4. LIMITAÇÕES FORMAIS E CIRCUNSTANCIAIS ÀS EMENDAS CONSTITUCIONAIS
4.1 Limitações Formais ou Procedimentais
As limitações formais ao Poder Reformador, que também recebem a denominação de procedimentais, dizem respeito às exigências necessárias para que a tramitação da emenda constitucional não seja eivada de irregularidade. Em outras palavras, são limitações que impõem um determinado procedimento, que necessariamente deve ser observado pelo legislador constituinte derivado.
As limitações formais estão plasmadas no art. 60, I, II e III, e §§2º, 3º e 5º, da Constituição Federal, que descrevem o procedimento das emendas constitucionais. Para se entender quais são os limites ao Poder Constituinte de Segundo Grau, faz-se necessária uma breve incursão acerca do procedimento das emendas constitucionais.
Em primeiro lugar aparecem as pessoas ou órgãos legitimados a apresentar proposta de emenda constitucional. É fundamental, para o bom andamento dos trabalhos legislativos, que não se estenda muito este rol, para que não ocorra um exagero no encaminhamento de sugestões de alteração do Texto Maior.
Por conseguinte, possuem legitimação para apresentar proposta de emenda à Constituição: a) um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal (art. 60, I); b) o Presidente da República (art. 60, II); e c) mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros (art. 60, III).
Tome-se como exemplo de aplicação desta restrição, a possibilidade de um projeto de emenda à Constituição encaminhado ao Congresso Nacional por um partido político. Nesta hipótese, a Casa Legislativa à qual for encaminhado o referido projeto deverá rechaçá-lo de plano, por padecer o mesmo de vício, atinente à limitação formal ora em exame.
Apresentada a proposta de emenda, inicia-se o processo de discussão e votação. Nesta etapa, observa-se o processo legislativo estabelecido para a criação de leis ordinárias, com algumas exigências que se revestem de um cunho mais rígido. Assim, antes de aprovadas as propostas de emenda devem passar pelas seguintes etapas: a) Fase das comissões, momento em que será analisada pelas diversas comissões existentes em ambas as Casas, criadas pelos respectivos Regimentos Internos. A mais importante delas é a de Constituição e Justiça, que se debruçará sobre o mérito do projeto, mormente no que diz respeito à sua constitucionalidade; b) Fase do plenário, dividida em: 1) Discussão, que é o debate propriamente dito, em plenário; e 2) Votação, que é o instante em que ocorre a decisão parlamentar acerca da proposta de emenda. Na votação, reside uma importante exigência específica em relação ao processo legislativo das emendas constitucionais, que é a necessidade de 3/5 (três quintos) dos votos dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, ocorrendo sempre em dois turnos distintos, em cada Casa Legislativa; c) Fase Revisional, na qual um projeto de emenda aprovado em uma Casa deverá ser revisto pela outra, também em dois turnos; e d) Promulgação e publicação pelas Mesas das Casas do Congresso Nacional. Diferentemente das demais produções legiferantes ordinárias, não há fase executiva na aprovação das emendas constitucionais, haja vista não existir previsão de sanção ou veto. Assim, aprovada em caráter definitivo, a proposta de emenda deverá ser promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem, consoante preconiza o art. 60, §3º, da Carta Magna. Apesar de não haver previsão normativa específica que imponha a publicação das emendas aprovadas, faz-se mister a sua divulgação, para que estas venham a integrar o ordenamento constitucional.
No que pertine à aplicação das limitações procedimentais acima explanadas, diversas hipóteses podem ser argüidas. À título de exemplificação, tome-se por base uma proposta de emenda que seja aprovada com a ocorrência de dois turnos de votação na Câmara dos Deputados, mas de apenas um no Senado Federal. Tal proposta padeceria de clara inconstitucionalidade formal, conforme acima delineado.
4.2 Limitações Circunstanciais
Limites circunstanciais são aqueles cuja inserção no Texto Maior ocorre com o fito de impedir que o Poder Constituinte Reformador promova qualquer modificação na Constituição, quando da ocorrência de determinadas situações especiais, anormais, na ordem jurídico-social do país. Justificam-se, tais restrições, pois o status social anormal poderia afetar a independência e a liberdade dos órgãos incumbidos de empreender as reformas constitucionais.
