3 – A RELAÇÃO COM OS PRINCÍPIOS DA RETROATIVIDADE E DA IRRETROATIDADE DAS NORMAS.
A validade da norma jurídica apresenta também a questão atinente a relação dela com o tempo, pois necessário é saber se ela apenas irá alcançar o comportamentos futuros, ou poderá refletir no passado, atingindo atos anteriores a promulgação. Quando o ordenamento jurídico não autoriza sejam os atos anteriores a promulgação atingidos, diz-se não haver a retroação e, portanto, há a irretroatividade da norma. Mas quando é admissível o alcance dos comportamentos anteriores a norma, ter-se-á a retroatividade da mesma.
A Constituição Federal dispõe em seu art. 5º, inc. XXXVI, que é garantido, respeitado, o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada, o que também encontra previsão no art. 6º, §§ 1º, 2º e 3º, da Lei de Introdução ao Código Civil. O ato jurídico perfeito é aquele que se completou, se realizou em conformidade com a norma vigente ao tempo em que se executou; o direito adquirido é o que se materializou, se agregou de maneira definitiva ao patrimônio de à personalidade de seu titular; e a coisa julgada é a decisão judiciária da qual não mais cabe recurso, ou seja, não mais pode ser modificada por qualquer Tribunal que integra o Poder Judiciário e a exceção para permitir o desfazimento desse efeito, só tem previsão legal quando é proposta a ação rescisória, dentro do prazo de dois anos.
Portanto, caso a norma jurídica reconheça a possibilidade em retroagir, estará acometida do vício de inconstitucionalidade e caberá ao Poder Judiciário declará-la, como também não lhe dar aplicação, pois assim estará aquele poder a executar sua função de conferir a segurança da ordem jurídica e por assim ser não se permite possa, em nosso ordenamento jurídico, a norma retroagir.[19]
Certo é dizer que o reconhecimento da inconstitucionalidade não pode ser regra, porque a presunção é sempre a favor da constitucionalidade da norma jurídica, porém no tocante a uma norma que pretenda autorizar a sua retroação, não poderá prevalecer aquela presunção, uma vez que ofende, descumpre o princípio da irretroatividade da norma. A respeito doutrina Lúcio Bittencourt:"Em conseqüência, toda presunção é pela constitucionalidade da lei e qualquer dúvida razoável deve-se resolver em seu favor e não contra ela - every reasonable doubt must be resolved in favour of the statute, not against it. E os Tribunais não julgarão inválido o ato, a menos que a violação das normas constitucionais seja, em seu julgamento, clara, completa e inequívoca - clear, complete and unmistable.
Essa precaução já fora reclamada pelo próprio Marshall, no julgamento do caso Fletcher x Peck, onde o grande Juiz mostrou que a questão de se verificar se uma lei é incompatível com a Constituição é, sempre, uma questão muito delicada - is at all times a question of much delicacy - que deve raramente, quiçá nunca, ser decidida pela afirmativa num caso duvidoso. Os Tribunais, quando compelidos a se manifestar sobre a matéria, não podem fundar-se em vagas conjecturas para declarar que o Legislativo excedeu os seus poderes e que o ato expedido deve ser considerado inválido. O conflito entre a lei ordinária e a Constituição deve ser de tal ordem que o Juiz sinta a convicção clara e forte da incompatibilidade entre uma e outra - clear and strong conviction of their incompatibility with each other.
Também o Justice Washington, no caso Ogden x Saunders, seguindo a mesma orientação, sustentou que se há de presumir sempre a validade e a eficácia da lei até que a violação da Carta Constitucional seja provada além de toda a dúvida razoável - is proved beyond any reasonable doubt.
