Resumo:As políticas públicas tem se mostrado campo fértil para a atuação do poder judiciário, diante da incapacidade dos poderes legislativo e executivo em concretizar direitos sociais. A Política Nacional de Resíduos Sólidos, que tem como ponto socialmente relevante a inclusão dos catadores de materiais recicláveis na cadeia produtiva formal dos resíduos sólidos urbanos (RSU) - é exemplo claro desta assertiva. O objetivo deste estudo é (i) a contextualização do conflito instaurado entre a possibilidade de alteração de paradigmas secularmente estabelecidos e a resistência dos operadores da administração pública em fazê-lo. E, considerando o papel do Poder Judiciário como agente pacificador e coerente, sob enfoque do Estado Constitucional e dos direitos sociais, (ii) avaliar a adoção das ações coletivas como método de provocação do Estado Juiz.
Palavras-chave: Políticas públicas. Catadores de Materiais Recicláveis. Judicialização. Processo Coletivo.
1 Introdução
A realidade dos trabalhadores de coleta, seleção e comércio de materiais recicláveis se alterou sobremaneira na última década. Ao mesmo tempo em que foram reconhecidos como atores sociais relevantes, estes trabalhadores se veem hoje sob o risco de perder seus postos de trabalho. O arcabouço legal produzido no decênio é crucial para a compreensão das oposições que se estabeleceram, bem assim como de seus desdobramentos possíveis. É igualmente pertinente que se visualize a dimensão econômica e social que toma corpo nas discussões sobre a gestão dos resíduos quando observadas as alterações nos padrões vigentes necessárias, possíveis ou oportunas ao enfrentamento da questão pelos municípios. O espectro político se desenha neste enfoque. E a fragilidade das conquistas da atuação dos catadores se levanta com clareza, na medida em que seu objeto de trabalho é alvo de disputa com grandes indústrias.
A interdisciplinaridade das questões envolvidas no trabalho de catação e reciclagem é fator decisivo para que a comunidade científica e jurídica cumpra seu papel e atue diretamente, alcançando subsídios técnicos e teóricos para a consolidação da coleta e da reciclagem como serviços públicos de importância ambiental determinante. É essa contribuição que permitirá que os arranjos institucionais necessários à implantação das políticas públicas afeitas sejam conformes aos anseios de uma sociedade justa e sustentável, no que por certo a atuação judiciária tem papel relevante e ainda pouco explorado.
Tendo em vista tais considerações, este trabalho tem por objetivo: (1) descortinar o esqueleto normativo sociológico em que, no Brasil, estão situados os catadores de materiais recicláveis na cadeia produtiva dos resíduos sólidos urbanos (RSU); (2) identificar as tensões sociais e políticas incidentes no processo de inclusão decorrente da implantação da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), Lei nº 12.305/2010[1], e seus desdobramentos possíveis, em especial a melhor maneira de provocação do poder judiciário quando não dissipadas administrativamente.
Assim, far-se-á uma breve análise sobre o arcabouço legal vigente e sua vinculação ao ânimo inclusivo inovador. Passo seguinte, serão tratadas as dificuldades de implementação das diretrizes políticas estabelecidas e da conveniência e oportunidade de o poder judiciário contribuir com a superação destes obstáculos e impasses.
2 A teia legal que envolve a tentativa de inclusão dos catadores de materiais recicláveis na gestão dos resíduos sólidos e a relevância do aspecto sociológico no processo de implantação da PNRS: dificuldades e possibilidades de superação mediante provocação do poder judiciário.
