"La meta final de la verdadera educación es no sólo hacer que la gente haga lo que es correcto, sino que disfrute haciéndolo; no sólo formar personas trabajadoras, sino personas que amen el trabajo; no sólo individuos con conocimientos, sino con amor al conocimiento; no sólo seres puros, sino con amor a la pureza; no sólo personas justas, sino con hambre y sed de justicia." JOHN RUSKIN
Em tema de educação e ensino jurídico parece que vivemos diante de um paradoxo: por um lado, o preceito da Carta Magna que estabelece, em linhas gerais, que a educação há de ter por objeto o pleno desenvolvimento da personalidade humana no respeito aos princípios democráticos de convivência e aos direitos e liberdades fundamentais; por outro lado, a indissimulável situação de quebra e falta de credibilidade do ensino jurídico universitário, contrastável sem mais que ver a quase patológica procura pelos epidêmicos cursos preparatórios extra-universitários por parte dos bacharéis.
Em realidade, qualquer parecido com o que caberia chamar uma boa educação universitária brilha, hoje, de maneira clamorosa por sua ausência [Sobra dizer que (como sempre) há exceções à regra; mas, como sugeriu em certa ocasião Richard Feynman: “as exceções servem precisamente para confirmar que a regra é... errônea”]. Vivemos em um contexto educacional em que a obtenção do grau universitário já não se configura por ser uma conquista do talento e da excelência, um prêmio pelas noites passadas em claro e pelas pesquisas realizadas, senão como um instrumento a mais para conseguir, sem demora, um emprego ou cargo qualquer.
Tão pouco é necessária muita perspicácia para constatar a distância que vai da teoria (uma teoria que se refere nada menos que à “formação de cidadãos virtuosos e responsáveis”) à prática (medida em termos de obtenção de um “bom trabalho” que assegure, antes de tudo, um bom salário). E se entendemos a educação em um sentido mais próximo de como a entendia Aristóteles nada menos que 24 séculos atrás, nem as estúpidas distinções entre teoria e prática, nem as lutas acerca de quem dá a última palavra sobre a capacidade e aptidão profissional servem de muita coisa.
Em termos comparativos, essas duas situações parecem indicar que, por mais que os redatores da “lei das leis” tenham imposto grande empenho retórico em sua redação, o que conta é o que pode ganhar cada um. E poucos seriam os que, postos na tessitura de ter que montar uma “vida digna” (em termos estritamente materiais), o colocaria em dúvida.
Mas, de ser assim, por que tanta preocupação e discussão sobre o ensino jurídico para a ética e a cidadania, e ainda mais sobre o baixo índice de aprovação em concursos públicos e nos exames de ordem por parte dos egressos das faculdades de Direito?
Se as instituições de ensino insistissem em um modelo de educação e formação que tratasse de impedir um perfil de discente proclive ao automatismo, à memorização, ao supérfluo e ao isolamento teórico – origem, diga-se de passagem , de profissionais deficientes e, em determinadas ocasiões, carentes de um mínimo sentido de ponderada razoabilidade acerca dos valores, princípios e normas que ao Direito importam-, seguramente não se diria que o ensino jurídico está desvalorizado, senão que sobe inteiro na bolsa dos valores sociais. Uns profissionais bem formados, por miserável e egoísta que fosse seu comportamento, dariam indício de que nossas instituições de ensino são excelentes. Ou não?
O maior fracasso de nossas universidades parece residir no fato de que deixaram de dar a máxima importância à prioritária tarefa que lhes cabe de tornar efetiva a plena formação dos estudantes universitários, seu preparo para o exercício da cidadania e sua (real) qualificação para um mercado de trabalho cada vez mais exigente e competitivo.
Daí que o elemento principal de toda atividade docente predominante consiste em valorar primordialmente a quantidade de dados retidos pelos alunos, sua capacidade memorística e, em consequência, quase nada de sua capacidade crítica e de entendimento. Isso implica que todo o êxito do ensino passa a depender simplesmente da fidelidade com que o aluno é capaz de assimilar, repetir e reproduzir o que foi dado em sala de aula, em um claro predomínio da quantidade sobre a qualidade.
Por exemplo, quantas vezes nos posicionamos criticamente frente às normas jurídicas, teorias e jurisprudências que os professores explicam em sala de aula? Quantas vezes damos por falível, questionável e equivocada algumas das opiniões dadas por nossos professores? Com que frequência arrojamos uma sombra de incerteza sobre as prepotentes verdades estabelecidas por determinados professores? Quantas vezes tivemos a oportunidade de dialogar e discutir durante uma aula a interpretação ou valoração dada pelo professor de turno sobre um determinado tema? Não dá tempo, verdade? “É tanta coisa!”
Provavelmente nenhuma dessas perguntas ronde por nossas cabeças. Para quê, podemos perguntar, se o objetivo é memorizar, transcrever, absorver, engolir (sem mastigar e sem digerir) e reproduzir a maior quantidade de informação possível? E se o leitor (a) crê que não é assim, intente recordar quantos fundamentos teóricos “de fundo” te oferecem teus professores para poder posicionar-te frente ao Direito que estudas. Na verdade, dá a impressão que para a grande maioria dos alunos e seus respectivos mestres o “atual”, o contingente e/ou o imediato é o único valioso.