Em conseqüência dessa presunção, tem-se entendido, por outro lado, que os Tribunais, antes de fulminar a lei com a declaração de inconstitucionalidade, devem procurar interpretá-la de tal modo que se torne possível harmonizá-la com a Constituição. E somente no caso de se tornar isso de todo impraticável é que se poderá reconhecer a ineficácia do diploma impugnado".[20]
Destarte, como o país adotou a doutrina da territorialidade moderada, a norma jurídica deve ser aplicada no território do Estado, descabida será a norma que prescrever a retroação de seus efeitos, porque será declarada a inconstitucionalidade da mesma e alcançará todo o território nacional essa declaração.
É necessário destacar, relembrar que há diferença entre legalidade e legitimidade ao se ter em mente que o Estado deve ter por princípio a democracia e ela se dará por meio do direito e, por conseguinte, as normas deverão ser elaboradas por representantes da população do país, eleitos livremente, para essa representação. As normas assim criadas, terão legitimidade. De outro lado, poderá haver norma dita legal, por ter sido criada por órgão para tanto destinado, contudo não representa a vontade da nação e sim de um grupo de homens, como se dá muitas vezes nas revoluções havidas em países sem estabilidade e tradição política, democrática e em respeito a lei. Nessa hipótese será criado novo ordenamento jurídico que trará legalidade, porém não haverá legitimidade nesse ordenamento.
A irretroatividade da norma é o princípio que visa a segurança jurídica, criando assim a confiança no sistema de direito, porque ainda que aquela seja considerada benéfica, não poderá provocar modificação na condição de validade de um ato realizado no passado e não poderá mudar as conseqüências de um direito realizado.
Nesse passo possível é alcançar o direito adquirido, que pode ser considerado como sendo aquele que integra o patrimônio da pessoa, do homem, e não mais pode ser dele tirado. Carlos Maximiliano, esclarece esse direito, citando Gabba: “Denomina-se adquirido o direito que: a) é conseqüência de um fato idôneo a produzi-lo em virtude da lei do tempo em que o mesmo fato se completou, embora a ocasião de fazê-lo valer não se haja apresentado antes da atuação de uma nova norma em torno do mesmo, e que b), segundo a lei sob cujo império ocorreu o fato do que se originou, entrou imediatamente a fazer parte do patrimônio de quem o grangeara”.
Prosseguindo diz: “Chama-se adquirido o direito que se constituiu regular e definitivamente e a cujo respeito se completaram os requisitos legais e de fato para se integrar no patrimônio do respectivo titular, quer tenha sido feito valer, quer não, antes de advir norma posterior em contrário”.[21]
Ressalta clara a importância em se conhecer a validade da norma jurídica, porque é por meio dela que se permite encontrar estar vigente, seu fundamento e a necessária eficácia, para atingir a obrigatoriedade em relação a todos que ela afeta. Não parece adequado, entretanto se cogitar na condição da invalidade da norma, ou em graus de invalidade normativa, pois ou a norma é válida ou inválida, ou seja, essa norma pertence ao ordenamento jurídico e atendeu aos critérios dessa adequação para sua criação. Assim, ainda que uma lei seja considerada inconstitucional, estando a mesma em vigor no ordenamento jurídico, ela produzirá efeitos e todos devem cumpri-la, até que seja constituída juridicamente sua inconstitucionalidade. Portanto, não se pode cogitar na possibilidade da existência de graus de invalidade normativa, não há norma mais inválida ou menos inválida em relação a outra norma.
Todavia a norma jurídica poderá ser inválida e vigente e inválida e eficaz, uma vez que estando a norma inválida no ordenamento jurídico, é de ser compreendido ter sido elaborada em conformidade com uma norma de hierarquia superior encontrando a pertinência para sua fundamentação. Assim sendo, mesmo uma norma reputada inconstitucional, enquanto estiver ela inclusa no ordenamento jurídico, será considerada como válida e irá produzir efeitos. Por isso, nessa situação, é possível que a norma jurídica seja inválida e vigente ou inválida e eficaz.
Observe-se também que não há diferentes espécies de validade normativa. A validade material é empregada como a regra pela qual possui uma hierarquia superior a outras normas e estas deverão observar aquela regra para poder alcançar a validade formal. A distinção feita é necessária, porque sem a regra da validade material, o órgão competente para a criação da norma não teria parâmetro a seguir, a observar, de maneira adequada para essa elaboração, podendo provocar desarranjo no ordenamento jurídico.