Desde o início da década de setenta, com a Convenção de Estocolmo, o ambiente assumiu destaque no âmbito do direito internacional. No Brasil, a Lei nº 6938/81, de 02 de setembro de 1981, regulamentou a Política Nacional de Proteção ao Meio Ambiente. Em 1985, a Ação Civil Pública foi regulamentada através da Lei nº 7.347. A Constituição Federal promulgada em 1988 consagrou os princípios da livre iniciativa, valorização do trabalho, incentivo ao cooperativismo, respeito ao ambiente[2], justiça social, proteção ao consumidor, ações coletivas. O princípio do poluidor-pagador foi recepcionado pela Política Nacional dos Recursos Hídricos, estabelecida nos termos da Lei nº 9.433[3], publicada em 09 de janeiro de 1997. A Lei 9.974, datada de 07 de junho de 2000, institucionalizou a responsabilidade dos produtores de agrotóxicos pelo retorno das respectivas embalagens e implantou a sistemática de logística reversa, hoje consagrada como instrumento crucial na gestão de resíduos. No ano de 2006, foi promulgado o Decreto nº 5.940, determinando a coleta seletiva e destinação aos catadores do material descartado pela administração pública federal. A Lei do Saneamento Básico[4], ao estabelecer as diretrizes nacionais para o saneamento básico, teve maior relevância que as anteriores para o alcance da cidadania pelos catadores, ao incluí-los como aptos a se responsabilizar pela coleta em âmbitos restritos, admitindo sua contratação por convênios, mediante alteração da lei de licitações. Foi a partir do estabelecimento destas diretrizes que se vislumbrou a possibilidade real de os catadores organizados contratarem com a municipalidade.
Daí até a instauração da PNRS, mediante promulgação da Lei nº 12.305/10, as associações minimamente organizadas puderam iniciar sensíveis conquistas e assumir a coleta de pequenas áreas, porta a porta. Com isso, sinalizaram a possibilidade de assumir a condição de prestadores de serviços públicos de limpeza urbana e reciclagem.
Outro diploma legal de menção impositiva na percepção dos desafios que se tem somado à implementação da PNRS e da inclusão dos catadores na cadeia produtiva, é a publicação da Lei nº 12.609, de 19 de julho de 2012, que dispõe sobre a organização e funcionamento das cooperativas de trabalho. Ainda que não seja o enfoque do presente estudo, que pretende apreciar somente as questões relativas à contratação de coleta seletiva solidária e resistência à tecnologia de incineração, é preciso registrar que é mais um aspecto socialmente importante a chamar os operadores do Direito para o debate, na medida em que a Justiça do Trabalho será fatalmente instada a solver questões que necessariamente terão de ser analisadas sob o enfoque consequencialista.
É impossível observar as nuances sociológicas que informam a PNRS sem mencionar o histórico das conquistas dos catadores de materiais recicláveis, que viabilizaram o reconhecimento do seu protagonismo no panorama urbano consumidor. A sua inclusão na condição de partícipes determinantes não se deu de forma isolada, nem tampouco imediata, sendo fruto de uma caminhada que remonta mais de dez anos de luta organizada pelo reconhecimento do valor do trabalho de catação na cadeia da reciclagem. A demonstrar esta afirmativa, a Carta de Brasília[5], exarada no congresso nacional de catadores realizado em 2001, como resultado de encontro havido dois anos antes.
Esta luta, que dista em muito de seu fim e que se depara com desafios proporcionais às conquistas amealhadas, pretende a descriminalização dos trabalhadores que sofrem rejeição social vinculada ao objeto de sua atividade, inserida no rol da Classificação Brasileira de Ocupações do Ministério do Trabalho e Emprego em 2002[6].
O estigma atribuído aos trabalhadores de baixa renda e escolaridade é questão de fundamental observação para o dimensionamento da tensão econômico-social estabelecida nacionalmente pelas diretrizes e prazos da PNRS. Os desdobramentos destas tensões é matéria para a qual o poder judiciário deve se preparar para enfrentar.
Os catadores são relacionados às características do material que coletam e separam. Da mesma forma que os resíduos, são socialmente descartados. Assim como os resíduos domésticos, que pelo senso comum deixam de ser responsabilidade dos seus produtores no exato momento em que são postos da porta de suas casas para fora, tanto melhor seria – para o mesmo senso comum – se os catadores não coexistissem com os transeuntes. É preciso reforçar o fato de que os resíduos são o objeto de trabalho dos catadores e não o lixo, cujo significado dos dicionários é “tudo o que não presta e se joga fora. Sujidade, sujeira, imundice, coisa ou coisas inúteis, velhas, sem valor” (FERREIRA, 1999, p. 1042). Assim, não podem mais ser estas as características a serem relacionadas aos catadores; urge uma mudança paradigmática. Os catadores devem ser reconhecidos como verdadeiros agentes de transformação da realidade ambiental no país.
