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Crime de tortura: tipificação no ordenamento jurídico brasileiro

Agenda 30/11/2013 às 08:09

Analisa-se sucintamente a tipificação da tortura, bem como o histórico dessa prática no direito penal.

Resumo: O presente artigo analisa sucintamente a prática da tortura, desde sua origem histórica até sua tipificação no ordenamento jurídico brasileiro. O presente estudo realizou-se precipuamente através de pesquisa bibliográficas, numa abordagem teórico-qualitativa de obras de diversos doutrinadores , encontrando base  nas disposições legais sobre a matéria. O objetivo geral da pesquisa é analisar a tipificação da tortura no Brasil através da Lei 9.455/97.

Palavras-Chave: Tortura. Tipificação. Lei da Tortura.


1 INTRODUÇÃO

Após a Constituição Federal de 1988, o ordenamento jurídico prático buscou se adequar às disposições constitucionais no que se refere à tortura. No entanto, apenas em 1997 o crime de tortura foi devidamente tipificado através da Lei 9.455.

No presente estudo será analisado o contexto histórico da tortura, dando ênfase às circunstâncias históricas em que a tortura foi institucionalizada no Brasil.

O objetivo do presente estudo é tratar sobre a tipificação do crime de tortura no ordenamento jurídico brasileiro, através de uma breve análise da Lei da Tortura.


2 CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS DA TORTURA

O termo tortura provém do latim tortum, que designa uma espécie de corda utilizada como instrumento de tortura. Posteriormente, surgiu o tortur, que significa “o que submete à tortura” (FARIA: 1988, p.551). A tortura advém de longas datas, configurando-se como uma prática extremamente cruel e desumana, sendo por isso combatida através de diversos diplomas legais, internacionais e nacionais. Entretanto, a tortura nem sempre foi repelida pela sociedade.

Na antiga Grécia, a tortura era tida como meio de prova aplicável a escravos e estrangeiros durante a instrução criminal, pois ambos não eram considerados sujeitos de direitos, mas simplesmente coisas. Aos indivíduos que não mantinham a condição de escravo nem de estrangeiro, considerados livres, a tortura era imposta apenas quando se tratava de crime contra o Estado.

Em Roma, apesar da grande influência religiosa tida pela igreja, a prática da tortura, apesar de repudiada, ocorria da mesma forma que na Grécia, ou seja, era utilizada para manter a ordem do Estado Soberano, mostrar autoridade perante a oposição, punir os opositores e descobrir a verdade dos fatos. A licitude da tortura era prevista nas primeiras legislações escritas, nos códigos Teodosiano e Justiniano. No entanto, já havia uma certa dúvida em ambos os códigos quanto a eficácia da tortura como meio para se buscar a verdade.

Durante a Idade Média a tortura era praticada tanto pelos senhores feudais quanto pela igreja, na época da inquisição. Afirma Silva (2008, p.5) que “Na Idade Média a tortura foi institucionalizada pelos senhores feudais e, principalmente pela Igreja. Não raro, os casos de tortura resultavam em morte. Foi na época da inquisição que a tortura, as punições e os maus tratos começaram a ser grafados na Idade Média”.

 Neste período, a igreja buscava punir os indivíduos que eram considerados hereges. As pessoas que fossem contrárias à religião católica, a moral e aos costumes da época eram torturadas até que se obtivesse a confissão desejada pela Santa Inquisição. Dentre os torturados estavam os bígamos e os considerados feiticeiros ou bruxas. Quanto aos procedimentos utilizados na época da inquisição para a prática da tortura, diz Lima (1996, p.63) que:

As mudanças ocorridas na cultura jurídica ocidental do século XII marcaram a jurisprudência criminal até o fim do século XVIII. A difusão do processo inquisitório – de origem romana – em substituição o acusatório – de origem germânica – foi acompanhada pela elevação da confissão à rainha das provas e pelo consequente ressurgimento do emprego da tortura. A forma de processo conhecida como inquisitio caracteriza-se sumariamente pelo fato da ação judiciária ser iniciada por um agente oficial, pelo recolhimento de provas e depoimento de testemunhas, e pelo proferimento da sentença por um juiz encarregado da investigação. Estes procedimentos caracterizavam também a justiça praticada pelo santo Ofício da Inquisição, cujos regimentos normatizavam o emprego da tortura como forma legítima de obtenção da confissão.

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Esses absurdos cometidos pela inquisição ocasionaram revoltas dentro da própria igreja, levando à Reforma Protestante. Além disso, com o fortalecimento da classe burguesa, começaram a surgir às primeiras manifestações iluministas contra a tortura e as injustiças cometidas, cujas concepções foram influenciadas pela Reforma Protestante.

