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Limitações ao direito fundamental à ação

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Agenda 01/02/2002 às 01:00

"Por que, toleirões, fazer tratantadas fora da lei, se há lugar de sobra para fazê-las dentro?"

G. Dossi


SUMÁRIO: 1. O princípio da proporcionalidade - 2. Os subprincípios da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito - 3. Aplicação do princípio da proporcionalidade no Direito Processual Civil - 4. O princípio da proporcionalidade e a relatividade dos direitos fundamentais - 5. O direito fundamental à ação - 6. Limitações ao direito fundamental à ação - 6.1. Limitações decorrente de normas constitucionais - 6.2. Limitações decorrentes de normas infraconstitucionais - 6.2.1. As condições da ação como limites ao exercício do direito fundamental à ação - 6.2.2. A problemática do depósito prévio nos embargos e em outras ações (anulatória de débito fiscal, ação rescisória etc) - 6.2.3. O prazo decadencial de 120 para a propositura do mandado de segurança - 6.2.4. O prévio exaurimento da instância administrativa para a propositura do mandado de segurança e outras ações - 6.2.5 A perempção e o direito fundamental à ação - 7. Para concluir - Bibliografia


1. O princípio da proporcionalidade

Na atual fase de evolução do estudo do direito e, em particular, do direito processual, nada mais é possível fazer de sério e importante que não passe pela capacidade de trabalhar adequadamente o princípio da proporcionalidade.

Na verdade, neste período em que a democracia restaurada desponta como valor supremo, o toque diferencial do operador do direito é saber manipular o princípio, saber compreendê-lo e aplicá-lo na sua dimensão jurídica, como instrumento de atuação profissional, mormente em face das investidas nem sempre legítimas do Poder Público.

Para bem entender a proporcionalidade, que entra naquela categoria de princípios que são mais fáceis de compreender do que definir[1], é preciso esclarecer que, a despeito de não haver, no Brasil, norma constitucional a consagrando expressamente, afigura-se inarredável sua presença "descoberta" no ordenamento jurídico brasileiro, justamente por ter o Brasil feito a escolha política do Estado Democrático de Direito, onde a proteção dos direitos fundamentais se desloca para o centro de gravidade da ordem jurídica[2].

Urge ressaltar que a doutrina mais autorizada vem fazendo uma distinção entre a abrangência do princípio da proporcionalidade (de origem germânica, assinale-se) e do princípio da razoabilidade (de origem norte-americana), afirmando que não são princípios fungíveis, embora semelhantes em alguns aspectos[3].

Como sustenta a juíza federal GERMANA OLIVEIRA DE MORAES, "inexiste sobreposição entre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. De toda sorte, embora com matriz histórica diversa e conteúdos distintos, guardam vários pontos de identidade"[4].

Com base nas lições dessa jurista, vê-se que, no direito norte-americano, a razoabilidade (substantive due process) tem uma acepção quase sempre reduzida à noção de racionalidade, somada a uma concepção de "consenso popular". No direito germânico, de outro turno, o princípio da proporcionalidade, graças à contribuição jurisprudencial e doutrinária, galgou uma conotação mais objetiva, que se resume nos três elementos parciais (subprincípios) que se seguem:

a) adequação (pertinência ou aptidão) entre meio e fim: ou seja, existência de relação adequada entre um ou vários fins determinados e os meios com que são determinados a cabo;

b) necessidade (exigibilidade ou vedação ou proibição do excesso ou escolha do meio mais suave): isto é, entre as soluções possíveis deve-se optar pela menos gravosa, na máxima clássica de JELLINEK: "não se abatem pardais disparando canhões";

c) proporcionalidade em sentido estrito: leva-se em conta os interesses em jogo, vale dizer, cuida-se, aqui, de uma verificação da relação custo-benefíco da medida, isto é, da ponderação entre os danos causados e os resultados a serem obtidos. Em palavras de CANOTILHO, trata-se "de uma questão de ‘medida’ ou ‘desmedida’ para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim"[5].

É, portanto, sob essa tripla dimensão que utilizaremos o princípio da proporcionalidade no presente artigo, ressaltando, desde já, que qualquer ato do poder público, inclusive os normativos, para que sejam válidos (i.e., constitucionais), necessitam ser adequados, necessários e proporcionais em sentido estrito, cumprindo ao Judiciário, em última instância e em cada caso concreto, a tarefa de fiscalizar a observância dos referidos "subprincípios da proporcionalidade".