O ânimo de integração social da PNRS é claro e pode ser sentido pelos diplomas legais que a antecederam, em especial o Decreto 5.490/06 que estabeleceu o que se denomina coleta seletiva solidária na administração pública federal. Esta integração também pode ser depreendida pela Lei do Saneamento Básico que autorizou a contratação dos catadores sem licitação pelos municípios. Essa sequência reflete o quão gradativo e fundamentado foi o crescimento do protagonismo dos catadores, e não pode ser ignorada pelos aplicadores das leis que se sucederam e hoje pautam políticas historicamente consagradas como mobilizadoras de contratos de grande vulto econômico e que reiteradamente são alvo de ações civis públicas por danos ao erário[7].
A expressão “catadores” é citada doze vezes no corpo da lei que instituiu a PNRS, dentre as quais destaca sua inclusão como objetivo (Lei 12.305/10, artigo 7º, inciso XII). Na sua regulamentação, Decreto nº 7.404 de 23 de dezembro de 2010, a mesma palavra é mencionada em vinte e duas oportunidades. É deste cenário que se infere a conferência de status de política pública inclusiva de catadores à política nacional de gestão de resíduos. E também do abandono do assistencialismo como critério de tratamento. E é a partir desse panorama de conquista legislativa decorrente de mobilização social que se reconhece o fenômeno como expressão do Estado de Bem Estar Social emergente identificado por Oliveira Júnior e Soares (2011 p. 39): “A emergência do Estado de bem estar social como reação às demandas dirigidas ao Estado por grupos sociais que se constituíram em verdadeiros atores sociais na reivindicação por maior tutela estatal significou uma transformação do Direito.”.
O cenário de ascensão social dos catadores, com a possibilidade factível de inserção no mercado de trabalho mediante respeito à organização autônoma e às características libertárias de seu ofício, viabilizado e erigido à categoria de prioridade pelo ordenamento legal, é exemplo vivo de campo aberto para a judicialização da política. Vianna (2013), bem esclareceu a circunscrição temporal atual quando a comparou com a década de 50: “vive-se um tempo de acelerada modernização promovida por indução estatal, que vem revolvendo as suas estruturas sociais e ocupacionais e provocando realinhamento, em curto espaço de tempo, da posição de classes e de estratos sociais.”
A fixação do foco na autonomia na organização do trabalho e na alteração de paradigmas administrativos e políticos é socialmente relevante para que se estabeleça o entendimento sobre a dificuldade de implantação dos serviços públicos de coleta pelos catadores, em detrimento das formas vigentes por décadas. Porque são estes dois pontos que, em sentido estrito, delimitam os entraves à contratação da coleta seletiva solidária pelos municípios e que se configuram aptos a impedir pragmaticamente a consolidação da inclusão social determinada pela PNRS.
Considerando que a pretensão é lançar luz sobre as hipóteses ideais de atuação judicial diante das dificuldades encontradas pelos catadores na implantação da PNRS, não se pode esquecer “que o processo civil, ao regular o contencioso social (pela resposta do Estado-juiz), reflete na dinâmica social, econômica e política de uma sociedade, entre seus participantes, entre suas instituições e seus participantes, e entre as próprias instituições.” (MATTE, 2013, P. 25). Estar-se-á tratando da implantação de uma política de inclusão. Dirigida, em consequência, ao indivíduo. No entanto, a mesma proposta se destina a fomentar a organização destes mesmos indivíduos em grupos auto gestionários, cuja manutenção é penosa (FONSECA, LIMA, ASSUNÇÃO, 2004), para a prestação de um serviço público de absoluta relevância ambiental. Neste ponto é que, em concomitância, se reveste de caráter essencialmente coletivo.
