso, ou de que a sua assinatura, ou de alguma testemunha, é falsa, tem o juiz de apreciar o caso antes de ter o devedor de pagar ou sofrer a penhora.[12]

É de saber comum que muito embora não previsto em lei o instituto passou a ser aceito tanto pela doutrina quanto pelo judiciário como meio hábil de impugnação de execução que possa conter vício. Tornou-se um referencial na área, um exemplo prático de reinterpretação da norma, com a utilização de princípios como fonte apta para suprir a falha do texto legal.

Em suma, percebe-se que ao veicular em suas teses interpretações inovadoras sobre a Constituição ou a vasta legislação já existente, acaba o advogado por inspirar o Judiciário a encontrar a melhor aplicação da lei para o caso concreto.

1.2.1.3. Outras espécies de interpretação quanto ao agente

Há na doutrina quem defenda ainda que além das duas principais espécies de interpretação quanto ao agente (pública e privada), existem outras duas de menor relevância distintiva: administrativa e usual.

No que tange à primeira, explica R. Limongi França que se estaria a tratar daquela “realizada por órgãos do Poder Público que não são detentores do Poder Legislativo nem do Judiciário.”[13]

Como reconhece o próprio autor, tal variedade de interpretação pública tem sido olvidada pelos doutrinadores, muito embora esteja presente a classificação em algumas obras.

Dentre elas, George Salomão Leite[14] exemplifica a interpretação pública administrativa com situação hipotética:

Questão interessante é a do descumprimento, pelo Chefe do Poder Executivo, de lei por ele reputada inconstitucional. Em outras palavras, o Chefe do Poder Executivo pode deixar de aplicar uma lei que considere inconstitucional. Eis um caso típico de interpretação constitucional por parte do Executivo.[15]

Também inclui no rol de possibilidades de interpretação quanto ao agente, o mestre Luís Roberto Barroso, que assim expõe seu entendimento:

É igualmente indispensável a interpretação para que os órgãos do Executivo possam dar cumprimento aos atos normativos e aos atos de individualização de situação jurídicas na conformidade da Constituição, além de sua importância na elaboração das políticas governamentais, que devem, necessariamente, apontar para os fins constitucionais. Aliás, o Executivo, em certos casos, pode interpretar a Constituição até mesmo para divergir da interpretação que haja sido dada pelo Legislativo. É que a doutrina e a jurisprudência a ele tem reconhecido o poder de deixar de aplicar os atos legislativos que considere inconstitucionais.[16]

Entretanto, como já referido, trata-se de espécie de interpretação pública deixada em segundo plano pela maioria da doutrina. Uma das primeiras hipóteses a ser considerada para entender o motivo disso, seria o fato de que possivelmente boa arte da doutrina entenda – interprete – que tal atividade enquadrar-se-ia no conceito de interpretação pública autêntica, quando considerado o poder regulamentar do Executivo, por exemplo.

Uma segunda hipótese seria a menor relevância da atividade interpretativa administrativa quando comparada com a interpretação pública autêntica, que estabelece normas, ou com a interpretação pública judicial, que decide em última instância como devem ser aplicadas – não raras vezes, obrigando o Executivo a fazer ou deixar de fazer aquilo que entendia não se aplicar, decorrente da interpretação administrativa.

Por fim, França destaca ainda uma quarta espécie de interpretação pública, definida como usual, trazendo o direito consuetudinário como um possível norte interpretativo. O autor lembra que “como é sabido, há costumes interpretativos.”[17]

Assim como ocorre com a interpretação pública administrativa, a quarta espécie de interpretação desta natureza também não desempenha grande relevo em matéria de classificação por parte da doutrina.

O mais provável, neste caso, é que não apenas se trate de espécie que não mereça maior destaque, mas também já se veja naturalmente incluída tanto na interpretação autêntica quanto na interpretação judicial. Afinal, estar-se-ia diante de uma escancarada alienação do Legislativo e Judiciário se ignorassem as peculiaridades do território abrangido pela norma interpretada.

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1.2.2. A Interpretação quanto à Natureza

 Conhecidos como meios ou métodos de interpretação, são sistemas adotados para que se apure o verdadeiro valor atribuído à norma objeto do interpretante, sendo atualmente divididos em quatro espécies, ou elementos: gramatical, lógica, histórica e sistemática.

A importância dos diferentes métodos interpretativos decorre também da variedade e complexidade de casos concretos que possam surgir exigindo interpretação de normas. Como aponta Luís Roberto Barroso[18], duas são as possibilidades que surgem quando da adoção de diferentes elementos de interpretação: todos convertem para o mesmo resultado, criando-se fácil solução para a problemática; ou, em situações mais complexas, os diferentes métodos interpretativos geram diferentes conclusões, estando o intérprete diante de um caso difícil.

1.2.2.1. Interpretação gramatical

Também conhecida como interpretação léxica, literal, textual, filológica, verbal ou semântica, é o mais antigo método interpretativo existente na seara do direito, recordando França[19] que “[…]tempo houve, no direito romano, em que era a única permitida, pois, como observa Ihering, a importância das palavras era tal que a omissão de uma só delas, no entabulamento de um ato jurídico, podia gerar a sua nulidade”.

Os seguidores desta linha alegam que a norma deve expressar-se por si, valendo para fins interpretativos aquilo que nela consta literalmente, o que consequentemente acaba minorando a margem para distorção da lei e eventual arbitrariedade.

Até certo ponto coaduna-se com a idéia da teoria objetiva, em que o teor a ser levado em consideração é o da mens legis, e não o que desejaria dizer, em tese, o legislador da época da edição da norma.

Luis Roberto Barroso[20] explica que “na interpretação constitucional, por vezes, não é necessário ir além da letra e do sentido evidente do texto como se passa, por exemplo, em relação aos dispositivos acerca da composição e funcionamento dos órgãos estatais”.

Aliás, o mestre prossegue tecendo comentários sobre a relevante presença da interpretação gramatical, invocando comparação com o direito norte-americano:

É corrente, na prática jurisprudencial americana, que as palavras em uma Constituição são empregadas em seu sentido comum. No fundo, é o desejável, pois, tratando-se de um documento simbolicamente emanado do povo e destinado a traçar as regras fundamentais de convivência, seus termos devem ser entendidos em sentido habitual.[21]

Entretanto, adverte Maria Helena Diniz[22]: “Insidiosa é a máxima in claris non fit interpretatio, pois as leis claras contêm o perigo de serem entendidas apenas no sentido imediato decorrente dos seus dizeres, quando, na verdade, têm valor mais amplo e profundo que não advém de suas palavras.”

1.2.2.2. Interpretação teleológica

De certa forma, pode ser considerada como uma evolução distante da interpretação gramatical, uma vez que busca a interpretação da norma por meio da apreciação conjunta dos termos empregados. Em outras palavras, a interpretação isolada das palavras viabiliza a interpretação conjunta.

Como esclarece França[23], “a interpretação lógica é aquela que se leva a efeito, mediante a perquirição do sentido das diversas locuções e orações do texto legal, bem assim através do estabelecimento da conexão entre os mesmos.”

Entretanto, diferentemente do intuito da interpretação gramatical, a interpretação lógica é meio hábil para alcançar o conhecimento acerca da mens legislatoris, ou seja, aquilo que desejava transmitir o legislador.

É neste aspecto que surge a fundamental diferença com relação à interpretação gramatical, pois não se prende à letra fria do enunciado do dispositivo legal ou constitucional em apreço.

Conforme ensina George Salomão Leite[24], “através do elemento teleológico busca-se a ratio legis, a razão da lei. Nela o intérprete procura conhecer a finalidade, o valor que está por trás do enunciado prescritivo.”

De outra banda, também tem alguma proximidade com o método histórico, pois pode utilizar-se das circunstâncias do passado para compreender o intuito da norma. Todavia, diferencia-se daquele método por não estar atrelado às condições históricas, buscando tão-somente compreender o objeto perseguido pelo legislador ou constituinte. Ou seja, não se prende a dada ocorrência ou circunstância do passado, mas resgata a intenção do legislador de modo que possa ela ser adequada às peculiaridades hodiernas e vindouras.

Muito embora inexista hierarquia entre os métodos de interpretação, com alguma freqüência o elemento teleológico, na opinião de alguns doutrinadores, demonstra ser merecedor de preponderância na interpretação constitucional, possivelmente por ser aquele que tenta manter a norma útil e atual, outorgando-lhe condições de cumprimento do propósito para o qual foi elaborada. Assim também entende o professor Luís Roberto Barroso[25]:

A Constituição e as leis, portanto, visam a acudir certas necessidades e devem ser interpretadas no sentido que melhor atenda à finalidade para a qual foi criada. O legislador brasileiro, em uma das raras exceções em que editou uma lei de cunho interpretativo, agiu, precisamente, para consagrar o método teleológico, ao dispor, no art. 5° da Lei de Introdução ao Código Civil, que na aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

Conclui-se, pois, tratar-se de método interpretativo que muito embora não desvalorize a disposição textual da norma, tem por intuito averiguar a sua real razão de existir, permitindo-lhe uma efetiva e eficiente aplicação mesmo com o passar dos anos e alteração das condições originais.