2. Os subprincípios da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito

Para facilitar a compreensão do que vem a ser os três elementos que compõem a proporcionalidade em sentido amplo, vale citar três situações hipotéticas em que eles não foram atendidos pelo legislador.

2.1. Adequação: Suponhamos que o Prefeito de Salvador, no carnaval, proíba a venda de bebidas alcoólicas para evitar e disseminação do vírus da AIDS. Inegavelmente, será inválida essa proibição, pois não há relação de causa e efeito entre álcool e disseminação do vírus da AIDS, vale dizer, não existe adequação entre o meio utilizado (proibição de venda de bebida alcóolica) e o fim visado (diminuição da disseminação do HIV)[6].

Agora um exemplo "processual": hipoteticamente, o legislador, com o objetivo explícito de aumentar a celeridade do processo, edita uma lei aumentando o salário dos juízes. Certamente esta lei não passaria pelo "teste" da proporcionalidade, vez que não há nenhuma relação entre a celeridade processual (fim ou efeito) e o salário dos magistrados (causa), embora esse aumento possa influir na qualidade das decisões.

Dessume-se, pois, que toda vez que os meios destinados a realizar um fim não são por si mesmos apropriados não há a adequação. Para aferir a adequação há de se perguntar: o meio escolhido foi adequado e pertinente para atingir o resultado almejado?

2.2. Necessidade: Se uma fábrica estiver poluindo o ambiente, mas for possível solucionar o problema pela colocação de um filtro, será inválida, por desproporcional, a decisão do Poder Público de fechar a fábrica. Outro exemplo: se, em uma ação demolitória, o Poder Público pede a demolição de um prédio pelo simples fato de não haverem sido observadas formalidades no ato de autorização de construção da obra, o pedido deve ser julgado improcedente por não ser o meio mais suave de se solucionar o problema.

Na proporcionalidade, está embutida a idéia de vedação ao excesso, ou seja, a medida há de ser estritamente necessária. Invoca-se o velho jargão popular: dos males o menor. Portanto, para aferir a necessidade deve-se perguntar: o meio escolhido foi o ‘mais suave’ entre as opções existentes?

2.3. Proporcionalidade em sentido estrito: Digamos que o Poder Público, visando evitar a destruição de um bem público (uma estátua, por exemplo), coloque ao redor desta estátua uma cerca eletrificada capaz de causar a morte de alguém que pretenda pichá-la. Neste caso, apesar de a medida ser adequada (há relação entre meio e fim), a medida seria inválida, pois não há proporcionalidade em sentido estrito. O bem jurídico preservação do patrimônio público é menos importante do que o bem jurídico vida. Já dizia JORGE MIRANDA: "o primado da pessoa é o do ser, não o do ter; a liberdade [no caso, a vida] prevalece sobre a propriedade"[7].

Deve haver um sopesamento de valores, a fim de que se busque a proporcionalidade, ou seja, verificar-se-á se a medida trará mais benefícios ou prejuízos. Pergunta-se: o benefício alcançado com a adoção da medida sacrificou direitos fundamentais mais importantes (axiologicamente) do que os direitos que a medida buscou preservar?

Em resumo, "pode-se dizer que uma medida é adequada, se atinge o fim almejado, exigível, por causar o menor prejuízo possível e finalmente, proporcional em sentido estrito, se as vantagens que trará superarem as desvantagens"[8].


3. Aplicação do princípio da proporcionalidade no Direito Processual Civil

No campo processual, assim como em todos as demais áreas do conhecimento jurídicos, o princípio da proporcionalidade tem grande valia na busca da solução justa ao caso concreto, principalmente no campo da preservação de direitos fundamentais.

Apenas para aquilatar a importância do princípio, imagine como se tornaria mais fácil ao magistrado, se soubesse aplicar adequadamente o princípio, vislumbrar a possibilidade de concessão ou não de medida liminares[9], ou mesmo na quantificação de um dano moral. Certamente, seu trabalho tornar-se-ia bem mais simples e objetivo.

Ademais, não se pode negar a semelhança, que de fato existe, entre os dois primeiros aspectos da proporcionalidade, quais sejam, a adequação e a necessidade, com o interesse de agir como condição da ação no Direito Processual brasileiro.