Além disso, a tensão social decorrente do confronto entre o ânimo inclusivo da legislação e a resistência dos atores envolvidos na colocação em prática das orientações da PNRS é sentida nitidamente quando observados os dados de implementação de coleta seletiva solidária nos municípios. Segundo relatório de 2010, no Brasil inteiro apenas oito por cento dos municípios contam com coleta seletiva, que por sua vez atinge dez por cento das populações municipais (CEMPRE CICLOSOFT, 2010). E não se está a falar de coleta seletiva solidária. Ainda não existem dados fidedignos sobre a quantidade de municípios que contratam catadores para a coleta. “Uma parte considerável da coleta de materiais recicláveis é feita por catadores de maneira informal, e assim não é contabilizada nas estatísticas oficiais.” (IPEA, 2012, p.17). Diante destas informações é razoável concluir pela dificuldade vivenciada pelos catadores organizados para assumir a condição de prestador de serviço público que a legislação lhes assegura[8]. Possível inferir ainda que até agora a administração pública não assimilou o caráter inclusivo da legislação.
A identificação das oposições político-econômicas incidentes no processo de implantação da PNRS não pode excluir o conflito entre a tecnologia convencional[9] e a tecnologia social, que se digladiam em face do conflito instaurado pela própria legislação.
As tecnologias sociais identificam-se pelo caráter social relevante das inovações, calcadas em propostas focadas em promover soluções a problemas diretamente relacionados ao desenvolvimento local, a geração de trabalho e renda, a alimentação, a saúde, a energia, a moradia e a agricultura familiar, abrangendo outros temas, como a ecologia, a promoção e efetivação dos direitos humanos e a inclusão social. (BOFF; BOFF, 2010, p. 437).
Explica-se. No momento em que não veda explicitamente a adoção de determinadas tecnologias, a PNRS cria um embaraço intrínseco à efetivação da inclusão social que pretende e ergue como objetivo. Um expoente radicalmente ativo neste panorama: a geração térmica de energia a partir da combustão de resíduos, tecnicamente denominada mass burn (RELATÓRIO FINAL, 2012). Pode se dar por pirólise, gaseificação e plasma. Reclama material de alta combustão para o funcionamento. Aliada à contratação global de serviços de coleta mecânica, seleção, destinação e transporte por empresa única, configura sério obstáculo a ser ultrapassado pelos catadores na perseguição da contratação pela administração pública, situação que não se revela inédita. “Diante disso, interesses particulares e interesses coletivos coexistem e se combinam em meio ao emaranhado normativo, realidade típica em diversos espaços do Direito administrativo.”(BUSATO, 2011, p. 63).
Os efeitos decorrentes da adoção das tecnologias convencionais através da manutenção dos padrões de contratos anteriores à PNRS são prorrogados no tempo. Seus resultados ambientais e sociais negativos serão politicamente colhidos pelos futuros governantes. Enquanto isso, a adoção da política inclusiva de trabalhadores marginalizados com baixa escolaridade demanda trabalho contínuo e concomitante a políticas educativas igualmente perenes. Disso resulta que às administrações que optarem pelo desenvolvimento de políticas inclusivas e trabalhos educativos caberá enfrentar a resistência inicial natural e, àquelas que se seguirem, tocará a colhida dos frutos benéficos postergados para o médio e o longo prazo. É hipótese clara de mudança de paradigma histórico.
E, reconhecendo o contemporâneo fenômeno sociológico da judicialização dos conflitos, não é prematuro afirmar que a tendência natural é de que a eclosão destas tensões seja objeto de análise pelo poder judiciário. A respaldar a assertiva, veja-se ponderação a respeito do crescimento do custo de administração da justiça estadual na última década: “Desde 2004, as despesas crescem a uma média de 8,9% ao ano, ao passo que o PIB obteve uma média de crescimento de 5,9%” (LEAL, 2010, p.75). E a sinalizar o que se antevê, são algumas demandas em andamento acerca do tema: ação nº 0001056-88.2012.8.16.0014, que tramitou perante a Vara da Fazenda Pública de Londrina, Paraná, e agora se encontra em sede de apelação, movida pelo Conselho das Organizações dos Profissionais da Reciclagem de Resíduos Sólidos de Londrina; ação popular ambiental ajuizada por catadoras visando a proibição de aprovação pela companhia de tecnologia de saneamento ambiental do Estado de São Paulo de projeto de implantação de planta incineradora, com liminar negada e atualmente em sede recursal, processo nº 0030391-12.2011.8.26.161, da Comarca de São Bernardo do Campo, São Paulo.