1.2.2.3. Interpretação histórica

É por meio do elemento histórico que se busca interpretar a original vontade do legislador, a fim de se alcançar razoável estabilidade nas decisões judiciais.

George Salomão Leite[26] aduz que “segundo esta concepção, o significado da lei é aquele atribuído por quem a elaborou. Busca-se na vontade do legislador histórico, o significado do texto legal.”

Em sentido semelhante, mas entendendo que tal espécie de interpretação busca não apenas a vontade do legislador como, também, as circunstâncias históricas que deram ensejo ao surgimento da norma, França[27] esclarece: “chama-se interpretação histórica aquela que indaga as condições de meio e momento da elaboração da norma legal, bem assim das causas pretéritas da solução dada pelo legislador.”

Porém, adverte Luís Roberto Barroso[28] que “apesar de desfrutar de certa reputação nos países que adotam o common law, o elemento histórico tem sido o menos prestigiado na moderna interpretação levada a efeito nos sistemas jurídicos da tradição romano-germânica”. Todavia, o doutrinador entende necessário destacar que “o elemento histórico desempenha na interpretação constitucional um papel mais destacado do que na interpretação das leis.” [29]

Finalizando a abordagem sobre o tema, Barroso[30] alerta que os limites da interpretação histórica devem ser respeitados, sob pena de restarem as necessidades presentes e futuras aprisionadas às condições do passado, as quais deram ensejo à norma. Ilustra lamentável ocorrência de desrespeito a esta limitação invocando o julgamento Olmstead vs. United States, no qual a Suprema Corte entendeu inexistir violação da 4ª Emenda – cujo teor traz vedação à prova ilegal e busca e apreensão desprovidas de ordem judicial – supostamente causada pela utilização indevida de interceptação telefônica, pois, aos olhos do então julgador, o comando não se aplicaria ao caso porque em 1971 – data da edição da norma – o telefone ainda não era recurso existente.

É, portanto, espécie de interpretação que antagoniza a interpretação gramatical, coadunando-se com a linha de entendimento que defendem os subjetivistas.

1.2.2.4. Interpretação sistemática

Tida como uma das mais importantes espécies de interpretação jurídica, tal elemento define que não há interpretação da norma sem análise contextual, o que implica na impossibilidade de se alcançar o melhor resultado interpretativo se forem ignorados as demais informações que constituem o todo, tal como apregoa George Salomão Leite[31].

Neste quesito, entra em sintonia com o postulado da Unidade da Constituição, que é adotado como um dos nortes em matéria de interpretação exclusivamente constitucional.

Destarte, segundo esta espécie, é inviável compreender o real significado da norma sem que se analise o todo no qual ela está inserida, observando-se as mais tênues conexões existentes no conjunto.

Luís Roberto Barroso[32] eslcarece:

O método sistemático disputa com o teleológico a primazia no processo interpretativo. O direito objetivo não é um aglomerado aleatório de disposições legais, mas um organismo jurídico, um sistema de preceitos coordenados ou subordinados, que convivem harmonicamente. A interpretação sistemática é fruto da idéia de unidade do ordenamento jurídico. Através dela, o intérprete situa o dispositivo a ser interpretado dentro do contexto normativo geral e particular, estabelecendo as conexões internas que enlaçam as instituições e as normas jurídicas.

Insta salientar que em se tratando de interpretação constitucional, a adoção de tal elemento de interpretação é obrigatória, sob pena de geração de contradições entre as disposições da Carta Maior.

1.2.3. A Interpretação quanto à extensão

Trata-se de conclusão lógica a previsão de que dadas as espécies de interpretação que possam ser adotadas, diferentes conseqüências poderão resultar. Assim, a título de exemplo, se adotado o elemento teleológico ou histórico para interpretar a norma, pode acabar o intérprete por descobrir que a letra da lei está em falta com a mensagem que deveria ser transmitida, seja por dizer menos do que deveria, seja por dar a entender o que de fato não é.

Desta forma, no que tange à extensão da interpretação, três são as possíveis espécies: declarativa, extensiva e restritiva.

Entende-se por interpretação declarativa aquela que conclui que a lei expressa com exatidão o seu propósito, não havendo qualquer dissonância entre o seu texto e a forma de sua aplicação.

Ressalte-se que não há qualquer relação entre a clareza da mensagem e a necessidade de adoção do método Literal de interpretação. O que ocorre, neste caso, é que seja por se busca à idéia do legislador, seja por análise da letra fria da lei, o objeto da norma coincide com a disposição textual.

Quanto à interpretação extensiva, trata-se de decorrência da constatação de que a norma tem maior importância do que aparenta. Seu texto é deficiente quando posto em cotejo com o objeto que efetivamente busca regular ou tutelar.

Dessa feita, concluindo o intérprete da norma que a sua existência busca, na verdade, alcançar objeto mais abrangente do que aquele constante em seu teor literal, sua interpretação acaba por estender o efeito da norma.

Em sentido diametralmente oposto, a interpretação restritiva é fruto da observação de que a norma traz em seu corpo dizer mais robusto do que aquele a que se propunha.

Assim, a fim de evitar que a aplicação da norma crie situações impróprias, presta-se a interpretação restritiva a mitigar o teor do texto, fazendo valer-lhe o sentido correto – na ótica do intérprete.

2. INTERPRETAÇÃO: INÍCIO, MEIO E FIM

Como já demonstrado no capítulo anterior, a interpretação é atividade imprescindível à correta aplicação da norma – constitucional ou não – pois cria condições mínimas e limites de atuação do aplicador da lei. Em se tratando de interpretação constitucional, tal atividade não é menos importante. Muito pelo contrário, haja vista a amplitude das normas constitucionais, a interpretação passa a ser necessária em grande parte dos dispositivos contidos na lei maior.

Destaca José Adércio Leite Sampaio[33]:

Ao longo dos dois últimos séculos, a Teoria do Direito tenta compreender epistemologicamente o estatuto teórico do conhecimento jurídico como uma ciência. Para isto, lançou-se mão, historicamente, do conceito de sistema, e todo esforço da interpretação jurídica moderna tem sido, pelo menos até a metade do nosso século, no sentido de compreender o ordenamento jurídico como um sistema. Se a teria jurídica tradicional podia concordar com o pluralismo na produção do ordenamento jurídico, ela não podia no entanto concordar com um pluralismo na sua aplicação e, sobretudo, no conhecimento jurídico. Se o legislador, pressionado por forças políticas contraditórias, formula um direito antinômico e conflituoso, compete ao cientista do direito encontrar o sistema que subjaz ao caos legislativo aparente.

Destarte, a fim de que se possa proceder a interpretação constitucional adequada e efetiva, criou-se entre a doutrina uma série de critérios, desde pontos de partida até os limites a que pode chegar a interpretação.

2.1. Princípios de interpretação constitucional

Percebe-se na doutrina constitucionalista um certo consenso acerca dos princípios – ou também nominados postulados – aplicáveis para a interpretação constitucional, os quais tem função de consolidar a Lei Maior, dando-lhe sentido eficiente e harmônico.

Dentre tais postulados, alguns são de reconhecimento unânime entre os autores abordam o tema; outros, arrolados apenas por parte da doutrina, são trazidos de forma complementar.

2.1.1. Princípio da Supremacia da Constituição

O intuito do postulado é o de distinguir a Constituição das demais normas em virtude de sua superioridade hierárquica, de modo que não sejam as leis influenciadoras daquela, mas sim o inverso.

Celso Ribeiro Bastos[34] é categórico:

O postulado da supremacia da Constituição repele todo o tipo de interpretação que venha de baixo, é dizer, repele toda a tentativa de interpretar a Constituição a partir da lei. O que cumpre ser feito e sempre o contrário, vale dizer, procede-se à interpretação do ordenamento jurídico a partir da Constituição.

George Salomão Leite[35] ressalta que “é da rigidez da Constituição que deriva a superioridade formal das normas constitucionais sobre as demais normas integrantes da ordem jurídica.”

Ante a obviedade do propósito do postulado em questão, não há necessidade de mais profunda explicação. O que se pretende é que se faça respeitar a hierarquia de normas existente também na atividade interpretativa, pois deve a lei ceder à constituição e nunca o contrário.

2.1.2. Princípio da Unidade da Constituição

Segundo este postulado, a interpretação deve ser realizada sempre levando em consideração a constituição como um sistema, um organismo, que deve ter sentido e eficiência nos seus diversos aspectos, como um todo. Aliás, Virgilio Afonso da Silva[36] aponta que “o chamado princípio da unidade da constituição parece em nada se diferenciar daquilo que há pelo menos século e meio se vem chamando de interpretação sistemática”.