Com efeito, a doutrina brasileira entende que o interesse de agir (ou processual) resta configurado quando, com base nas afirmações do autor, esteja presente o binômio necessidade/adequação, para o autor, da tutela por ele pretendida. Ou seja, para aquilatar a presença do interesse de agir, ao verificar as alegações do autor, devem ser feitas as seguintes perguntas, partindo-se do princípio (hipotético e preliminar) que as afirmações autorais são verdadeiras: somente através da providência solicitada ele poderia satisfazer sua pretensão (necessidade da providência)? Essa providência é adequada a proporcionar tal satisfação (adequação da providência)?

Dessa forma, pode-se afirmar, com segurança, que o Juiz, mesmo sem conhecer o princípio, toda vez que analisa as condições da ação está aplicando, ainda que inconscientemente, duas facetas da proporcionalidade em sentido lato.

A par disso, o próprio Código de Processo Civil cuida, em alguns casos, de exigir a aplicação do princípio da proporcionalidade.

É o que ocorre, por exemplo, nos casos do art. 620:

"art. 620. Quando por vários meios o credor puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor" (grifamos).

Assim, nesse caso, o juiz deverá, necessariamente, utilizar o princípio da proporcionalidade, na sua dimensão de exigibilidade, que é conhecido pelos processualistas com o nome de "princípio da menor onerosidade". Aliás, já se decidiu, com base nesse dispositivo, que se caracteriza "como exacerbada a determinação de se proceder ao desligamento das linhas telefônicas penhoradas, se não existe qualquer indício de defraudação da garantia" (TRF 3ª, Ag. 321964, rel. Juiz Souza Pires, j. 15.10.1992, DJE SP 8.3.1993, p. 145). Aplicou-se, indubitavelmente, no caso, o princípio da proporcionalidade (vedação ao excesso).

Outro caso em que há a exigência legal de aplicação do princípio da proporcionalidade é o do art. 805 do CPC, com a redação dada pela Lei 8.952/94:

"art. 805 - A medida cautelar poderá ser substituída, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, pela prestação de caução ou outra garantia menos gravosa para o requerido, sempre que adequada e suficiente para evitar a lesão ou repará-la integralmente" - grifos nossos.

Vale relembrar que, em face da evolução operada no estudo do princípio da proporcionalidade, mormente em face de sua "aceitação constitucional", esses dois dispositivos citados são, por assim dizer, inócuos, ou pelo menos, dispensáveis, já que, quer queira quer não, a proporcionalidade há de ser observada em todos os casos, independentemente de lei exigindo sua aplicação.


4. O princípio da proporcionalidade e a relatividade dos direitos fundamentais

O princípio da proporcionalidade, conforme já assinalado, tem a função primária de preservar direitos fundamentais.

Sabe-se que os direitos fundamentais, dada a carga axiológica neles inseridas, vivem em uma tensão permanente, limitando-se reciprocamente, ou seja, ora um prevalecerá em detrimento do outro, ora ocorrerá o contrário.

De fato, as normas constitucionais de um modo geral, sobretudo as definidoras de direitos fundamentais, muitas vezes, parecem conflitantes, antagônicas até.

À primeira vista, aparentam inconciliáveis o direito fundamental à liberdade de expressão e o direito à intimidade ou privacidade. E a norma que determina que a propriedade deve cumprir a sua função social com a que diz que as terras públicas não são passíveis de usucapião, como conciliá-los? O que dizer, outrossim, do princípio à livre iniciativa e as possibilidades de monopólio estatal constitucionalmente previstas? Há, sem dúvida, constante tensão entre as normas constitucionais.

Essa tensão existente entre as normas desta espécie é conseqüência da própria carga valorativa inserta na Constituição, que, desde o seu nascedouro, incorpora, em uma sociedade pluralista, os interesses das diversas classes componentes do Poder Constituinte Originário. Esses interesses, como não poderia deixar de ser, em diversos momentos não se harmonizam entre si em virtude de representarem a vontade política de classes sociais antagônicas. Surge, então, dessa pluralidade de concepções - típica em um "Estado Democrático de Direito" que é a fórmula política adotada por nós - um estado permanente de tensão entre as normas constitucionais.

Em conseqüência disso, vê-se, sem muita dificuldade, que não há de se cogitar, num sistema constitucional democrático, a existência de direitos fundamentais absolutos, vale dizer, direitos que sempre prevalecem em detrimento de outros[10].

Se é fácil aceitar a tese de que os direitos fundamentais não são absolutos, tendo em vista que se limitam entre si, difícil é aceitar que o legislador infraconstitucional possa limitar a abrangência desse direito, que, dada a sua hierarquia constitucional, serve de fundamento de validade para a elaboração das normas inferiores (natureza normogenética das normas constitucionais).