São estas as observações que permitem afirmar com segurança que o papel do judiciário se mostra absolutamente relevante no cenário analisado. E é diante da sua responsabilidade para com a consolidação do Estado Democrático de Direito na historicamente recente democracia nacional (GIDI, 2004, p.23), que resulta essencial a análise dos remédios processuais hábeis a provocar o Estado Juiz. E, para assegurar que o judiciário possa atuar de forma respeitosa à divisão dos poderes republicanos, a escolha da hipótese de incitação deve necessariamente considerar o raciocínio judicial esquemático como instrumento de equação de problemas sob o enfoque consequencialista que a temática reclama.
A natureza político-social dessas normas impõe a necessidade de métodos de interpretação específicos. O modelo dominante no Brasil sempre foi de perfil ‘liberal-individualista-normativista’, que nega a aplicação das normas programáticas e dos princípios da nova Constituição. Enquanto o positivismo jurídico formalista exigia a ‘neutralização política do Judiciário’, com juízes racionais, imparciais e neutros, que aplicam o direito legislado de maneira lógico-dedutiva e não criativa, fortalecendo desse modo o valor da segurança jurídica, o moderno Estado Social requer uma magistratura preparada para realizar as exigências de um direito material, ‘ancorado em normas éticas e políticas, expressão de ideias para além das decorrentes do valor econômico’.(KRELL, 1999, p. 249)
Fixada a problemática resta enfrentar as possibilidades de otimização da judicialização na implantação da PNRS, debate que se pretende iniciar com o presente estudo.
3 Das formas de provocação do Estado Juiz para o exercício organizacional do controle social destinado a garantir a implantação da PNRS
O estudo empreendido se afigura modesto embrião, cuja evolução quer parecer de grande valia no rumo da conformação de um ambiente favorável à efetivação dos direitos que hoje se encontram em plano distante da realidade. Fixa suas raízes na convicção da força do processo judicial como instrumento de alcance do direito material. E esta convicção não se mostra isolada. “Um total de 81% dos entrevistados concorda com a afirmação ‘se o juiz decide que uma pessoa pague a outra uma quantia, ela tem a obrigação moral de pagar mesmo que discorde da decisão’” (FGV, 2013, p. 15), foi o que concluiu o estudo destinado a “medir, de forma sistemática, a percepção dos brasileiros em relação ao respeito às leis e a algumas autoridades que estão diretamente envolvidas com o cumprimento das leis.” (FGV, 2013, p. 4).
E, mais do que isso, este trabalho ambiciona, mediante o enfrentamento das possibilidades de provocação do judiciário, conferir ao advogado o status de protagonista no fenômeno da judicialização da política no Brasil, que, no mais das vezes, é analisado sob o enfoque exclusivo daqueles que respondem as ações que, como será visto adiante, não são habitualmente intentadas por advogados particulares. As alterações sociais reclamam o protagonismo em detrimento dos modelos protecionistas e assistencialistas e a defesa da implantação das políticas públicas deve ser desempenhada por todos os legitimados. Tal modificação na conduta dos operadores do Direito por via reflexa teria o condão de beneficiar o Ministério Público e a Defensoria que se veriam menos sobrecarregados.
Numa sociedade mais evoluída, seriam designados juízes brancos e azuis, para que haja um equilíbrio entre as decisões. Entretanto, nas sociedades atuais, multiculturais e complexas, isso não é suficiente, porque haverá problemas transversais, em que os brancos convergirão com as posições dos azuis, e haverá muitos outros grupos (vermelhos, verdes, amarelos) que não se sentirão representados. Por esta razão, o direito requer, cada vez mais, juristas que, ainda quando tenham suas próprias concepções, sejam capazes de compreender a diversidade, transcendendo sua própria formação para contribuir com uma sociedade mais integrada. (LORENZETTI, 2009, P. 37)
A iniciativa de defender o exercício de pretensão coletiva independente - e aqui se diz no sentido de dispensar a atuação do Ministério Público para o ajuizamento - como instrumento de solução de demandas instauradas na implementação da PNRS se harmoniza ao ideário do processo colaborativo.