Vale dizer que interpretações isoladas que possam criar contradições dentro da própria constituição são vedadas. Isso implica na conclusão de que o método de interpretação sistemático é obrigatório, não obstante possam estar presentes outros.

Aliás, sobre a questão o comentário de George Salomão Leite é de total pertinência:

Por força do princípio da unidade, a Constituição deve ser compreendida de forma sistêmica, não devendo o exegeta interpretar uma norma constitucional isoladamente. A Constituição é um sistema, e como tal deve ser considerada. Deve-se evitar, ressalte-se mais uma vez, qualquer interpretação que resulte em conflito entre normas constitucionais.[37]

Afinal, quando a norma constitucional é clara, o método gramatical encontrará o mesmo destino que o método sistemático. De igual sorte, os métodos teleológico e histórico, ao buscarem o intuito genuíno da norma, podem ser indispensáveis para a interpretação de determinado dispositivo constitucional, desde que não afastado o método sistemático. Canotilho[38] explica:

O Princípio da unidade da constituição ganha relevo autónomo como princípio interpretativo quando com ele se quer significar que a constituição deve ser interpretada de forma a evitar contradições (antinomias, antagonismos) entre as suas normas. […] Daí que o intérprete deva sempre considerar as normas constitucionais não como normas isoladas e dispersas, mas sim como preceitos integrados num sistema interno unitário de normas e princípios. [sic]

Celso Ribeiro Bastos[39] complementa:

É necessário, pois, que o intérprete procure as recíprocas implicações, tanto de preceitos como de princípios, até chegar a uma vontade unitária da Constituição.

Como conseqüência desse princípio, as normas constitucionais devem sempre ser consideradas como coesas e mutuamente impricadas. Não se poderá jamais tomar determinada norma isoladamente, como suficiente em si mesma.

A aplicação do postulado é imperiosa por ser responsável pelo fortalecimento da Constituição. Impede o surgimento de contradição entre os próprios dispositivos, o que fatalmente fragilizar-lhe-ia como norma suprema.

2.1.3. Princípio da maior efetividade possível

Também chamado por Canotilho[40] de princípio da máxima efetividade, princípio da eficiência ou princípio da interpretação efetiva, o postulado em questão tem por objeto valorizar a mensagem trazida pela norma constitucional, devendo ser-lhe dada o sentido que maior eficácia lhe dê.

Como a norma não deve empregar palavras inúteis, sempre que possível, o alcance mais eficiente deve ser atribuído ao dispositivo constitucional sob análise interpretativa.

Todavia, Celso Ribeiro Bastos alerta para os cuidados que se deve ter quanto à aplicação do postulado:

Mas cumpre advertir que o axioma aqui colocado não é sinônimo do que se designa por interpretação ampliativa, nem mesmo se pense em convertê-lo em estímulo para, em casos duvidosos, fazer prevalecer sempre a interpretação lata. Isto seria, em muitos casos, subverter os fins para os quais existe a Constituição, dentre eles o da defesa do indivíduo.[41]

A idéia do postulado não é a de dar sentido extremamente amplo, pois acabaria por se criar uma ilegítima interpretação extensiva, o que por vezes seria absurdo. O que pretende o postulado é fazer com que a interpretação dê à norma constitucional o sentido mais coerente possível – e aqui deve ser novamente observado o princípio da unidade.

2.1.4. Princípio da Harmonização

Também conhecido por princípio da concordância prática, em verdade, trata-se como um postulado secundário, decorrente do princípio da unidade da constituição. Assim, apregoa a necessidade de que os diversos trechos da constituição, ainda que aparentemente contraditórios em determinado aspecto, encontrem um ponto de vista harmônico.

Canotilho destaca que “o princípio da concordância prática impõe a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício (total) de uns em relação aos outros”[42], entendimento este que é adotado também, sem alterações, por George Salomão Leite[43].

Celso Ribeiro Bastos leciona sobre o tema:

Assim, o postulado da harmonização impõe que a um princípio ou regra constitucional não se deva atribuir um significado tal que resulte ser contraditório com outros princípios ou regras pertencentes à Constituição. Também não se lhe deve atribuir um significado tal que reste incoerente com os demais princípios ou regras.[44]

David Diniz Dantas aborda a idéia da atenção ao conceito de proporcionalidade, que deve ser realçado entre os princípios que possam sofrer conflitos ante o caso concreto que os suscite:

Com a idéia de proporcionalidade procura-se desenvolver (não solucionar definitivamente) o conflito de princípios por meio de uma “solução de compromisso” por meio da qual um deles será privilegiado no caso concreto, mas sempre procurando minimizar os efeitos ofensivos ao princípio “perdedor”. Este em todo caso deve ter seu “núcleo essencial respeitado.[45]

Com entendimento semelhante, Virgilio Afonso da Silva[46] argumenta que a idéia de concordância prática está “estreitamente ligada à idéia de proporcionalidade, pois exige que, na solução de problemas constitucionais, deve-se procurar acomodar os direitos fundamentais de forma que todos possam ter uma eficácia ótima. Mas há algumas diferenças”.

De certa forma também vincula-se ao postulado da máxima efetividade, uma vez que a harmonização busca dar coerência à norma em lume, possibilitando-lhe uma aplicação sem riscos de conflito com os demais dispositivos e princípios constitucionais.

2.1.5. Outros princípios

Muito embora os quatro princípios anteriores sejam elencados em uníssono diapasão pela doutrina, não se pode olvidar ainda da existência de outros, não adotados em consenso pelos autores constitucionalistas.

Dentre estes, Canotilho destaca outros três princípios, que serão alvo de curta análise: princípio do efeito integrador, princípio da conformidade funcional e princípio da força normativa da constituição.

O primeiro, frequentemente associado ao postulado da unidade, busca enfrentar os problemas de ordem constitucional com soluções que atentem aos princípios basilares da carta maior, de caráter social e relacionados à estabilidade política. Tal como esclarece David Diniz Dantas[47], “a integração do ordenamento jurídico por meio da Constituição é uma das finalidades principais da interpretação constitucional[…]”.

Segundo Canotilho, “na resolução dos problemas jurídico-constitucionais deve dar-se primazia aos critérios ou pontos de vista que favoreçam a integração política e social e o reforço da unidade política.”[48]

Já o princípio da conformidade funcional – ou princípio da justeza – intenta evitar que a interpretação constitucional altere organização de competências definida pelo constituinte originário.

George Salomão Leite esclarece que “consoante este postulado, as normas constitucionais devem ser interpretadas de modo a não alterar as competências dos órgãos públicos constitucionalmente fixadas.”[49]

Assim, a interpretação pelo Judiciário – ou órgãos que tenham poder de decisão quando da aplicação prática da constituição – não pode fugir daquilo estabelecido na Carta Maior. A tarefa de alterar a organização da constituição não cabe ao intérprete, mas sim ao constituinte.

Por fim, o princípio da força normativa da constituição tem por escopo manter o interpretante das leis infraconstitucionais atento à necessidade de não perder de vista os preceitos fundamentais da norma maior.

Canotilho esclarece que “na solução de problemas jurídico-constitucionais deve dar-se prevalência aos pontos de vista que, tendo em conta os pressupostos da constituição (normativa), contribuem para uma eficácia óptima da lei fundamental.”[50]

David Diniz Dantas conecta este princípio ao postulado da máxima efetividade, pois entende que “a idéia de ambos os princípios é realçar que na solução de casos constitucionais devem prevalecer os pontos de vista que promovam a eficácia máxima da Constituição”[51].

2.2. Sistemas interpretativos

Uma vez definidas as espécies de interpretação, quanto ao agente, natureza e extensão, e princípios que norteiam o ponto de partida da tarefa interpretativa, torna-se viável avançar o estudo, passando-se à análise dos sistemas interpretativos, que visam a definir a postura e liberdade do intérprete.

Consoante magistério de França[52], três são os sistemas de interpretação hoje identificados: o dogmático, o histórico-evolutivo e o da livre pesquisa.

2.2.1. Sistema dogmático

Também conhecido como sistema exegético, sistema jurídico-tradicional ou, ainda, sistema francês, tem indissociável relação com a postura adotada pelos intérpretes ante o Código de Napoleão – tal como sugere a última nomenclatura.

Como amplamente sabido, o referido diploma veio a ser consolidado como uma das mais completas fontes legais – dadas as circunstâncias históricas locais –, tornando-se inquestionável a sua aplicação. Daí a relação com a dogmática.

O sistema em questão divide-se em duas correntes: a extremada e a moderada.

Os defensores da orientação extremada simpatizam, em regra, com a interpretação gramatical, uma vez que entendem que a norma expressa com exatidão aquilo que deseja (ou desejava) o legislador ou constituinte.

Assim, a função do intérprete não é a de dar novo sentido à norma, mas sim de explicá-la, ainda que discorde de eventuais desajustes em relação aos fatos que devem a ela serem submetidos.