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Porém, afigura-se de fácil assimilação compreender que, dentro do critério da proporcionalidade, os direitos fundamentais podem ser limitados pelo legislador infraconstitucional, desde que - e aqui entra a proporcionalidade - a limitação seja para preservar um outro direito fundamental.

Nesse ponto, o princípio da proporcionalidade surge como uma verdadeira arma de proteção do indivíduo contra as investidas do Poder Público, sobretudo o legiferante. Como assevera PAULO BONAVIDES, citando GRABITZ, a principal função do princípio da proporcionalidade é exercitada na esfera dos direitos fundamentais, servindo ele, antes de mais nada (e não somente para isto) à atualização e efetivação da proteção da liberdade aos direitos fundamentais[11].

Dessa maneira, ao se limitar um direito fundamental, mesmo através de uma lei infraconstitucional, esta limitação somente será legítima (e possível) se tiver por fim proteger um outro direito fundamental. Ou seja, na colisão de direitos fundamentais, o legislador poderá, desde que o faça com base no princípio da proporcionalidade, limitar o raio de abrangência de um direito fundamental, visando dar maior efetividade a outro direito fundamental. Ressalte-se que essa limitação ocorre com freqüência.

É preciso ter cuidado, porém, para não fazer com que a relatividade dos direitos fundamentais esvazie o seu conteúdo, ou seja, atinja seu núcleo essencial. O direito fundamental, dentro do seu limite essencial de atuação, é inalterável e, por isso mesmo, seu núcleo é intangível. Daí a necessidade de colocar, reflexivamente, a proporcionalidade como uma limitação à limitação dos direitos fundamentais.

Portanto, somente será possível haver limitações às normas constitucionais definidores de direitos, se - e somente se - o poder público se pautar estritamente dentro da tripla dimensão da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.

Feitas essas considerações, passemos ao estudo do direito fundamental à ação, analisando, à luz do princípio da proporcionalidade, situações em que o legislador limita esse direito.


5. O direito fundamental à ação

Em razão de o Estado, salvo raras exceções, proibir a autotutela, surge, em contrapartida, a necessidade de armar o cidadão com um instrumento capaz de levar a cabo o conflito intersubjetivo em que está envolvido. Esse direito é exercido com a movimentação do Poder Judiciário, que é o órgão incumbido de prestar a tutela jurisdicional. É direito fundamental à ação. Dessa forma, "o exercício da ação cria para o autor o direito à prestação jurisdicional, direito que é um reflexo do poder-dever do juiz de dar a referida prestação jurisdicional"[12].

Pode-se, com isso, dizer que, em síntese, o direito fundamental à ação é a faculdade garantida constitucionalmente de deduzir uma pretensão em juízo e, em virtude dessa pretensão, receber uma resposta satisfatória (sentença de mérito) e justa, respeitando-se, no mais, os princípios constitucionais do processo (contraditório, ampla defesa, motivação dos atos decisórios, juiz natural, entre outros). O direito de ação é, por assim dizer, em linhas generalíssimas, o direito de a pessoa ter his day in Court, na sugestiva denominação da Suprema Corte americana, embora não só isso.

Em sua acepção positiva, o direito à ação encontra guarida no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal de 1988: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito", sendo, portanto, corolário do princípio do amplo acesso ao Judiciário (inafastabilidade do controle jurisdicional).


6. Limitações ao direito fundamental à ação

6.1. Limitações decorrente de normas constitucionais

O direito fundamental à ação, como todo direito fundamental, não é absoluto, mas relativo, podendo ser limitado em certas ocasiões. Suas limitações ora se encontram expressas em normas constitucionais, ora em normas infraconstitucionais.

Quanto às limitações decorrentes de normas constitucionais, exemplo clássico é a questão da Justiça Desportiva.

De fato, o § 1º, do art. 217, da Constituição, determina que "o Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, reguladas em lei".

Há neste dispositivo uma clara limitação ao direito de ação, isto é, o interessado somente pode exercer o direito de ação, perante órgãos judiciais, após o esgotamento prévio da instância administrativo-desportiva, sendo que "a justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final" (§ 2º).

Após o esgotamento das instâncias na Justiça Desportiva, ou expirado o prazo de sessenta dias, aí sim a matéria poderá ser conhecida pelo Poder Judiciário de maneira plena, isto é, a decisão da instância administrativa pode ser revista sob todo e qualquer ângulo (legalidade e legitimidade).