“Essa ideia de processo como polo metodológico central da teoria do processo civil contemporâneo bem responde ao caráter essencialmente problemático assumido pelo direito hoje, para cuja solução concorrem, argumentativamente, todos aqueles que participam do feito. A propósito, a passagem da jurisdição ao processo corresponde, em termos de lógica jurídica, à passagem da lógica apodítica à lógica dialética: do monólogo jurisdicional ao diálogo judiciário.(MITIDIERO, 2011, p. 49)
Os impasses surgidos nas discussões com os municípios, que são os entes públicos sobre os quais recaem as obrigações diretas determinadas pela PNRS, são basicamente decorrentes da resistência da administração pública em adotar novos paradigmas de atuação social. São exemplos sociológicos vívidos da passagem do Estado Liberal para o Estado de Bem Estar Social (CAMBI, 2005, p.2). Essa passagem do Estado Liberal para o Estado Social é desenhada por François Ewald (1996), que ressalta o cabimento da intervenção estatal em questões de ordem pública. O direito ambiental, no qual a política pública de que aqui tratamos se insere, bem demonstra a superação da dicotomia entre âmbito público e privado, potencializando a importância das demandas coletivas na solução de empecilhos administrativamente estabelecidos. E a resistência da administração publica á mudança paradigmática parece refletir o mesmo embaraço que se percebeu, destarte no âmbito dos tribunais, quando da inserção no ordenamento das demandas coletivas décadas atrás:
Algunos vieron a las acciones colectivas no como un medio de mejorar el acceso a la justicia o de equilibrar la falta de poder de los individuos frente a las compañías y el gobierno, sino más bien como un injusto privilegio.
Otros trataron de encontrar obstáculos insuperables, técnicos y filosóficos, en las acciones colectivas. Sin embargo, esta oposición tenía menos que ver con la ley o la ciencia jurídica que con el rechazo de muchos juristas contemporáneos de romper con el statu quo.(GIDI,2004. P.23)
Contratos formulados sem a atenção às diretrizes estabelecidas pela PNRS mediante adoção de tecnologias contrárias ao ânimo inclusivo, emprego de técnicas administrativas formalmente aceitáveis divorciadas da realidade, prática de certames desvinculados dos novos preceitos e dos planos de gestão formulados. São, sob a abordagem rasa que o presente estudo permite, algumas hipóteses que mais do que autorizam, determinam a atuação judicial mediante provocação adequada.
São atos administrativos em muitas hipóteses passíveis de ação direta de inconstitucionalidade em face da Constituição Estadual[10], o que a Constituição Federal garante em seu artigo 125, §2º[11]. Já as questões que violem a Constituição Federal, podem ser alvo de Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, dirigida ao Supremo Tribunal Federal, conforme disposição expressa da Lei nº 9.882/99[12].
No entanto, estar-se-á diante da tentativa de desenhar o melhor panorama de atuação para que o judiciário possa agir no gozo do mais amplo espectro teórico normativo, e, assim, apreciar a questão posta mediante atenção aos contemporâneos preceitos de vinculações sistemáticas (LORENZETTI, 2009, p. 76). Considerando o caso específico em análise, qual seja a contratação de catadores de materiais recicláveis para a gestão de resíduos sólidos e a restrição das contratações a pequenas áreas e pequenos grupos, os mecanismos abstratos e concentrados de controle não parecem os mais adequados.
Aqui não se fará maior digressão sobre as especificidades que informam as ações: popular (Lei nº 4.717/65); civil pública (Lei nº 7.343/85); destinadas à proteção das pessoas com deficiência (Lei nº 7.853/89); das crianças e adolescentes (Lei nº 8.069/90); dos consumidores (Lei 8.078/90) ou dos idosos (Lei nº 10.741/13). Serão todas identificadas como “ações coletivas”, de modo a simplificar a abordagem.