De outro lado do sistema dogmático, tem-se a orientação moderada, a qual permite a adoção de interpretação sistemática, histórica ou teleológica das normas envolvidas, flexibilizando-se o entendimento acerca do teor do dispositivo legal ou constitucional quando houver real necessidade. Tecendo comentários sobre a orientação moderada, França refere que “para os casos duvidosos, recomenda a interpretação sistemática a consulta às fontes que propiciaram o texto ao legislador, o exame dos trabalhos preparatórios, a ponderação das conseqüências das interpretações possíveis e, finalmente, a indagação do espírito da lei.” [53]

2.2.2. Sistema histórico-evolutivo

Inspirado nos ensinamentos de Savigny, França[54] esclarece que se trata de sistema que utiliza dos quatro elementos de interpretação (gramatical, teleológico, histórico e sistemático), a serem utilizados em conjunto para o resultado mais fidedigno ao propósito da norma.

Entretanto, a impressão que se extrai da análise de tal sistema, é de estar substancialmente mais presente a interpretação histórica, prestando-se como imprescindível base para a confirmação da interpretação sistemática, teleológica ou gramatical que porventura se faça. Que se observe, todavia, que a utilização das últimas três espécies interpretativas não acarreta qualquer prejuízo ao resultado, estando em verdade vinculada à perspectiva adotada pelo intérprete.

A tendência, no entanto, é que a limitação do próprio sistema acabe por culminar em uma absorção pelo sistema da livre-pesquisa, eis que este último vale-se também de dados históricos e da apreciação da evolução da necessidade do jurisdicionado para alcançar o seu intento interpretativo.

2.2.3. Sistema da livre pesquisa

Também conhecido como sistema da livre formação do direito, compartilha com o sistema histórico-evolutivo a missão de solucionar as dificuldades decorrentes da adoção do ponto de vista dogmático.

Ocorre que, diferentemente do sistema histórico-evolutivo, não há limites para o sistema da livre pesquisa, que se utiliza de elementos históricos, socais, fontes legais, constitucionais e demais fatores válidos para alcançar o objeto final: a interpretação ideal.

Já no que diz respeito ao sistema exegético, depreende-se que o sistema da livre pesquisa adota caminho nitidamente contrário, criando uma perspectiva que antagoniza o posicionamento dogmático.

Aliás, tal assertiva justifica a relevância que adquire o sistema interpretativo da livre pesquisa. A conseqüência do seu surgimento é o surgimento de uma dicotomia, na qual se posiciona em um pólo o sistema dogmático e no outro o sistema da livre interpretação. Instaura-se aí a possibilidade da atividade dialética, que será objeto de melhor análise no capítulo seguinte.

Divide-se o sistema da livre formação do direito em duas linhas: a romântica e a científica.

Quando nomina a doutrina como postura romântica, refere-se justamente à influência trazida pela formação pessoal do intérprete. Acabam por incidir na interpretação elementos de caráter sentimental ou ideológico inerentes ao agente que interpreta, o que muito embora possa ter resultados positivos quando da análise do caso prático, gera também o risco da insegurança. França adverte que “não se trata propriamente de um sistema científico, senão de uma atitude antijurídica que, se generalizada, comprometeria a paz e a segurança públicas.”[55]

Diametralmente oposta à postura romântica, a perspectiva científica busca o seu embasamento nas normas, filosofia, história e outras ciências que contribuam para uma interpretação fundamentada.

Por óbvio não interessa à presente pesquisa – e possivelmente a nenhuma outra de cunho acadêmico – a postura romântica, limitando-se a sua utilização às relações de cunho privado ou às batalhas judiciais que, por vezes, adotam de linha argumentativa que escapa da seara do direito – em prol da persuasão.

2.3. Limites da interpretação constitucional

É certo que a interpretação da norma, como atividade complementar à edição do próprio texto, possui limites. Estes, por sua vez, são de certa forma previsíveis e justificáveis quando observados os postulados de interpretação constitucional.

Ora, a ausência de limites no desempenho da tarefa ensejaria a possibilidade de distorção do cerne da constituição, uma vez que teria o interpretante o poder absoluto de ditar o que, em tese, tal dispositivo constitucional efetivamente significa dentro de determinado contexto.

Portanto, visando a evitar o desenvolvimento de preocupante quadro, alguns critérios são adotados como limites na interpretação da lei maior, sem embargo todavia dos postulados ou princípios constitucionais que também orientam a atividade.

2.3.1. Mutações Constitucionais

Inúmeros são os fatores que implicam em uma mutação gradual de uma sociedade: avanço em matéria de tecnologia ou educação, crise ou desenvolvimento econômico, influência cultural externa, etc.

Por tal razão, alteram-se também as necessidades de uma nação, sejam elas individuais ou coletivas, o que implica em uma adequação do sistema jurídico então vigente.

Afinal, as condutas só devem se adequar à lei quando esta estiver em sintonia com as necessidades e costumes do grupo a ser regrado.Trata-se de um pressuposto de legitimidade da norma, uma vez que a regra não deve dissonar das necessidades do público que se obrigará a cumprí-la.

Com o decorrer dos anos, e consequente mudança da realidade econômica e/ou social, é possível que as normas constitucionais passem a ser impróprias para reger as relações a que se propunham inicialmente, salvo se houver a possibilidade de uma interpretação que possibilite uma readequação entre norma e objeto tutelado.

Tem-se aí o chamado fenômeno da transição constitucional, em que é preservado o texto original da norma, mas é revisado o sentido originalmente conferido, a fim de que não se torne o dispositivo contrário aos princípios orientadores e ideais basilares da constituição.

Situação diferente seria aquela em que as mudanças econômicas ou sociais são de tal relevância que a mera reinterpretação da norma não é suficiente para atender às novas necessidades.

Surge aí a necessidade de uma alteração constitucional, ou seja, uma efetiva mudança formal do preceito constitucional, editando-se o texto da norma de forma que sejam extintas ou acrescentadas regras a fim de coadunar-se à ideia nuclear da constituição.

É neste ponto que reside o problema, pois há casos em que o limiar que separa a possibilidade de uma transição constitucional da necessidade de uma alteração constitucional é demasiado tênue.

O limite, neste caso, está fixado no ponto em que se encerra qualquer possibilidade de ser dado à norma novo sentido, em vista da necessidade de ser revisto o texto que lhe dá as formas e o alcance da interpretação.

2.3.2. Normas constitucionais inconstitucionais

No campo teórico, cogita-se a possibilidade da ocorrência de uma inobservância por parte do legislador constituinte aos preceitos fundamentais não positivados que devem reger uma constituição.

Tal ocorrência geraria a singular situação de uma norma constitucional inconstitucional, conceito este importado da doutrina alemã (verfassungswidrige Verfassungsnormen) por Canotilho[56], dividindo-se em duas linhas: contradições transcendentes e contradições positivas.

2.3.2.1. Contradições transcendentes

Quando se fala de contradição transcendente, cria-se a problemática idéia de normas constitucionais inconstitucionais, o que é decorrência da falta de sintonia entre os valores que orientam e sustentam a constituição e a norma positivada que lhe dá forma.

É o que ocorre quando o ato constituinte (originário e, principalmente, derivado) não reflete com fidelidade o anseio e necessidade da nação que será regida pelas normas constitucionais criadas.

Canotilho[57] esclarece:

“É perfeitamente admissível, sob o ponto de vista teórico, a existência de contradições transcendentes, ou seja, contradições entre o direito constitucional positivo e os “valores”, “directrizes” ou “critérios” materialmente informadores da modelação do direito positivo (direito natural, direito justo, ideia de direito).”

O limite interpretativo da contradição transcendente se desenha justamente na ideia de que a interpretação das normas deve ater-se àquilo que primordialmente busca defender a constituição, o que remete aos elementos de interpretação teleológico e/ou histórico – sem olvidar-se, por óbvio, da obrigatória presença do elemento sistemático.

Todavia, resta a dúvida sobre a quem compete apreciar tal questão. Afinal, não se trata de tarefa simples a de afirmar que o texto constitucional é contrário aos preceitos fundamentais que sustentam a constituição.

Dando prosseguimento à sua explanação, o mestre Canotilho ilumina o caminho que se revela o mais apropriado:

“A questão da constitucionalidade da constituição suscita, logicamente, também o problema de saber quem controla a conformidade da constituição com o direito supraconstitucional. O Tribunal Constitucional Alemão, ao admitir uma ordem de valores vinculativamente modeladora da constituição, vinculativamente modeladora da constituição, considerou-se igualmente competente para “medir” valorativamente a própria constituição. O Tribunal Constitucional teria um papel de “guia” na defesa da ordem de valores constitucionais.”

Seguindo esta linha, dentro do ordenamento pátrio, recairia por analogia sobre Supremo Tribunal Federal a competência para a apreciação da questão, o que em verdade não chega a ser novidade quando eventualmente suscitada a inconstitucionalidade de normas constitucionais decorrentes de emendas à constituição.