Não é necessário que um aluno saiba quem foi (e as teorias de) Gadamer, nem sequer quem foi (e as teorias de) Aristóteles, Hume, Rawls, Nozick, Hart, Kelsen, Kaufmann, Radbruch, Alexy... E um especialista em processo civil não necessita saber nada sobre a natureza humana. Ambos, professor e aluno, exercem suas atividades “brilhantemente” sem esses conhecimentos.
O que resulta mais problemático é que, com essa prática, não conseguimos captar o sentido de nossa atividade. Por quê? Porque a verdadeira compreensão supõe, entre outras coisas, situar o presente em um largo e amplo dinamismo teórico-evolutivo, entender o objeto ou o processo de que se trate como resultado de uma mescla de realidades atuais e condicionamentos históricos, descobrir suas razões e submetê-lo a uma peculiar análise crítica. Do contrário, podemos acabar convertendo-nos em “idiots savants”, posto que a tendência a explicar os fenômenos modernos a partir de um conjunto de causas e condições igualmente (ou exclusivamente) modernas é deficiente, enganosa e desatinada.
Por pequena que seja nossa sensibilidade para esse tipo de problemas, o simples fato de pensar neles já deveria ser suficiente para fazer-nos sofrer em primeira pessoa o atual modelo de ensino a que estamos diariamente expostos. Como a gente culta compreende, um aprendizado mais amplo e sólido do Direito jamais poderá ser adquirido vegetando alegremente em uma pequena sala de aula durante toda a vida, apático simplesmente e/ou esperando a que nossos neurotransmissores se ponham em marcha.
Mas não somente isso. Ao contemplar alguns professores que se comportam como ilustrados em miniatura, que em sua maioria reivindicam sabedoria, mas que, na mesma medida, depreciam (ou talvez invejem) o esforço e a excelência, e até mesmo ao ver como se comportam alguns deles, pouco há que possa estranhar-nos ou surpreender-nos. Talvez por aí haveria que começar a educação: por examinar aos que examinam, aos que não passam de “gestores da ignorância” e/ou aos que se mantêm indiferentes ao “tsunami” anual de bacharéis que não aprenderam o suficiente para situar-se (adequadamente) na vida profissional e no mundo.
Assim as coisas, estou convencido de que, diante do panorama atual, o melhor seria partir da premissa de que qualquer discussão ou proposta honrada acerca do ensino jurídico (e que pretenda propugnar de verdade sua causa, quer dizer, honrada também na ação) somente pode ser empreendida enquanto prática coletiva e solidária que implique o comprometimento, colaboração e ativa participação dos agentes diretamente envolvidos no processo ensino-aprendizagem.
Não parece razoável pensar em uma mudança do atual modelo jurídico-educativo sem que os professores, diante de um sistema esclerosado e deficiente, proponham-se a fazer uso de uma docência integral, interdisciplinar e significativa de conhecimentos, assim como formativa em relação à capacidade intelectual e crítica com respeito aos valores e atitudes dos estudantes frente ao Direito. Isto é, sem que os professores assumam o compromisso ético de procurar capacitar o aluno não somente à tarefa de “saber” e “conhecer” razoavelmente o ordenamento jurídico, senão também, e muito particularmente, para reflexionar sobre essa ciência, dotando-o das qualidades necessárias e suficientes para fazer valer e projetar no ordenamento jurídico os princípios e valores que ao Direito e à justiça efetivamente importam.
Em realidade, para além do irremediável exercício de uma renovada prática docente, os estudantes têm o direito de desfrutar de uma visão do Direito muito mais flexível e integrada da que tem sido normal nos cursos jurídicos. Têm o direito (e os professores o dever) de chegar ao convencimento de que podem e devem influir, em um sentido ou outro, nas numerosas manifestações do sistema jurídico, tanto sobre a base de razões formais e positivas, como materiais, éticas e de política jurídica. E o fator determinante para inculcar uma ou outra prática frente ao Direito e ao sistema jurídico será a “atitude” que adotará o professor de fazer conhecer aos seus alunos essas realidades que o fenômeno jurídico implica de forma iniludível.
Se através de suas exposições e leituras recomendadas (ou de qualquer outro método que lhe pareça mais acessível) o docente se empenha em pôr de manifesto os princípios e valores jurídicos que presidem (e devem conformar) as diferentes facetas da realidade social e, ademais disto, trata de animar seus alunos a adotar uma atitude crítica e reflexiva dirigida a tornar efetivos os princípios e valores substantivos que dirigem o Direito, com toda segurança alcançará facilmente o verdadeiro objetivo da docência jurídica e fará com que o (também) exercício da liberdade e autonomia de aprender, de investigar e de entender o pluralismo de idéias não se petrifiquem em uma norma ou teoria qualquer, incapazes de ter alguma eficácia fora dos limites físicos do papel em que estão impressas.