Com o surgimento do iluminismo, grandes filósofos, como Montesquieu, Voltaire, Jean Jaques Rousseau e Beccaria, posicionaram-se contra as torturas e arbitrariedades cometidas pelo Estado, passando a pregar a liberdade, a igualdade e a fraternidade.

A primeira proibição da tortura ocorreu em um edito de Frederico II em 1740, na Prússia, ordenando a expurgação da tortura no procedimento penal, sendo aplicado somente aos crimes mais graves. Influenciado pelas ideias do iluminista Voltaire, Frederico II aboliu definitivamente a tortura em seu país em 1756. Tal iniciativa influenciou a abolição e a tipificação da tortura em diversos países europeus.

Em sua obra “Dos Delitos e das Penas”, o Marquês de Becaria questionava o sistema penal da época, defendendo a abolição da tortura, a presunção de inocência do acusado, a proporcionalidade da pena e a sua humanização. Devido à importância da sua obra, Cesare Bonesana é considerado o percussor do movimento de reforma do sistema punitivo.

Posteriormente, no final do século XVIII e início do século XIX, a tortura passou a ser combatida fortemente, passando a ser considerada um procedimento ilegal. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, foi o primeiro instrumento legal que continha expressamente à proibição da tortura.

Após a Segunda Guerra Mundial, os direitos humanos passaram a ter evidência com a atuação da Organização das Nações Unidas – ONU, que busca manter a paz entre os povos, além de desenvolver programas de combate à violência e a qualquer forma de tortura praticada mundialmente.

No Brasil, a tortura também foi usada desde a chegada dos portugueses em 1500, como meio de obter provas através da confissão. Com a Constituição de 1824, a tortura foi proibida em face do povo brasileiro, entretanto continuavam os castigos e as torturas de negros e indígenas. A prática da tortura em nosso país subsistiu por muito tempo, perdurando no Estado Novo (1937-1945) e no regime militar (1964-1985). Mesmo em 1889, com a Proclamação da República, a criminalização da tortura ainda era ignorada.

Apenas com a Constituição Federal de 1988 a prática da tortura foi combatida em sua totalidade. A Constituição Cidadã redemocratizou nosso país, transformando-o num Estado Democrático de Direito, onde se garante direitos e garantias a todos que aqui estiverem.


3 TIPIFICAÇÃO DO CRIME DE TORTURA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Desde a promulgação da Constituição Brasileira de 1988 a tortura passou a ser absolutamente proibida. Contudo, o legislador constitucional não definiu a prática da tortura. O seu art. 5º, III, assegura que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. Nossa Lei Maior também prevê no seu art. 5º, XLIX, que “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.” Além disso, ela também dispõe, em seu art. 5º, XLIII, que a tortura compõe o rol dos crimes mais graves no Brasil, sendo por isso inafiançável e insuscetível de graça ou anistia, por ele respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-lo, omitirem-se.

O Brasil aderiu, em 15 de fevereiro de 1991, à Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes firmada pela ONU. Nosso país também é signatário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, do Pacto Internacional para a Defesa de Direitos Civis e Políticos, da Convenção Interamericana Para Prevenir e Punir a Tortura e da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), o que o condiciona internacionalmente a prevenir e punir a prática da tortura.

Todavia, mesmo o Brasil sendo adepto dessas convenções, não havia a tipificação do crime de tortura em nosso ordenamento jurídico, pois apesar do Código Penal prevê a tortura em seu art. 61, III, “d”, essa era tida apenas como uma circunstância agravante. O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/90, por sua vez, previa o crime de tortura apenas em face de crianças e adolescentes em seu art. 233, não trazendo em seu bojo nenhuma definição sobre essa prática. Com a Lei nº 8.072/90, o crime de tortura foi equiparado a crime hediondo em seu art. 2º, dispondo que tanto os crimes hediondos, como a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo, são insuscetíveis de anistia, graça, indulto e fiança.

Sob influência das convenções internacionais mencionadas e diante da gravidade do crime de tortura, em 7 de abril de 1997 foi introduzido no Brasil uma lei específica sobre a matéria, a Lei nº 9.455, que trouxe em seu bojo algumas variações da tortura, considerando-a um crime comum praticado  por particular ou agente público, sendo que a este é aplicada pena mais gravosa. Essa Lei define o crime de tortura da seguinte forma:

Art. 1º. Constitui crime de tortura:

I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico e mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena - reclusão, de dois a oito anos.

Pode-se verificar que essa lei capitula todas as modalidades inflacionais do crime de tortura, com suas respectivas penas. O art. 1º da Lei da Tortura visa combater as práticas cruéis vivenciadas durante o regime militar iniciado em 1964 no Brasil. Para isso, dispõe que toda e qualquer informação, declaração ou confissão, obtida por meio de tortura afronta a dignidade da pessoa humana, assegurada pela Constituição Federal em seu art. 1º, III, sendo, portanto, tal prática injustificável e ilegal. A Lei da Tortura também prevê formas qualificadas, aumentos de pena, liberdade provisória, regime de cumprimento de pena e territorialidade, bem como a previsão do princípio da aplicação da lei penal brasileira à vítima brasileira e o princípio da jurisdição universal mitigada, quando da entrada do agente em território nacional. Ambos os princípios estão previstos no art. 2º da referida lei.