É oportuno frisar, entretanto, que em se tratando de normas positivadas pelo legislador constituinte originário, deve-se adotar a interpretação sistemática auxiliada pelos dos postulados de interpretação constitucional, a fim de que se encontre na norma a razão de existir em função dos valores que lhe ensejaram a existência.

Por óbvio, é possível que se crie a situação em que o texto original da norma constitucional não mais tenha condições de reger a realidade que se desvela, tal como ocorre quando presentes a necessidade de alteração constitucional, tema este anteriormente abordado.

2.3.2.2. Contradições positivas

Diferentemente do que ocorre com as contradições transcendentes, em que o conflito se cria entre uma norma constitucional escrita e um ou mais valores axiológicos, nas contradições positivas o atrito é gerado entre normas positivadas.

Destarte, quando da interpretação sistemática e observância dos postulados da unidade e da harmonia ainda resultar incompatibilidade entre duas normas constitucionais, surge a possibilidade de identificação da inconstitucionalidade de uma delas.

Entretanto, é mister salientar que só será possível a verificação de inconstitucionalidade de uma, em função do que estabelece a outra, quando entre elas houver uma relação de hierarquia.

Trata-se de pressuposto básico de descarte da norma inconstitucional, uma vez que se ambas estiverem no mesmo nível, não se poderá afirmar que uma tem maior relevância que a outra.

Em se tratando da Constituição Federal brasileira, as possibilidades de uma norma constitucional inconstitucional restringem-se àquelas oriundas da atividade legislativa derivada.

A exemplo disso, Virgilio Afonso da Silva[58] comenta:

Somente se se parte do pressuposto de que se essas normas são, de alguma forma, superiores às demais normas constitucionais é possível entender a razão pela qual as emendas constitucionais que pretendam alterar as chamadas “cláusulas pétreas” são inconstitucionais, enquanto as emendas que alterem os artigos que não estejam entre essas cláusulas são permitidas.

Canotilho[59] destaca que “a probabilidade de existência de uma norma constitucional originariamente inconstitucional é bastante restrita em estados de direito democrático-constitucional.”

3. A CERTEZA DOGMÁTICA E A DÚVIDA ZETÉTICA

Esclarecido o funcionamento do processo hermenêutico, para que seja possível dar prosseguimento ao raciocínio desenvolvido acerca da atividade interpretativa constitucional, viabiliza-se o avanço do próximo passo. Tal avanço consiste em adentrar às perspectivas de tratamento do assunto, hodiernamente divididas em dogmática e zetética.

Sintetiza Ícaro de Souza Duarte[60] que “zetética vem de zetein e significa perquirir, ter dúvida e dogmática vem de dokein e significa doutrinar”, definição esta confirmada pelo professor Leonel Cesarino Pessoa[61], dentre outros autores que abordam o tema.

É relevante que se compreenda que dogmática e zetética não são propriamente figuras vinculadas à hermenêutica, mas sim à postura do operador do direito, a nível abstrato e/ou concreto.

Entretanto, a recíproca não é verdadeira. A hermenêutica, como ciência base do direito, atingirá invariavelmente ambos os pontos de vista, em maior ou menor intensidade, a depender do contexto.

Destarte, sob pena de perder-se a informação por ausência de assimilação, a hermenêutica passa a ser pré-requisito indispensável para que se torne possível alçar a compreensão acerca dos posicionamentos, dogmático ou zetético.

3.1. Dogmática

No ambiente nacional é notório tanto na atuação dos profissionais do direito quanto – e principalmente – no sistema de ensino jurídico que a visão dogmática de apreciação de normas constitucionais e infraconstitucionais reina de forma quase soberana.

Possivelmente tal situação seja fruto da considerável carga de conhecimento científico produzido em matéria jurídica, o que parece ser uma tendência local, ante o volume de leis e emendas constitucionais que surgem a cada novo ano.

Busca a dogmática estabelecer um padrão, enrijecendo definições por dado período de tempo. Tal proceder tem por propósito alcançar uma certa estabilidade e segurança jurídica, evitando-se freqüentes novas interpretações acerca da mesma norma – o que implicaria em julgados distintos sobre idênticas situações.

Maria Helena Diniz[62] descreve a importância da dogmática de forma sucinta e precisa:

A função social da dogmática jurídica está no dever de limitar as possibilidades de variação na aplicação do direito e de controlar a consistência das decisões, tendo por base outras decisões. Só a partir de um estudo científico-jurídico é que se pode dizer o que é juridicamente possível. O ideal dos juristas é descobrir o que está implícito no ordenamento jurídico, reformulando-o, apresentando-o como um todo coerente e adequando-o às valorações sociais vigentes.

A dogmática é, portanto, a âncora nas ciências jurídicas. É dela que partem as certezas, a segurança, a afirmação daquilo que é – ou deve ser – e do que não deve ser alvo de (novas) discussões. Leonel Cesarino Pessôa[63] define da seguinte forma:

Numa perspectiva dogmática, predomina o lado resposta. Isso significa que nem tudo pode ser objeto de questionamento. A investigação tem limites porque as questões abordadas são limitadas. Algumas das premissas – os dogmas – são tomadas como certas e mantidas fora de questionamento, e o resultado da investigação, em última instância, terá de manter relação com essas premissas que não podem ser afastadas.

Destarte, o propósito da perspectiva dogmática é a cristalização da interpretação e, consequentemente, das decisões judiciais acerca da forma de aplicação das normas aos casos concretos.

3.1.2. Segurança científica

Muito embora as ciências jurídicas sejam instrumento de dissecação das normas, interpretação e aplicação, o que implica na idéia de constante atividade de indagação e, até mesmo, flexibilização de pensamento, é mister sejam feitas algumas ressalvas.

Ora, se o objeto da ciência é o avanço, é pressuposto básico que o objeto de estudo atual esteja calcado nas conclusões de estudos do passado. De igual forma, as conclusões a que se chegar hoje, servirão de ponto de partida para as reflexões vindouras.

Tercio Sampaio Ferraz Junior trata da principal característica da dogmática da seguinte maneira:

Ela explica que os juristas, em termos de um estudo estrito do direito, procurem sempre compreendê-lo e torná-lo aplicável dentro dos marcos da ordem vigente. Essa ordem que lhes aparece como um dado, que eles aceitam e não negam, é o ponto de partida inelutável de qualquer investigação. Ela constitui uma espécie de limitação, dentro da qual eles podem explorar as diferentes combinações para a determinação operacional de comportamentos juridicamente possíveis.[64]

Por conta disso, nem tudo deve ser objeto de novo questionamento. A revisão de determinados postulados tem sua importância, mas as certezas são fundamentais para se ter início a descoberta de um novo horizonte. Alexandre Araújo Costa[65] salienta que “se o juristas colocassem em dúvida todos os conceitos fundamentais do direito, as discussões jurídicas nunca teriam fim.”

Ora, até mesmo a primeira interpretação da norma utiliza-se da carga de conhecimento trazida pelo intérprete. Para que possa apreciar o novo, deve ter parâmetros de comparação e conceitos pré-estabelecidos. Jane Reis Gonçalves Pereira[66] explica:

Nessa perspectiva, é de capital importância na atividade hermenêutica o fenômeno da pré-compreensão. A pré-compreensão decorre do conjunto de experiências do intérprete e do contexto social em que este se insere. A tarefa interpretativa nunca é levada a afeito por alguém completamente despido de preconceitos, estando sempre condicionada pelos valores, crenças e vivências daquele que interpreta. No exame de um determinado problema jurídico, haverá sempre certa antecipação da solução a ser adotada por parte do intérprete, antecipação esta que é revelada pela própria forma como a questão jurídica é por este formulada. No entanto, tal solução é sempre provisória e deverá ser confirmada à luz do ordenamento.

E é aí que se localiza a dogmática como postura inarredável para o avanço da ciência. Afinal, somente uma base sólida permite a construção de uma nova estrutura de pensamento. Não há linha de raciocínio que possa ser levada a sério quando inexistente a segurança acerca daquilo que foi utilizado como base.

3.1.1. Segurança jurisdicional

A necessidade de alicerces sólidos acerca de conceitos e interpretação não é exclusiva do campo teórico da atividade jurídica. Também a práxis demanda pontos livres de controvérsia acerca do modo de utilização das normas que dão margem para interpretações divergentes.

Aliás, a certeza tem maior relevância na atividade jurisdicional do que na científica. Isso porque a ciência, na condição de atividade teórica, trabalha para aprimorar os meios de obtenção do reflexo concreto.

A atividade judicial existe para atender a um fim social. Ao judiciário compete a aplicação e o cumprimento da norma. A norma, por sua vez, é emanada dos poderes legislativos e executivo, e tem por objeto atender à demanda do Estado e da sociedade.

Portanto, a prática jurisdicional busca atender a um fim de interesse social, mesmo quando aprecia a demandas de direito privado – neste caso o interesse social estaria estampado na ideia de que ninguém ficará desamparado nem estará fora do alcance da lei.