E é preciso perceber também que há diferenciação entre a eficácia jurídica da eficácia técnica, pois reflete no ato produzido pela norma que está a integrar o sistema jurídico. Elucida essa questão Paulo de Barros Carvalho, ao dizer que “a ‘eficácia jurídica’, expressa na potencialidade inerente aos fatos jurisdicizados de provocarem o nascimento de relações deonticamente modalizadas, dista de ser a ‘eficácia social’, consubstanciada na produção concreta de efeitos entre os indivíduos da sociedade. A eficácia social ou efetividade diz com a produção das conseqüências desejadas pelo elaborador das normas, verificando-se toda vez que a conduta prefixada for cumprida pelo destinatário. Caso se dê o descumprimento da conduta, de maneira reiterada, frustrar-se-ão as expectativas normativas e a eficácia social ficará comprometida.”.[22]
De tudo, o que se verifica é ser a validade pressuposto necessário para que a norma jurídica seja eficaz e para tanto precisa estar vigente e, portanto, uma norma não é vigente se não for válida e não é eficaz se não for vigente.
4- A NORMA E O RESPEITO À CONSTITUIÇÃO.
A constituição deve ser considerada como sendo a lei fundamental do sistema jurídico. E para que uma norma possa ser válida é preciso encontrar o valor da mesma nessa lei asseverada como fundamental. E deverá estar em conformação com o ordenamento jurídico, na medida em que a lei fundamental dispuser, ou seja, a constituição é a norma que irá proceder a condução, a direção para as demais normas de hierarquia inferior, pois estas assim obterão a validade necessária, encontrarão seu fundamento na lei fundamental, passando a integrar o ordenamento jurídico.
No dizer de José Afonso da Silva: “Significa que a constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e a organização de seus órgãos; é nela que se acham as normas fundamentais de Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às demais normas jurídicas”.[23]
Por assim ser, no sistema jurídico brasileiro em vigor, toda interpretação de leis deve partir da Constituição da República, ou, de outro modo, inexistindo lei superior a Constituição, as leis infraconstitucionais deverão estar em conformidade com o que dispõe aquela lei maior. Para essa conformidade deve ser observado o âmbito formal da formação das leis e também seu aspecto material. Para aquele o constituinte instituiu o processo legislativo, o qual está previsto na Seção VIII, art. 59 e seguintes da Constituição Federal de 1.988, regulando assim os limites, as fronteiras e toda a operação para a invenção das leis. O último, por sua vez, não poderá contestar, contradizer a contextura, a composição, o encadeamento das idéias que inspiram a norma superior. Em sendo promulgada lei que não tenha cumprido para sua formação o âmbito formal e/ou material, advirá o descumprimento da norma superior, surgindo lei inconstitucional.
Como é possível o surgimento de leis inconstitucionais, o próprio legislador constituinte instituiu processo de defesa da própria Constituição para ser alcançado o controle de constitucionalidade das leis, atos normativos, e dentre os meios de defesa é de ser preocupado o de incidência jurisdicional, para a hipótese em ter a lei ou o ato normativo entrado em vigor[24]. No momento, este breve ensaio, irá se ater apenas ao exame da ação declaratória de inconstitucionalidade, pelo regime do controle concentrado, previsto no art. 102, inc. I, letra “a”, da Constituição Federal, cujo procedimento foi regulado pela Lei n. 9.868, de 10.11.1999. E não se cuidará da denominada inconstitucionalidade por omissão, ora prevista na Carta Constitucional, a qual pode ser declarada em ação para o fim de se obter provimento do resultado do descumprimento do dever de normatizar.