Os impedimentos circunstanciais estão presentes em nossa Constituição desde a Carta de 1934. À época tal limitação cingia-se à impossibilidade de se emendar o Texto Maior na vigência de estado de sítio, contexto que foi mantido pelas Constituições que a sucederam.
Na Carta de 1988, entretanto, constituem limitações circunstanciais, elencadas no art. 60, §1º, da Lei Fundamental, a vigência de intervenção federal, estado de defesa, ou ainda estado de sítio. Entendeu, o legislador constituinte inicial, que tais situações representam exceções à ordem normalmente estabelecida, que poderiam trazer prejuízos às instituições democráticas, tendo em vista a possibilidade de uso da força em detrimento das práticas democráticas.
Nesta linha de tirocínio, Michel Temer analisa as causas que levaram o Poder Constituinte Originário a incluir as limitações circunstanciais no Texto Magno:
O constituinte esteve atento ao fato de que a reforma constitucional é matéria de relevância inquestionável e, por isso, não pode ocorrer em instante de conturbação nacional. O constituinte exige serenidade, equilíbrio, a fim de que a produção constitucional derive do bom senso e da apurada meditação.32
A intervenção Federal se caracteriza como uma regra garantidora do equilíbrio entre os entes autônomos que compõem o Estado Federal. É um ato político, que, segundo Paulo Bonavides: “Consiste na incursão da entidade interventora nos negócios da entidade que a suporta.”33
São quatro os pressupostos da intervenção federal nos Estados, a saber: a) a defesa do Estado; b) a defesa do princípio federativo; c) a defesa das finanças estaduais; e d) a defesa da ordem constitucional. As hipóteses nas quais cabe intervenção federal encontram-se elencadas nos arts. 34, bem como as características do ato interventivo estão plasmadas no art. 36,ambos da Constituição Federal de 1988.
É defeso, pois, ao Poder constituinte Derivado, promover emendas à Constituição quando estiver em vigência intervenção federal em Estado, ou no Distrito Federal, por consagração do limite circunstancial acima descrito.
O estado de defesa, assim como o estado de sítio, é uma forma de exceção pela qual pode passar o Brasil. Também nestas duas situações, é proibida a emenda constitucional.
Por estado de defesa, entende-se aquela situação em que são tomadas medidas drásticas, com o fito de rechaçar quaisquer ameaças à ordem pública e/ou à paz social, sejam elas de cunho político ou conseqüências de forças da natureza. A previsão constitucional do estado de defesa é feita pelo art. 136, que delineia suas conseqüências.
Para José Afonso da Silva:
O estado de defesa consiste na instauração de uma legalidade extraordinária, por certo tempo, em locais restritos e determinados, mediante decreto do Presidente da República, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, para preservar a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções da natureza.34
As principais características impostas pelo estado de defesa são as restrições aos direitos de reunião, sigilo de correspondência e comunicação, bem como a possibilidade de prisão por crime contra o Estado. A duração do estado de defesa pode chegar ao máximo de trinta dias, prorrogáveis por um único e igual período, desde que persistam as causas que justificaram a sua decretação. O decreto instituidor de tal estado de exceção deve ser enviado pelo Presidente da República, dentro de vinte e quatro horas, ao Congresso Nacional, que poderá, dentro de dez dias, aprová-lo, pela maioria absoluta dos seus membros, ou rejeitá-lo, oportunidade em que cessará o estado de defesa.
Por fim, no que pertine às limitações circunstanciais, quando o Brasil se encontrar em estado de sítio, também não poderá ser emendada a Constituição, ainda por respeito ao regramento contido em seu art. 60, §1º.
O estado de sítio é aquele em que se faz necessária a instauração da legalidade de exceção para fazer frente à anormalidade presenciada. O art. 137, da Lei Suprema, prevê que em casos de comoção de grave repercussão nacional, ou ainda quando for comprovada a ineficácia do estado de defesa, bem como na hipótese de declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira, deverá ser decretado o estado de sítio.