De outra banda, a atividade científica tem por objeto identificar problemas presentes ou futuros na aplicação da norma sob determinado ponto de vista, apontando possíveis soluções – de ordem interpretativa ou legislativa.

Então, enquanto a ciência busca soluções para a prática da aplicação da norma, o judiciário busca soluções práticas por meio da aplicação da norma. A atividade científica reflete na atividade jurisdicional, enquanto esta última reflete de forma incisiva sobre a sociedade jurisdicionada.

Daí o porquê de ser o dogma tão o mais importante para a atividade jurisdicional do que para a atividade científica. Enquanto a ciência se permite inflexões pela busca do melhor conceito e/ou interpretação, o aplicador da lei não tem tamanha liberdade.

Ilustra Alexandre Araújo Costa que, se ausente uma postura dogmática ante certas questões,

o réu sempre poderia questionar a legitimidade do Estado para forçá-lo a viver dez anos em uma penitenciária. Ele sempre poderia dizer que as provas contra ele apresentadas não são uma demonstração absoluta de que Lee cometera o crime de que é acusado, e as provas nunca são uma demonstração absoluta.[67]

Prossegue o autor explicando:

Por tudo isso, o jurista (bem como muitos estudiosos da moral e de teologia) não pode colocar em dúvida todos os conceitos com os quais trabalha. Ele precisa definir um certo grupo de noções como inquestionáveis, pois esses serão os critérios para decidir as questões problemáticas.[68]

Enquanto uma variação de entendimento doutrinário esbarra nas convicções do julgador, que servem como ponderação ou filtro, mesma sorte não teria o jurisdicionado no caso de variação de linha de raciocínio adotada pelo mesmo julgador, por um simples motivo: a última palavra cabe ao judiciário.

Parte-se do corolário, portanto, de que a dogmática tem papel essencial de segurança nas decisões emanadas das tantas instâncias das diferentes competências que compõem o judiciário brasileiro. Afinal, se hipoteticamente o próprio julgador não tivesse alguma certeza sobre a forma de aplicação da norma, criar-se-ia uma situação de caos jurídico.

As incertezas, especulações e previsões devem ser resguardadas, na medida do possível, ao mundo da atividade científica. Prestam-se as ciências jurídicas como ferramentas da busca da melhor linha de pensamento, a fim de que possa a atividade prática jurisdicional diminuir a margem de erro quando da aplicação das normas então ventiladas.

3.2. Zetética

Diametralmente oposta à perspectiva dogmática, surge a zetética com o propósito de revisar as ditas verdades solidificadas, questionar os paradigmas existentes e, quando for o caso, derrubar os posicionamentos já ultrapassados.

Surge a zetética como combate à visão retrógrada e obsoleta que por vezes solidifica-se entre os operadores do direito sobre determinados aspectos, revelando-se verdadeiro entrave à concretização do propósito primordial e razão de existir da justiça.

Alexandre Araújo Costa[69] define que “quando o principal compromisso de uma ciência é com a descrição da realidade, ela tem que deixar os seus conceitos fundamentais sempre abertos à discussão e, portanto, ela pode ser qualificada como zetética.”

 Portanto, tem-se na zetética a oportunidade de rever conceitos enrijecidos que já não mais tenham condições de aplicabilidade ante às necessidades que se desvelam no campo teórico e prático, o que decorre não apenas da mudança das atividades do público alvo jurisdicionado, mas também do surgimento de novas normas cuja primeira interpretação, literal, possa acarretar reflexos negativos e incompatíveis com o seu propósito.

3.2.1. Reflexos da zetética

A fim de melhor vislumbrar a importância da perspectiva zetética, trata-se de relevante abordagem as conseqüências de sua adoção, até mesmo para que, feito o caminho inverso – da conseqüência em direção à causa – se crie o necessário subsídio para a compreensão do tema.

3.2.1.1. Quebra de paradigmas

Das ciências da sociologia e da história extrai-se o atestado mais nítido de que o avanço dos anos implica em mudança de rotinas e demandas da sociedade. Seja por influência de comportamento externa, chegada da tecnologia, avanço cultural ou simples mudança de condição econômica, os hábitos de uma nação mudam. E com eles, alteram-se também as necessidades – individuais e coletivas – do ser humano, o que implica na readequação das regras definidas pelo Estado.

O que em tempos passados era tipificado como crime, conseqüente da circunstancial imoralidade, hoje é tido como normal ou mero dissabor do cotidiano. De outra banda, o que no passado nem se cogitava, dadas as limitadas condições tecnológicas, hodiernamente passa a ser objeto de preocupação do legislador e judiciário. Como exemplos notórios, pode-se invocar a atenção suscitada pelos chamados crimes virtuais e danos ao meio ambiente.

Neste aspecto, a zetética vem se revelando visão de grande relevância na superação de obstáculos, pois cria a oportunidade de revisão de conceitos que se tornaram entraves para o alcance da tutela de que se carece.

Plauto Faraco de Azevedo[70] relembra inusitado e triste episódio[71] que marcou a nação, em que um deputado federal veio a ter mandado cassado e a sofrer condenação penal quando, na verdade, apenas desempenhava a função que a própria Constituição lhe atribuía. O autor destaca que a ocorrência, visivelmente injusta e contrária aos preceitos fundamentais que regem a Constituição, foi conseqüente da falta de tato por parte do julgador acerca da adequação da lei e, até mesmo, de sua constitucionalidade. Ora, uma postura zetética ensejaria o questionamento acerca da norma, o que possivelmente afastaria a sua aplicação para o caso.

Em matéria de direito aplicado, tem-se nos enunciados de súmulas dos tribunais superiores a presença da cristalização de entendimento, característica da dogmática. Em contrapartida, a aplicação prática da zetética resulta na revogação dos enunciados que se tornem inadequados para a correta[72] aplicação da lei ou constituição.

Por óbvio, a zetética parece servir muito mais à ciência do que a dogmática. Esta, em contrapartida, passa a demonstrar maior importância no campo prático, da efetiva aplicação das normas, do que aquela. Tal quadro é conseqüente das características das atividades em questão: enquanto a atividade científica atua no campo teórico, a atividade jurisdicional atua no campo prático.

Então – como já abordado anteriormente – o judiciário tem por objeto resolver uma situação fática problemática que se lhe desvela, sem que lhe pareça oportuno levantar questionamentos acerca de cada conceito utilizado como fundamento de decidir. Abre-se exceção a esta regra quando a falta de coesão parecer-lhe gritante ou a questão seja de caráter excepcional, o que exigiria uma linha de raciocínio também excepcional por parte do aplicador da lei – lei esta que busca ser de caráter geral.

Muito embora esta tendência venha mudando gradualmente, Jane Reis Gonçalves Pereira[73] lembra que “[…]a noção de que o juiz atua com certa dose de criatividade só veio a ser aceita de forma mais ampla após o fracasso histórico do positivismo legalista.”

Entretanto, as vertentes vem rumando a um ponto de equilíbrio no que tange ao que deve ou não ser objeto de revisão de interpretação. Lênio Streck[74] aborda a questão:

[…] não deve haver surpresa por parte da doutrina ou da jurisprudência com relação ao caráter das decisões que, aparentemente – e somente aparentemente – desbordam dos postulados (metafísicos) do pensamento dogmático do Direito. Ou seja, historicamente (como demonstrado acima) tem sido elaboradas decisões que redefinem o conteúdo de base do texto jurídico. Por isso, é necessário acabar com a ilusão, própria do modelo liberal-normativista, e do constitucionalismo anterior ao Estado Democrático de Direito, de que os tribunais agem como legislador negativo.

Assim, ainda que a zetética não esteja sobremaneira ausente do campo prático, é na seara teórica que ela desenvolve o máximo do seu potencial, apresentando-se como perspectiva de grande valia. Para esclarecer, Tercio Sampaio Ferraz Junior[75] ilustra:

Suponhamos que o objeto de investigação seja a Constituição. Do ângulo zetético, o fenômeno comporta pesquisas de ordem sociológica, política, econômica, filosófica, histórica, etc. Nessa perspectiva, o investigador preocupa-se em ampliar as dimensões do fenômeno, estudando-o em profundidade, sem limitar-se aos problemas relativos à decisão dos conflitos sociais, políticos, econômicos. Ou seja, pode encaminhar sua investigação para os fatores reais do poder que regem uma comunidade, para as bases econômicas e sua repercussão na vida sociopolítica, para um levantamento dos valores que informam a ordem constitucional, para uma crítica ideológica, sem preocupar-se em criar condições para a decisão constitucional dos conflitos máximos da comunidade. Esse descompromisso com a solução de conflitos torna a investigação infinita, liberando-a para a especulação.

Destarte, revela-se a zetética como figura imprescindível para alcançar o objeto da lei maior e dos valores que a orientam, uma vez que evita que definições obsoletas, contraditórias ou desprovidas de razoabilidade venham a se fixar de forma inarredável na aplicação das normas ante os casos reais.