Para persistir a hegemonia da Constituição perante leis infraconstitucionais, atos normativos e convertê-los, declará-los ineficazes por desrespeito àquela norma hierárquica superior, ao menos um dos legitimados pela própria Constituição (art. 103) deverá intentar a denominada ação declaratória de inconstitucionalidade. A respeito doutrina Gilmar Ferreira Mendes: “É essa relação de índole normativa que qualifica a inconstitucionalidade, pois somente assim, logra-se afirmar a obrigatoriedade do texto constitucional e a ineficácia de todo e qualquer ato normativo”.[25]
Nos termos do que dispõe o art. 102, “caput”, da Constituição Federal de 1.988, é da competência do Supremo Tribunal Federal a declaração de inconstitucionalidade, sendo o guardião da Constituição. E em razão da Emenda Constitucional n. 45, de 30.12.2004, deu-se nova redação ao § 2º, do art.102, onde foi estabelecido que as decisões de mérito definitivas preferidas na ação direta de inconstitucionalidade e na ação declaratória de constitucionalidade, produzirão efeito contra todos e efeito vinculante, abrangendo os outros órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal[26].
Com efeito, decisão definitiva de mérito é aquela que produziu coisa julgada material, ou seja, tornou-se imutável, não mais podendo ser discutida e não poderá ser atacada por recurso e é encontrada na parte dispositiva do acórdão. Assim, tendo o Supremo Tribunal Federal declarado a inconstitucionalidade de uma lei, terá, por conseguinte, com decisão desse jaez afastado a presunção da validade da(s) lei(s) e do(s) atos normativo(s)[27], e com essa declaração provocará os efeitos necessários para que a lei ou ato normativo seja desfeito, visto não ter mais a norma validade e eficácia por ter sido desrespeitada a Constituição.
Desfeita a lei ou o ato normativo em virtude da decisão transitada em julgada proferida na ação declaratória de inconstitucionalidade, provoca a decisão preocupação tocante aos limites alcançados pela mesma, ou seja, os efeitos provocados. Essa preocupação – a qual acarreta longos estudos de doutrina e discussões na jurisprudência -, foi aclarada com a Emenda Constitucional n. 45/2004 (art. 102,§ 2º, CF), na medida em que dispôs ser a decisão de inconstitucionalidade transitada em julgado oponível contra todos – erga omnes -, como também possuiu efeito vinculante, ou seja, todas as autoridades públicas e os cidadãos estão mesma obrigados.
Atinge a decisão relações jurídicas fundadas na lei que deixa de ser aplicada e foi retirada do ordenamento jurídico, sendo possível com essa conseqüência a retroatividade daquela e será afetada a causa subjacente daquelas relações. E como a decisão que declara a inconstitucionalidade de uma lei ou de um ato normativo não pode ser derivada da pressão de grupos com interesse de múltiplas espécies, necessário foi à atuação do órgão responsável, conferir-lhe poder para, como possuidor de um filtro intelectual, com conhecimento e saber, pudesse selecionar o que de fato seja a favor ou contra o verdadeiro interesse dos indivíduos alcançados pela decisão, bem como da sociedade, e, para tanto, a Lei n. 9.868/1999, em seu art. 27, autorizou o Supremo Tribunal Federal a modular os limites da retroatividade.
Cabe apenas ao Supremo Tribunal Federal encontrar os limites da retroatividade da decisão de inconstitucionalidade que proclamou, a qual pode ser mínima, média ou máxima e até mesmo conferir efeito ex nunc, pois a parte final do que dispõe o art. 27 da mencionada lei prevê que poderá aquele decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado. Todavia essa autorização legal para a modulação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade não é capaz de atingir a coisa julgada, sob pena de desrespeito, descumprimento do princípio instituído no art. 5º, inc. XXXVI, da Constituição Federal e também ofensa ao princípio da segurança jurídica. Nessa hipótese a coisa julgada só poderá ser afastada, desconstituída, mediante a propositura de ação rescisória, visto que a hipótese se subsume ao que dispõe o art. 485, inc. V, do Código de Processo Civil, na medida em que teria a lei ou o artigo inconstitucional desrespeitado a Constituição Federal.