 Quanto à definição de tortura previsto no art. 1º, I, Sznick (1998, p.154) afirma que, “Seja o sofrimento físico, seja o sofrimento moral, a verdade é que ambos são causadores de tormentos e podem ser provocados pela tortura, oriundos quer da violência física, quer da ameaça, prevista no art. 1º, I da lei de Tortura”. Dessa forma, o crime de tortura pode ser entendido como sendo uma violência desmedida com a finalidade de reduzir, anular e quebrar a resistência do indivíduo, com o objetivo de extrair informações ou confissão forjada, através da força física, ocasionando sofrimento e dor ao indivíduo, mediante ameaças e mentiras, com a utilização de diversos meios para viciar a real vontade e liberdade do torturado. Trata-se de um crime doloso, pois visa um fim determinado, como também de um crime formal, já que independe de resultado, bastando à conduta para que seja consumado o crime.

Por atentar contra a liberdade e a dignidade do indivíduo, a tortura é um dos crimes mais repudiados pela sociedade. Por isso, como bem afirma Franco (1997, p.61), “A tortura deve ser castigada em si mesma e por si mesma, em razão de seus detestáveis métodos e por seus fins contrários à liberdade e dignidade”.

Vale ressaltar que a prática da tortura ainda está presente em nosso cotidiano, sobretudo em relação às condutas dos policiais civis e militares, que se utilizam do cargo para constranger, com emprego de violência ou grave ameaça, os investigados e acusados de terem cometido algum delito, causando a estes, sofrimento físico ou mental. De acordo com Madeira (2007, p. 209), “após 20 anos de redemocratização e égide de uma Constituição Cidadã, que preceitua a garantia de direitos fundamentais de toda espécie, deparamo-nos continuamente com violações de direitos humanos”.

Sendo assim, torna-se imprescindível a proteção das parcelas mais baixas da população brasileira, pois são elas que sofrem constantemente com a prática da tortura, prática esta que perdura por muito tempo, tornando-se um grave problema social.

 


4 CONCLUSÃO

Verificou-se que a tortura foi bastante praticada desde a antiguidade até a sua proibição legal, não deixando, no entanto, de estar presente na atualidade. Antes da Constituição Federal de 1988 a prática da tortura não era combatida em sua totalidade, sendo uma matéria esparsa.

Ficou constatado que apesar do Brasil ser signatário de diversos tratados e convenções internacionais sobre a tortura, apenas em 1997 instituiu lei específica para punir a tortura, bem como intensificou o combate a essa prática tão repudiada pela sociedade, por ferir a dignidade da pessoa humana.

Ante o exposto, conclui-se pela necessidade do efetivo combate e repressão a toda e qualquer prática da tortura, especialmente em relação às polícias civis e militares, ambas alvos de inúmeras denúncias de tortura, numa aparente mutação de funções, pois deveriam elas proteger o povo brasileiro, sobretudo os mais carentes, e não espalhar o suplício, infligido à sociedade.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm >. Acesso em: 20. out. 2012.

________. Decreto-lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 21. out. 2012.

________. Lei nº 9.455, de 07 de abril de 1997. Define os crimes de tortura, e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9455.htm>. Acesso em: 22. out. 2012.

FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino português. 6 ed. Rio de Janeiro: FAE, 1988.

FRANCO, Alberto Silva. Tortura, breves anotações sobre a Lei 9.455/97. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 19, jul/set, 1997, p. 55-72.

LIMA, Lana Lege da Gama. Violência e prática jurídiciárias: A tortura nas práticas inquisitoriais. VII Encontro Regional da UNPUH, Rio de Janeiro, 1996.

MADEIRA, Lígia Mori. A tortura na história e a (ir)racionalidade do poder de punir. Panóptica, ano 1, n. 8, maio-junho, 2007.

SILVA, Allan Coelho da. A tortra e sua influência na sociedade atual. Signum, n. 7. Vitória: Centro de Ensino Superior de Vitória, 2008.

SZNICK, Valmir. Tortura: histórico, evolução e crime. São Paulo: LEUD, 1998.

Sobre a autora
Jaqueline Gerônimo de Amorim Andrade

Advogada. Pós-graduada em Prática Judicante pelo Curso de Preparação à Magistratura – ESMA/PB.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Jaqueline Gerônimo Amorim. Crime de tortura: tipificação no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3804, 30 nov. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26019. Acesso em: 5 nov. 2024.

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