3.2.1.2. Transição constitucional

Como brevemente salientado no capítulo anterior, um dos fenômenos decorrentes da interpretação da Carta Magna é o da transição constitucional, o qual importa na alteração de sentido da norma sem que se lhe modifique o texto, a fonte constitucional. Ressalte-se aqui, todavia, que tal fenômeno só é possível quando a zetética coloca-se como guia da nova interpretação. Ora, uma alteração de entendimento sobre uma mesma norma só se apresenta como algo viável quando a interpretação até então vigente passa a ser alvo de questionamento.

Aliás, em obra organizada por Jacinto Nelson Miranda Coutinho, o professor Eros Roberto Grau[76] faz sucinta e brilhante explanação sobre o assunto:

Assim, quando tomamos a Constituição de 1988 em face dos fatos da realidade social de hoje, ela já não é mais a Constituição de 1988, mas a Constituição do Brasil, de hoje. E outra será, amanhã, embora permaneça sendo sempre a Constituição do Brasil. Ainda que não se altere o seu texto, a dinâmica da realidade social importará em que outras normas, distintas das dela extraídas em 1988, sejam a partir dela – e da realidade – construídas pelo intérprete autêntico. O juiz não interpreta apenas os textos, mas os textos-e-os-fatos, transformando-os em normas.

Sendo a Constituição um sistema aberto de normas, parece razoável crer que um mesmo dispositivo constitucional possa ter inúmeras aplicações e interpretações, a depender da circunstância que se desenhe. Ora, se os valores que se prestaram como pontos de partida para a própria lei maior são de conhecimento comum, é de se esperar que a norma reflita-os da forma mais conveniente para o momento.

Flávia de Almeida Viveiros Castro[77] assim resume:

Constata-se, portanto, que a interpretação refletida nos dispositivos das modernas cartas constitucionais é intencional e salutar. O constituinte assim o quis e tal plasmou no texto da Lei Maior. Isto por dois principais motivos: permitir o consenso entre grupos políticos que participaram da elaboração da Lei Fundamental e possibilitar a adaptação às novas situações e mudanças que o Estado certamente sofrerá durante o período mais ou menos longo de vigência de sua Constituição.

Ora, percebe-se portanto que além da obrigatória interpretação sistemática, a interpretação teleológica parece ser a que melhor se propõe a dar aos preceitos constitucionais aplicabilidade mesmo quando já não subsistem as condições que ensejaram a sua criação.

Luís Roberto Barroso[78] demonstra atenção à tendência de uma necessidade de interpretação constitucional teleológica:

A Constituição e as leis, portanto, visam a acudir certas necessidades e devem ser interpretadas no sentido que melhor atenda à finalidade para a qual foi criada. O legislador brasileiro, em uma das raras exceções em que editou uma lei de cunho interpretativo, agiu, precisamente, para consagrar o método teleológico, ao dispor, no art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, que na aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. Nem sempre é fácil, todavia, desempenhar com clareza a finalidade da norma. À falta da melhor orientação, deverá o intérprete voltar-se para as finalidades mais elevadas do Estado, que são, na boa passagem de Marcelo Caetano, a segurança, a justiça e o bem-estar social.

Na condição de sistema aberto, a Constituição cria para o intérprete a possibilidade de rever a mensagem que deseja passar. Muito embora já alteradas as condições sociais originais que inspiraram a edição do texto da lei maior pela assembléia constituinte, o desejo do legislador originário era o de que a Carta Magna sobrevivesse por mais tempo.

Assim, conferiu-lhe certa flexibilidade de interpretação, por vezes condicionada à edição de leis ordinárias e complementares, a fim de que, na medida do possível, se preservasse a viabilidade de uma transição constitucional – e, conseqüentemente, se evitasse a necessidade de uma alteração da norma. Sobre a questão, Flávia de Almeida Viveiros de Castro[79] desenvolve explanação:

O texto constitucional é, como visto, marcado pela ambigüidade de seus preceitos e ainda pela generalidade que toda norma jurídica deve possuir. Recorde-se que os dispositivos normativos, de uma forma geral, devem ser aplicados a uma multiplicidade de casos concretos, e tanto maior será sua generalidade quanto mais extensa seja a gama de casos a regular. Dado que o âmbito regido pelo Direito Constitucional é o mais amplo possível, não se pode estranhar a abertura que caracteriza o conteúdo normativo da Carta Magna. Seu desenvolvimento, tanto pela via interpretativa como mediante a legislação, apresenta possibilidades de variação numerosíssimas.

Destarte, pode-se concluir que contava o legislador constituinte com a presença da visão zetética entre a doutrina e os julgadores dos tempos futuros, tempos estes nos quais mudanças substanciais provavelmente ocorreriam, e a revisão da forma de aplicação dos dispositivos constitucionais seria medida obrigatória.

Maria Helena Diniz[80], quando busca expor o porquê da necessária interpretação dos fatos e valores de onde advém a norma, acaba por reforçar este pensamento:

Ao se interpretar a norma, deve-se procurar compreendê-la em atenção aos seus fins sociais e aos valores que pretende garantir (LICC, art. 5º). O ato interpretativo não se resume, portanto, em simples operação mental, reduzida a meras inferências lógicas a partir das normas, pois o intérprete, ao compreender a norma, descobrindo seu alcance e significado, refaz o caminho da "fórmula normativa" ao "ato normativo"; tendo presentes os fatos e valores dos quais a norma advém, bem como os fatos e os valores supervenientes, ele a compreende, a fim de aplicar em sua plenitude o "significado nela objetivado".

Não fosse isso, de nada adiantaria a amplitude característica das normas constitucionais, pois, preso a uma visão dogmática, não seria o operador do direito capaz de perceber a inadequação daquelas ante as necessidades sociais surgidas por decorrência dos mais variados fatores.

3.3. Ponderação de perspectivas

Percebe-se que muito embora antagônicas as óticas dogmática e zetética, não necessariamente disputam espaço. Por vezes, trabalham em complementação mútua. Em outros casos, tem a potencialidade de atuar como corretivo aos exageros da faceta oposta.

Ora, o que se extrai é que na medida em que a dogmática busca conceituar ou estabelecer de forma definitiva determinado entendimento, a zetética é agente de mudança, pois semeia a dúvida como modo de procedimento.

Entretanto, até mesmo para que surjam as dúvidas, um mínimo de certezas são necessárias – ainda que sejam apenas para ser objeto de questionamento. Lourival C. Freitas[81] esclarece:

Claro é que, para se obter um conhecimento mais ou menos abrangente da zetética jurídica, necessário se faz que coloquemos a dogmática como ponto de partida e ancoradouro desse mesmo conhecimento. E isso porque a zetética tanto parte da dogmática para descobrir os objetos da sua pesquisa, quanto parte desses mesmos objetos para chegar ao conhecimento do dogma como maneira particular de delimitar a sua área de investigação.

Isso equivale a dizer que não há zetética sem dogmática, uma vez que inexistindo conceitos solidificados, inabaláveis, resta também prejudicada a atividade de questionamento, a suscitação da dúvida, a pretensa necessidade de revisão de supostas certezas.

Alexandre Araujo Costa[82] assim leciona:

Apesar das distinções apontadas […] deve ficar claro que os enfoques zetético e dogmático não são excludentes, mas complementares. Toda investigação tem uma parte dos dois, na medida e que não é possível conhecer senão a partir de alguns pontos definidos de partida (o que evidencia a presença de uma certa dogmática), mas também é necessário buscar as respostas mais adequadas para as perguntas colocadas (o que implica ao menos um pouco de zetética). Como afirmou Tercio, cada investigação apenas acentua mais um desses aspectos, sendo possível desenvolver perspectivas teóricas que busquem harmonizar esses enfoques.

O problema situa-se na ausência de equilíbrio na utilização das duas óticas. Via de regra, o operador do direito afeiçoa-se mais a uma ou a outra, criando uma tendência problemática.

De um lado, se a afinidade se dá pela dogmática, tende o operador a não fugir do rigoroso texto legal, adotando postura formalista e que, por vezes, acaba por olvidar-se do propósito da norma: o de atender a uma necessidade. Não raras vezes o judiciário, em especial na esfera dos tribunais superiores, sucumbe a essa tendência.

De outra banda, quando se filia o operador do direito à postura predominantemente zetética, acaba por abrir-se à possibilidade de suscitação de dúvidas e conflitos de interpretação sobre questões que não demandam tal importância. Testemunho disso pode ser obtido junto a alguns autores, que erguem discussões homéricas acerca de pontos de questionável relevância.

O que é certo, é que a dogmática busca padronizar a forma de interpretação e aplicação das normas, alcançando uma certeza consensual, enquanto a zetética aspira rever tais padrões, almejando dar à norma a utilidade que melhor se enquadre com os valores inspiradores da Constituição e com os seus princípios orientadores.