Entretanto, para que seja decretado o estado de sítio, é necessária a verificação de alguns requisitos, quais sejam: a) audiência do conselho da República e do Conselho de Defesa Nacional; b) autorização do Congresso Nacional, através do voto da maioria de seus membros; e c) decreto do Presidente da República. O prazo de duração do estado de sítio também é de trinta dias, todavia, diferentemente do estado de defesa, ele pode ser prorrogado por quantas vezes forem necessárias.
Não há dúvidas de que houve bem o legislador constituinte originário, pois na vigência de qualquer uma das situações anteriormente previstas – intervenção federal, estado de defesa ou estado de sítio, a instauração da anormalidade impediria que as emendas constitucionais fossem aprovadas de maneira serena, possibilitando a preponderância de interesses alheios ao bem comum.
Estas são, portanto, as limitações ao Poder Constituinte Derivado, cujo conteúdo garante o equilíbrio entre estabilidade e dinâmica constitucional, fundamental para a manutenção da força normativa da Carta Magna.
5. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS EMENDAS NA ÓTICA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
5.1 Controle de Constitucionalidade em Face das Limitações Explícitas ao Poder Constituinte Derivado
O Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula em nosso ordenamento jurídico, possui a atribuição de guardião da Constituição, ou seja, é a instância competente para harmonizar as emanações legiferantes com o Texto Magno, através da verificação de constitucionalidade destas, mediante o julgamento de ações ajuizadas com este mister.
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 102, regulamenta a competência do STF, mormente no que pertine ao processamento e julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal, instrumento processual adequado para a argüição de incompatibilidade de comando normativo inserido em emenda constitucional com os demais preceitos ínsitos na Carta Magna.
Por conseguinte, como as emendas à Constituição são balizadas pelas limitações outrora explanadas, resta indubitável que acaso seu teor afronte qualquer uma das restrições, sejam estas de cunho material, formal, ou circunstancial, esta padecerá de vício de inconstitucionalidade, que deverá ser decretada pelo STF, mediante Ação Direta de Inconstitucionalidade, após provocação de qualquer uma das pessoas legitimadas para tal, conforme a dicção do art. 103, I a IX, da Lei Maior.
As limitações explícitas, pois, não podem ser afrontadas pelas emendas, sob pena de invalidação do texto ou conteúdo que não for condizente com o teor da Norma Cume.
Trata-se de um meio eficaz de corrigir os possíveis equívocos empreendidos pelo Poder Constituinte Derivado, quando da aprovação de emendas à Constituição.
No magistério de Uadi Lammêgo Bulos:
Caso uma emenda constitucional seja inconstitucional, existe o controle de constitucionalidade difuso ou concentrado para corrigir a anomalia, evitando a subsistência de pautas normativas desuniformes. Trata-se de aplicar uma espécie de autocorreção constitucional, evitando-se rupturas constitucionais que se traduzem pela quebra de juridicidade de certos preceitos da constituição, em certas hipóteses excepcionais, e perdurando o mesmo Texto Magno no restante dos casos.35
Na mesma linha de tirocínio, apesar de reconhecer a igualdade hierárquica entre as normas provenientes de emenda constitucional e as demais, outrora inseridas no corpo constitucional, Zeno Veloso assevera:
Mas a emenda constitucional pode ter sido feita sem obediência às regras formais e materiais da Constituição, abusando-se do poder derivado, condicionado e limitado de reforma, o que chega ao extremo quando se suprime, modifica ou altera as cláusulas pétreas, o cerne inalterável da Carta Magna (art. 60, §4º). Emenda deste tipo não se compatibiliza com o Texto Fundamental; ao contrário, foge do modelo, quebra o sistema, agride o ordenamento , compromete a harmonia, significando ato de subversão e de traição perpetrado pelo constituinte de segundo grau. (...) A emenda constitucional está sujeita, sim, ao controle de constitucionalidade.36
Destarte, a doutrina e a jurisprudência do STF são uníssonas ao entenderem ser plausível o controle de constitucionalidade das emendas aprovadas pelo Congresso Nacional, para que estas respeitem os limites explícitos impostos à atuação do Poder Reformador.