Isso exige, por certo, que o docente assuma a responsabilidade de estar comprometido com o processo ensino-aprendizagem e sua qualidade, dotando-o de uma visão realista da condição humana e da sociedade, preocupando-se com uma abordagem multidimensional do sistema jurídico e interdisciplinar no que se refere às outras áreas de conhecimento, tudo com o objetivo de formar juristas capazes de pensar séria, global e criticamente o Direito.
Não obstante, o alcance dessa excelência sempre estará condicionado e justificado pelo objetivo principal do docente de potenciar no educando o desenvolvimento das capacidades (virtudes) pessoais e das habilidades intelectuais necessárias para realizar essa atividade e, em particular, para utilizar prudencialmente as diferentes técnicas de realização do Direito; quero dizer, de formar juristas que saibam “pensar e fazer” e não somente que saibam “fazer”, exigindo do aluno o hábito de reflexionar filosófica e juridicamente, argumentando e contra-argumentando, interrogando e exigindo razões, procurando seu próprio caminho com uma adequada postura crítico-teórica e um sensato sentido ético-prático, a fim de que possa, a partir daí, assumir a tarefa que lhe cabe como (potencial) agente de câmbios sociais. Dito de modo mais direto: é de fundamental importância ter muito claro que não basta com que uma boa formação e preparação intelectual não nos corrompam; deve fazer-nos melhores pessoas.
Por outro lado, o exercício desse compromisso docente (que envolve necessariamente uma redefinição da postura filosófico-metodológica até agora adotada) postula a prevalência de um método de ensino dialogado, participativo e centrado no aluno, em oposição ao secular método magistral, “monologado”, passivo e acrítico, centrado no professor. Ao fim e ao cabo, concebido o Direito como prática social de tipo interpretativo e argumentativo, somos nós os que produzimos a realidade do fenômeno jurídico e a edificamos enunciando o que este mesmo é. Há Direito onde sujeitos diferentes discutem e desenvolvem, submergindo-se na práxis, conceitos, fundamentos, proposições e enunciados normativos pertencentes a essa prática interpretativa que, sobre a base de sua unidade de sentido, chamamos de fenômeno jurídico.
Além disso - e seguindo essa mesma linha de raciocínio -, não parece demasiado recordar que essa prática docente deve ser plena, no sentido de que permita aos estudantes desfrutar de uma educação que lhes proporcione a base necessária para compreender “como”, “por que” e “para quê” se relacionam os novos conhecimentos com os que eles já sabem, a transmitir-lhes a segurança (cognitiva e emocional) de que são capazes de utilizar estes novos conhecimentos em contextos sócioculturais diferentes, de desenvolver o interesse e o compromisso ético pelos movimentos sociais, políticos e filosóficos que configuram a base do Direito e, talvez o mais importante, a ensinar-lhes a desaprender o acúmulo incalculável de teorias infundadas, especulações delirantes e de versões sem sentido do que “é” ou “deve ser” o Direito.
Estou convencido de que esta é uma das principais diretrizes que deve balizar e justificar a busca da excelência de ensino e de preparação profissional, necessária para a formação de um operador do Direito apto a exercer sua função (social) em um mundo em permanente câmbio e plenamente capacitado à tarefa não somente de explicar as garantias meramente formais da democracia ou a simples observância dos princípios, valores e normas do sistema positivo, senão também (principalmente) para buscar a efetiva garantia da justiça intrínseca ao Direito e a conformidade deste com a dignidade da pessoa humana.
De um profissional que incentive e priorize a implicação do Direito com uma postura republicana e democrática do Estado e, como tal, que se distancie da paroquiana concepção de sacerdote da dogmática, travestido do manto da infalibilidade jurídica e autoinvestido da pusilânime e/ou da suposta virtude que faz do operador do direito assumir “el ceniciento papel de siervo bien remunerado, pero siervo a fin de cuentas, de sólitas relaciones de poder.” (G. Radbruch)
Assim, e somente assim, será possível remediar a sórdida e viciosa prática docente segundo a qual, na grande maioria das salas de aula, os “conhecimentos saem das fichas dos professores para as notas dos alunos, sem passar pela cabeça de nenhum deles” (Mark Twain). O ato de educar (e aprender) não é apenas uma questão instrumental, senão, e acima de tudo, reflexo do imperativo moral (e constitucional) de capacitar o ser humano para o exercício virtuoso de uma atividade profissional: não somente do bacharel como expressão da capacidade para aprender por qualquer meio que seja, senão também de um ser humano com plena aptidão para sentir, reagir, empatizar, eleger, decidir, cooperar, dialogar e de ser, em última instância, capaz de autodeterminar-se “livremente” e “com autonomia” no âmbito de sua formação pessoal e profissional. Parafraseando a Goethe, somente os legados duradouros devemos e podemos aspirar deixar e dar a nossos alunos: “uno, raíces; otro, alas.”
É certo que, a despeito de todo o aqui sugerido, não deixará de ser escassa a influência de um professor no futuro a largo prazo de seus alunos; mas, o que seguramente tem o professor é uma grande influência no presente de cada um de seus alunos. E pode fazê-los tremendamente desinteressados e desmotivados para as coisas que efetivamente importam.