É o que de forma ímpar Barroso esclarece:

Há amplo consenso de que a ordem jurídica é uma função de dois valores principais: de um lado, a segurança, a previsibilidade e a estabilidade das relações sociais e, de outro, a justiça. Ambos contribuem direta ou indiretamente para o bem-estar humano, para a proteção e promoção de sua dignidade e para a criação de condições que permitam o seu pleno desenvolvimento. Um sistema que supervaloriza a segurança pode tornar-se iníquo e desconectar-se das legítimas expectativas de justiça. Por outro lado, uma ordem jurídica que despreza a segurança acaba por instituir um ambiente de imprevisão e incerteza que dificulta as relações sociais e o desenvolvimento pessoal dos indivíduos.[83]

Aliás, neste aspecto percebe-se uma certa simpatia entre a adoção de princípios e a postura zetética, enquanto a dogmática tende a ter maior apego às normas, devido ao seu rigor. Tal constatação é decorrência de dois fatores.

O primeiro deles, diz respeito à liberdade de pensamento e de interpretação. Ora, uma vez que os princípios, via de regra, não se apegam a caminhos (meios), mas apenas a início e fim (propósito, destino), há uma miríade de possibilidades de trajetórias a serem adotadas.

Aliás, é esta liberdade que viabiliza ao judiciário, por vezes, usar de princípios como fundamento de decidir, tal como explica Flávia de Almeida Viveiros de Castro:

Conceitos como igualdade, dignidade, livre desenvolvimento, estado de direito, bem comum, constituem terminologia usualmente aplicada em textos constitucionais. Os juízes e tribunais estão sempre recorrendo aos mesmos para fundamentar suas decisões ou ainda, e o que é mais importante, podem estes servir de critério na emissão de um juízo de constitucionalidade.[84]

Então, quando de alguma forma a interpretação dada à norma não estiver em sintonia com o princípio, cria-se a oportunidade de questioná-la, prática esta conseqüente do enfoque dado pela zetética.

O segundo fator reside justamente no intento dos princípios. Princípios, como fontes materiais e formais do direito, atuam como norteadores ao ideal de justiça. Ao contrário da lei, cuja aplicação pode resultar em injustiças, os princípios estão – ou deveriam estar – livres deste resultado, uma vez que seu propósito de existir é justamente o de possibilitar um sistema justo.

Até mesmo os princípios mais voltados a assuntos específicos, a exemplo dos princípios que regem o direito tributário, buscam diretamente atender a questões pertinentes à forma de incidência do tributo, mas indiretamente – e como propósito final – garantir a justa aplicação das normas jurídicas.

Na medida em que regras buscam definir o meio para se atingir o fim, o princípio é o fim, é o norte. A regra visa à segurança, enquanto o princípio visa à justiça.

Aliás, esta distinção é trazida por Luís Roberto Barroso[85], que explica que “as regras são normas que estabelecem desde logo os efeitos que pretendem produzir no mundo dos fatos, efeitos determinados e específicos (conduta)”.  Prossegue o autor ilustrando com o exemplo da norma que proíbe o trabalho noturno, perigoso ou insalubre aos menores de dezoito anos.

Prossegue o autor, com a definição de princípios, explicando que funcionam de forma diferente, pois:

Os princípios, todavia, funcionam diversamente. Para facilitar a exposição sobre os princípios, e tendo em conta razões estruturais, é possível agrupá-los em duas categorias. O primeiro grupo congrega os princípios que descrevem efeitos relativamente indeterminados, cujo conteúdo, em geral, é a promoção de fins ideais, valores ou metas políticas. E essa indeterminação, ainda que relativa, decorre de a compreensão integral do princípio depender de concepções valorativas, filosóficas, morais e/ou da variedade de circunstâncias fáticas sobre as quais ele incide, como nas regras. Por conta da natureza do efeito pretendido, não se trata apenas de empreender um raciocínio lógico-jurídico para apurar as condutas possíveis a partir de distintas posições políticas, ideológicas e valorativas. Se há um caminho que liga o efeito às condutas no caso das regras, há uma variedade de caminhos que podem ligar o efeito do princípio a diferentes condutas, sendo que o critério que vai definir qual dos caminhos escolher não é exclusivamente jurídico ou lógico.[86]

Cumpre advertir que não se autoriza a afirmação categórica que normas são fontes formais pertencentes à seara da dogmática, enquanto princípios vinculam-se à zetética. Tratar-se-ia de erro grosseiro de interpretação.

O que ocorre é que os princípios servem de forma mais útil à zetética, pois sua liberdade característica permite interpretação mais reflexiva, incluindo aquelas que possam ser contraditórias entre si, ainda que potencialmente aplicáveis em períodos distintos.

Sem embargo, a norma é comumente alvo da revisão zetética. O exemplo gritante disso é a própria norma constitucional, que, diversamente das infraconstitucionais, tem como característica a amplitude e generalidade. Ora, por óbvio que norma com esta característica passa a conferir ao intérprete liberdade semelhante àquela que se tem quando da aplicação do princípio.

No que tange à faceta oposta, também não se encontra a ótica dogmática presa às normas, cuja característica é a rigidez. É certo que a dogmática busca a estabilidade e, como tal, a norma – especialmente infraconstitucional – se revela muito adequada para este fim.

Todavia, até mesmo os princípios exigem limites, os quais vigoram por determinado período, até que as circunstâncias demandem nova apreciação e conseqüente reinterpretação, tarefa esta atinente à zetética.

Sem estes limites, estariam os princípios sob risco de perda de foco e, por conseguinte, diminuição de sua real efetividade. Aquilo que pode ser aplicado para tudo, muito provavelmente não será aplicado em nada, justamente por lhe faltar força, nitidez, precisão.

Portanto, zetética e dogmática revelam-se forças opostas que devem coexistir para manter o equilíbrio entre segurança jurídica e justiça, as quais hodiernamente são objeto de incansável busca no sistema jurídico vigente.

CONCLUSÃO

Tendo em vista o escopo inicial da pesquisa, qual seja, o de localizar o ponto de equilíbrio nos pontos de vista e meios de interpretação a fim de atender à real necessidade do sistema jurídico pátrio, percebe-se que a questão demanda muito mais desenvolvimento.

Isso porque os dispositivos de ordem constitucional, dada a sua amplitude, trazem significativa complexidade quando da aplicação prática, uma vez que, via de regra, devem ser objeto de interpretação e, como tal, devem seguir uma série de critérios adotados em matéria de hermenêutica constitucional.

Justamente por exigir a Constituição a adoção de interpretação sistemática obrigatória – ao contrário do que geralmente ocorre com a legislação infraconstitucional, cuja primeira interpretação é a literal –, ainda que acompanhada de outra espécie de interpretação, a tarefa do intérprete deve ser acompanhada de cautela, sob pena de se extrair uma interpretação errônea que atinja frontalmente os postulados da unidade e da harmonização.

De igual forma, independentemente da espécie de interpretação adotada para complementar a interpretação sistemática, percebe-se nos princípios de interpretação constitucional, abordados no capítulo dois, uma força que não pode ser olvidada pelo interpretante.

Não obstante a observância da espécie de interpretação adotada e do respeito aos postulados de interpretação constitucional, ter em vista os limites da interpretação também é medida obrigatória, sob pena de extrapolação da atividade.

Tendo todos estes pontos bem claros e presentes, percebe-se que a margem de interpretação passa a ser resultado da perspectiva a ser adotada. Se dogmática, uma menor liberdade de questionamento e uma tendência a buscar interpretação que reafirme e corrobore a já existente, a fim de assegurar a solidez de determinadas bases, assim reconhecidas pelo consenso.

De outra banda, se a ótica adotada for a zetética, passa o intérprete a sentir-se desamarrado dos conceitos e interpretações então vigentes, podendo reapreciar todos os elementos que as ensejaram, reconsiderando-os na missão de encontrar uma interpretação mais adequada com a condição circunstancial hodierna que se apresenta.

Entretanto, o ponto mais interessante é ainda outro, resultado da análise até aqui trazida. O que se extrai, ao final, do tema abordado pelo trabalho em tela é uma visível constatação de que muito embora dogmática e zetética estejam situadas em pólos diametralmente opostos, sua co-existência não é apenas possível, mas saudável.

As influências dogmática e zetética, de forma equilibrada, em matéria de interpretação constitucional, são a segurança de que a Constituição não se tornará obsoleta e anacrônica, mas que terá o firme posicionamento que se mostrar necessário durante determinado período.

Afinal, a certeza e a dúvida são figuras importantes para todo estudo, eis que a primeira possibilita o seguro avanço em se tratando de interpretação constitucional, enquanto a segunda o promove.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Ádamo Brasil. Interpretação constitucional:: entre a dogmática e a zetética. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3797, 22 nov. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25948. Acesso em: 23 nov. 2024.

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Artigo publicado para trabalho de conclusão de curso de pós-graduação em Direito Público.

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