O instrumento que deve ser utilizado para que seja expurgada do ordenamento jurídico uma norma que, constando em uma emenda constitucional, vá de encontro a uma limitação explícita imposta ao legislador constituinte secundário, é exatamente a Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADIn, conforme já salientado.
No que pertine à Revisão Constitucional, aplicam-se os mesmos parâmetros afeitos à Reforma Constitucional, conforme entendimento do STF, plasmado no voto abaixo transcrito, da lavra do Ministro Celso de Mello:
Atos de revisão constitucional – tanto quanto as emendas à Constituição – podem, assim, também incidir no vício de inconstitucionalidade, configurando este pela inobservância de limitações jurídicas superiormente estabelecidas no texto da Carta Política, por deliberação do órgão exercente das funções constituintes primárias ou originárias. (STF, voto do Min. Celso de Mello, RTJ, 153/786)37
No caso em disceptação, portanto, ao impetrar uma ADIn com o fito de evitar que uma emenda destoante do texto supralegal ingresse no ordenamento constitucional, caberá tão-somente ao autor comprovar qual é o limite explícito afrontado pela norma secundária, para que seja declarada a sua inconstitucionalidade.
5.2 Limites Implícitos e o Controle de Constitucionalidade das Emendas
Aparentemente, afigura-se deveras dificultosa a visualização de limites implícitos, como meios de restrição da atuação do Poder Constituinte Derivado. Entretanto, apesar de não existir comando expresso na Constituição neste sentido, os limites implícitos também se mostram competentes a embasar a possibilidade de controle de constitucionalidade.
Destarte, admitindo-se esta hipótese, o que, ressalte-se, é acolhido pela doutrina, conforme demonstrado no capítulo III, não poderão ser objeto de emenda a titularidade do Poder Constituinte Originário, nem tampouco do Poder Instituído, bem como é defeso intentar-se a alteração do procedimento da emendas à Constituição.
Em um espectro mais amplo, o controle de constitucionalidade calcado nos limites implícitos possui o condão de proteger a Constituição em sua mais profunda essência. Impede, pois, que princípios sejam afrontados, ou ainda que direitos e garantias sejam suprimidos ou mitigados. Conferem, outrossim, ao legislador, a necessidade de adequação do seu mister ao cerne supralegal, impondo um respeito ao texto constitucional como um todo, não apenas a preceitos isoladamente considerados.
Aludindo à importância do controle fundamentado em restrições de ordem implícita, Uadi Lammêgo Bulos pontifica: “O controle de constitucionalidade dos limites implícitos evita que princípios fundamentais sejam violados, que direitos e garantias sejam feridos, que ocorra a destruição da constituição.”38
No mesmo sentido acima esposado, transcrevem-se os ensinamentos de Ronaldo Poletti:
Tais limitações são deduzidas do espírito constitucional que não poderia, em termos lógicos, admitir uma reforma que implicasse a sua própria destruição. As emendas devem estar em harmonia com o texto constitucional, como um todo, sem ferir-lhe os princípios básicos. A reforma não é a destruição, nem a suspensão da Constituição.39
Assim, faz-se mister destacar que os limites implícitos podem ser argüidos em sede de controle de constitucionalidade, mormente nos casos de desrespeito aos direitos fundamentais, à titularidade do Poder Constituinte e do Poder Reformador, ou ainda às normas que regulamentam o processo das emendas.
Neste sentido, cumpre trazer à baila os escritos de Nelson de Sousa Sampaio:
Poder-se-á retrucar que, se o controle de constitucionalidade se deve exercer em todos esses casos, dificilmente se pode exercer. Não temos outra resposta senão lembrar que é isso que se costuma suceder em relação a todos os freios de direito público que procuram impedir os órgãos supremos do Estado dobrem a lei ao invés de curvarem-se a ela. Nem sempre a toga da justiça pode servir de barreira às investidas da força. O problema não é, então, o de saber quis custodiet custodem. Não falta quem guarde o guardião. Sucede, porém, que, na hora decisiva, os encarregados de guardar os guardiões, quando não adormecem no seu posto, quase sempre já se acham de mãos atadas.40
Por conseguinte, desde que comprovada a desarmonia entre qualquer uma das limitações implícitas ao Poder Reformador e o texto de uma emenda constitucional, esta deverá ser declarada inconstitucional, não gerando efeitos no ordenamento jurídico.