O histórico das ações coletivas no cenário brasileiro, por sua vez, acaba por contribuir para sua eleição como instrumento mais adequado à proteção dos interesses tuteláveis na implantação da PNRS.
A LACP nasceu no âmbito dos interesses difusos e coletivos, em relação a bens nominalmente indicados; sucessivamente, foram esses generalizados, ainda que o legislador tenha voltado ao critério de indicação nominal. Se era ação destinada a restaurar situações motivadas por ilícitos em relação à responsabilidade civil e para tutelar as obrigações de fazer e de não fazer, inclusive preventivamente, sucessivamente ampliou-se o espectro de sua utilidade à luz do âmbito descrito no art. 84 do CDC, a ela aplicável. E, se nasceu vocacionada à proteção de interesses difusos e coletivos, com o CDC, passou a poder atingir as situações de " interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum”. Este é o perfil das principais evoluções legislativas ocorridas. (ARRUDA ALVIM, 2012, p.88)
O caráter de serviço ambiental da reciclagem é inegável. Em singela síntese, o material reciclado impede o gasto de matéria prima e evita o aterramento, reduzindo emissão de gases poluentes não só pela decomposição como pelo transporte. Ainda se soma ao cunho ambiental intrínseco ao trabalho desenvolvido pelos catadores, a questão social inserida na necessidade de formatação de arranjos institucionais inclusivos. “Em relação aos bens e valores que podem ser objeto de proteção pela ação civil pública é possível surpreender mais de um bem conjugamente com outro, ou, pela proteção de um bem, se protege outro.” (ARRUDA ALVIM, 2012, p.89). Transitam na problemática posta, direitos difusos – cuja titularidade é de pessoas ligadas por circunstâncias de fato - e direitos coletivos stricto sensu ou transindividuais – cuja titularidade é do grupo de pessoas ligadas entre si ou à parte contrária por uma relação jurídica base. A análise da causa de pedir é que será o fator determinante na elaboração da ação (MATTE, 2013 p. 82).
Análise dos dados disponíveis na rede mundial de computadores permite asseverar que as ações de inconstitucionalidade ajuizadas perante o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul são, em sua expressiva maioria, propostas ou pela Procuradoria Geral de Justiça, a despeito do longo rol de legitimados pelo parágrafo primeiro do artigo 95 da Constituição Estadual[13]. É possível dizer que a sociedade civil organizada está inerte quando se fala em provocar o judiciário a interferir nas políticas públicas locais no mínimo quando se fala em questão constitucional, ainda que no âmbito estadual. “A chave somente se fará disponível quando se compreender que se está diante de uma insurgência democrática em favor do reconhecimento de novas identidades sociais e de direitos de participação na vida pública, especialmente das novas gerações.”(VIANNA, 2013).
Mas não é só neste âmbito que o protagonismo é exercido exclusivamente pelo Ministério Público. “Estatísticas apontam que, apesar do artigo 5º da LACP prever outros legitimados ativos, cerca de 95% (noventa e cinco por cento) das ações civis públicas, no Brasil, foram propostas pelo Ministério Público.” (CAMBI, 2005, p.3). E o mesmo pode se dizer em relação às ações esteadas no Código de Defesa do Consumidor.
As associações, que são a forma de organização mais elaborada que se observa dentre os catadores de materiais recicláveis, são legitimadas para a propositura de ações coletivas. No entanto, pesquisa extenuante perante os sítios na rede mundial de computadores dos tribunais de justiça dos estados do Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, não permitiu a identificação de muito mais do que aquelas citadas no item “3” como demonstração de que as associações de catadores se valham do poder judiciário para reivindicar seus direitos assegurados pela PNRS.
Há mobilização dos juristas no sentido de discutir a instauração de um microssistema paralelo para a regulamentação das demandas coletivas em trâmite na Câmara dos Deputados, projeto de Lei nº 5.139/2009. A isto se somam as características das ações que são alvo da proposta de regulamentação comum. Desta conjunção se conclui que sua adoção pelos catadores de forma individual no caso das ações populares ou através das associações não é só viável como se configura o mais coerente exercício de provocação do judiciário quando violados os preceitos destinados à implantação da PNRS.