5.3 Ações Diretas de Inconstitucionalidade e o Posicionamento do STF
O STF, guardião da Constituição no ordenamento jurídico pátrio, já enfrentou diversas demandas que possuíam como objeto os limites às emendas constitucionais. Faz-se mister, pois, a análise do posicionamento deste órgão de cúpula, haja vista que seus julgados possuem inegável relevância para a interpretação e aplicação do Direito, em nosso país.
A questão das cláusulas pétreas é a que se apresenta com maior recorrência no STF, tendo sido analisada, entre outros exemplos, quando do julgamento da Adin 466/91-DF, cujo trecho se transcreve:
O Congresso Nacional, no exercício de sua atividade constituinte derivada e no desempenho de sua função reformadora, está juridicamente subordinado à decisão do poder constituinte originário que, a par de restrição de ordem circunstancial, inibitória do poder reformador (art. 60, §1º), identificou, em nosso sistema constitucional, um núcleo temático intangível e imune à ação revisora da instituição parlamentar. As limitações materiais, definidas no §4º do art. 60 da Constituição da República, incidem diretamente sobre o poder de reforma, conferido ao Poder Legislativo da União, inibindo-lhe o exercício nos pontos ali discriminados.41
Em outra ADIn, de número 939-7, proveniente do Distrito Federal, cuja relatoria coube ao Ministro Sydney Sanches, o STF obtemperou que:
Uma emenda constitucional, emanada, portanto, de Constituinte derivada, incidindo em violação à Constituição originária, pode ser declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é de guarda da Constituição (art. 102, I, a, da CF).42
Na mesma esteira de raciocínio, cumpre trazer à baila os escritos de Luís Roberto Barroso acerca deste julgamento proferido pelo STF:
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal considerou inválido dispositivo da Emenda Constitucional n. 3, de 17 de março de 1993, que excluía do princípio da anterioridade tributária (art. 150, III, b), o IPMF (Imposto sobre Movimentação ou Transmissão de valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira), e vedou sua cobrança no mesmo exercício que instituído.43
Destarte, o entendimento firmado pela jurisprudência recorrente do Supremo Tribunal Federal vai ao encontro do pensamento daqueles que apregoam a possibilidade da impetração de Ação Direta de Inconstitucionalidade em face das emendas constitucionais, para que se façam valer as limitações impostas ao Poder Constituinte Derivado.
Outrossim, restando incontroversa a possibilidade de controle de constitucionalidade das emendas, cabe aos legitimados propor a Ação Direta de Constitucionalidade, quando entenderem que o Poder Constituinte Derivado exorbitou seu mister, na aprovação de alterações à Constituição.
Neste sentido, há que se perquirir o respeito às restrições impostas ao Poder Instituído, ainda que para tal se faça necessária a declaração de inconstitucionalidade de normas ínsitas no Texto Maior.
5.4 A Emenda nº 41 e o Desrespeito às Limitações Materiais ao Poder Constituinte Derivado
Hodiernamente, a questão que causou mais polêmica no âmbito da atuação do Poder Constituinte Derivado foi a aprovação da Emenda Constitucional nº 41, de 19/12/2003, cuja finalidade foi alterar diversos aspectos relacionados à organização da Previdência Social em nosso país. O ponto nevrálgico do debate cinge-se à alteração do Texto Maior que prevê a contribuição dos inativos e pensionistas para o custeio da Previdência.
Destarte, a Emenda nº 41 inseriu em nosso ordenamento jurídico, à revelia dos direitos e garantias fundamentais inerentes ao Estado Democrático de Direito e de alguns dos princípios basilares da Lex Mater, a contribuição previdenciária dos inativos e pensionistas. Ademais, o preceito normativo enfocado atingiu, inclusive, aqueles que já haviam adquirido o direito à aposentadoria sob a égide da legislação outrora vigente e até mesmo aqueles que já se encontram em gozo de benefício validamente deferido, respaldados, portanto, pelas vigas mestras da segurança jurídica, quais sejam: o direito adquirido e o ato jurídico perfeito.
Cumpre trazer à baila o teor dos arts 4º e 5º da EC nº 41/03:
Art. 4º. Os servidores inativos e os pensionistas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, em gozo de benefícios na data de publicação desta Emenda, bem como os alcançados pelo disposto no seu art. 3º, contribuirão para o custeio do regime de que trata o art. 40 da Constituição Federal com percentual igual ao estabelecido para os servidores titulares de cargos efetivos.
Parágrafo Único. A contribuição previdenciária a que se refere o caput incidirá apenas sobre a parcela dos proventos e das pensões que supere:
II – sessenta por cento do limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201 da Constituição Federal, para os servidores inativos e os pensionistas da União.
Art. 5º. O limite máximo para o valor dos benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201 da Constituição Federal é fixado em R$ 2.400 (dois mil e quatrocentos reais), devendo, a partir da data de publicação desta Emenda, ser reajustado de forma a preservar, em caráter permanente, seu valor real, atualizado pelos mesmos índices aplicados aos benefícios do regime geral de previdência social. 44
A emenda supramencionada alterou, portanto, o art. 40 da Norma Cume, que passou a vigorar com a seguinte redação:
Art. 40. Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo.45
Logo, ao preconizar tal matéria, a Emenda Constitucional sub examine feriu de morte a própria Constituição. Os inativos, que contribuíram durante toda vida funcional, ao satisfazerem os requisitos pertinentes à concessão da aposentadoria, de acordo com as leis vigentes ao tempo em que foram implementadas tais condições, adquiriram o direito de não serem mais taxados. Extinguiu-se, pois, a relação jurídica cujo termo restou comprovado pela aposentadoria, posto que se consolidou o ato jurídico perfeito.
Estaria assim, extreme de dúvidas, a emenda intitulada de “Reforma da Previdência”, infringindo a cláusula pétrea que impede a supressão de direitos e garantias fundamentais, mormente por malferir um direito adquirido pelos servidores que se encontram em inatividade e pelos pensionistas.
Acerca deste tema, Limongi França ensina que é adquirido o direito como:
(...) conseqüência de uma lei, por via direta ou por intermédio de fato idôneo; conseqüência que, tendo passado a integrar o patrimônio material ou moral do sujeito, não se fez valer antes da vigência da lei nova sobre o mesmo objeto. 46
Na mesma linha de tirocínio, José Afonso da Silva apregoa:
Para compreendermos um pouco melhor o que seja direito adquirido, cumpre relembrar o que se disse acima sobre o direito subjetivo: é um direito exercitável segundo a vontade do titular e exigível na via jurisdicional quando seu exercício é obstado pelo sujeito obrigado à prestação correspondente. Se tal direito é exercido, foi devidamente prestado, tornou-se situação jurídica consumada (direito consumado, direito satisfeito, extinguiu-se a relação jurídica que o fundamentava). Por exemplo, quem tinha o direito de casar de acordo com as regras de uma lei, e casou-se, seu direito foi exercido, consumou-se. A lei nova não pode descasar o casado, porque estabeleceu regras diferentes para o casamento. Se o direito subjetivo não foi exercido, vindo a lei nova, transforma-se em direito adquirido, porque era direito exercitável e exigível à vontade de seu titular. Incorporou-se no seu patrimônio, para ser exercido quando convier. A lei nova não pode prejudicá-lo, só pelo fato do titular não o ter exercido antes.47
Em suma, direito adquirido é aquele que faz parte do patrimônio de seu titular, podendo ser exercido a qualquer momento, a arbítrio pessoal, não podendo comando normativo posterior promover a sua supressão.
Juridicamente mais cristalina ainda é a situação dos que além de terem incorporado a seu patrimônio jurídico o direito de aposentar-se com as regras vigentes ao tempo em que completaram as exigências formais, já exercitaram tal direito, ou seja, tiveram suas aposentadorias validamente deferidas e calculadas, estando hoje em gozo dessas, sob a proteção basilar de ato jurídico perfeito.
Infringir tais regras é incorrer na exterminação de um dos mais importantes princípios de nosso ordenamento constitucional, consagrado e construído ao longo dos anos: a segurança jurídica. Esta nada mais é do que a certeza que o cidadão precisa ter de não ver vilipendiadas as relações jurídicas completas e acabadas, protegidas sob o pálio do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada.
Ao se aprovar medidas supostamente legais para recolher parte dos proventos dos inativos e pensionistas, fica claro o único objetivo de tentar garantir mais recursos para o custeio da previdência social, o que efetivamente não pode ser feito de maneira inconstitucional, malferindo ao basilar preceito da segurança jurídica.
A questão aqui expendida já foi questionada junto ao STF, que enfrentou o seu julgamento na ADIn nº 3105, bem como na ADIn nº 3099, proposta pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT.
O órgão de cúpula entendeu, por maioria de votos, inexistir direito adquirido a regime jurídico. Todavia, o cunho patrimonial das contribuições efetivadas sob a égide da lei vigente e a subsunção do indivíduo a todos os requisitos legais em vigor, culminando com a aposentadoria concedida sob tais regras, vai muito além do simples direito a regime jurídico.
No entender do presente estudo, ainda que divergindo do posicionamento do STF, a imposição de obrigatoriedade de contribuição dos inativos e pensionistas para a Previdência afigura-se, indubitavelmente, como uma supressão de um direito fundamental dos aposentados: o direito adquirido, plasmado no art. 5º, XXXVI.
Ocorre que aqueles que laboraram durante toda a vida, preenchendo os requisitos necessários à implementação de uma aposentadoria, nos moldes outrora reinantes, não podem ser compelidos a contribuir com uma parcela de seus vencimentos para o custeio da Previdência, pois quando ingressaram no rol dos inativos não havia esta previsão constitucional.
Ademais, a anterior Reforma da Previdência, aprovada em 1998, exonerou os aposentados e pensionistas do pagamento de contribuição à Previdência Social, ao instituir o regime contributivo, o que caracteriza um direito adquirido destes, não sendo passível, pois, de alteração. Assim, ao estabelecer situação mais gravosa às pessoas retromencionadas, a Emenda nº 41 desrespeitou o Texto Maior, mormente no tocante à cláusula pétrea que torna imutáveis os direitos e garantias individuais.
Com a Emenda nº 41/2003, foi imposta aos servidores públicos já aposentados na data de sua promulgação, bem como àqueles que já tinham satisfeito, até a referida data, todos os requisitos para obtenção desse benefício, a obrigação de recolher contribuição previdenciária no mesmo percentual estabelecido para os servidores ativos.
Dessa forma, mais do que desrespeitar o direito adquirido (daqueles que podendo exercê-lo, ainda não o fizeram), atingiu direito subjetivo já exercido (no caso de servidores já aposentados na data da EC nº 41/03), fato que se caracteriza por uma situação jurídica definitivamente constituída, transformando-se, portanto, em novo tipo de relação jurídica, que não pode ser desfeita ou meramente modificada, por configurar-se como ato jurídico perfeito.
Por fim, resta oportuno destacar que a Constituição de 1988, consoante demonstrado ao longo destes escritos, impôs a imutabilidade das cláusulas pétreas, restando inadmissível que uma emenda constitucional venha a suprimir direitos e garantias individuais, entre os quais o direito adquirido e o ato jurídico perfeito.
Em suma, todos os aposentados e pensionistas adquiriram o direito à concessão de suas aposentadorias, como situação jurídica concretizada, como também aos valores e regras de atualização dos proventos recebidos, imodificáveis por meio de emenda posteriormente aprovada pelo Poder Constituinte Derivado.
Destarte, lamenta-se a decisão proferida pelo STF, de que não há inconstitucionalidade no texto da Emenda Constitucional ora enfocada, o que não fez valer o direito adquirido dos aposentados e pensionistas, no sentido de não pagarem contribuições à Previdência Social.