Outra manifestação da relatividade do princípio da ação encontra-se no §2º, do art. 142, da CF/88, que determina que "não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares"[13].

Obviamente, os dois dispositivos em análise não são inconstitucionais. É que, como decorrência do princípio da unidade da Constituição, afasta-se de logo a existência de hierarquia jurídica entre qualquer norma constitucional (seja regra, seja princípio), pois todas têm igual dignidade, salvo, é óbvio, as normas elaboradas pelo legislador constituinte reformador, tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal, acertadamente, já admitiu esta possibilidade (ADIn 939), desde que sejam maculadas as garantias de eternidade (cláusulas pétreas) enumeradas no §4º do art. 60.

6.2. Limitações decorrentes de normas infraconstitucionais

Se é fácil concluir que essas limitações constitucionais ao direito de ação (i.e. à proteção judicial) não são inconstitucionais, tendo em vista o princípio da unidade da constituição, o mesmo não ocorre quando se trata de aferir a constitucionalidade de limitação infraconstitucional a esse direito.

Pode o legislador limitar o acesso ao Poder Judiciário? A própria Constituição nos responderia taxativamente: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".

Em face disso, sob uma ótica literal, qualquer tentativa legislativa de limitação ao acesso à Justiça seria maculado de inconstitucionalidade. Em outras palavras: não poderiam existir condições da ação, o mandado de segurança não estaria sujeito a prazo, não seria possível a cobrança de custas para a movimentação da máquina judiciária, a lei não poderia exigir o exaurimento da instância administrativa para a propositura da ação judicial, não se poderia exigir a garantia do juízo para propositura dos embargos e outras ações, enfim, qualquer limite seria intolerável.

Porém, todos esses exemplos que citamos ocorrem com freqüência na prática: ninguém questiona que a ação está sujeita a condições, se o mandado de segurança não for impetrado em 120 (cento e vinte) dias o direito para o fazer decairá (art. 18 da Lei 1.533/51), todos pagam custas judiciais (salvo os beneficiário da justiça gratuita e os isentos), a lei dispõe que não se dará mandado de segurança quando se tratar de recurso administrativo com efeito suspensivo, independente de caução (art. 5º, I, da Lei 1.533/51), a garantia do juízo é indispensável à propositura dos embargos à execução etc.

A rigor, numa análise gramatical, todas essas limitações seriam, de plano, inconstitucionais, pois a Constituição é bastante categórica ao determinar que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".

No entanto, nós vimos que os direitos fundamentais não são absolutos, pois, ao colidirem entre si, podem ser limitados com base no critério da proporcionalidade.

Vejamos, pois, algumas dessas limitações infraconstitucionais ao direito à ação, tentando descobrir se a limitação é proporcional ou não.

6.2.1. As condições da ação como limites ao exercício do direito fundamental à ação

Considerando que a Constituição proíbe limitações desproporcionais ao direito à ação, seria possível o legislador infraconstitucional exigir que, para exercer esse direito, sejam preenchidas certas condições (interesse de agir, legitimidade ad causam e possibilidade jurídica do pedido[14])?

Nossa resposta será aberta: depende.

Realmente, entendemos que a exigência do preenchimento de condições para o exercício do direito de ação não é, por si só, desproporcional.

É que, se por um lado, todos têm o direito de movimentar o Poder Judiciário, há, de outra parte, o direito, igualmente de todos, de não ser molestado (processado) impertinentemente.

Mais uma vez estamos diante de dois direitos fundamentais em colisão: o direito fundamental à ação e o direito fundamental à paz, isto é, de não ser processado indevidamente.

Daí, numa concordância prática[15], é pertinente (adequado) exigir que, para o exercício do direito de ação, sejam observados certos requisitos mínimos, que, de plano, indicarão se o autor, caso suas afirmações sejam verdadeiras, possa lograr êxito com a demanda. Concilia-se, com isso, os dois direitos fundamentais em colisão.

Por outro lado, não se pode olvidar que as condições da ação possuem uma alta carga ideológica, não se configurndo conceitos universais e necessários[16].

Dessa forma, ao analisar as condições da ação, o juiz não pode se apegar a formalidades excessivas e descabidas (vedação de excesso). Deve, isto sim, avaliar, no caso concreto, até que ponto valerá a pena sacrificar o direito fundamental à ação em nome das condições da ação, devendo, sempre que possível, utilizar a disposição do art. 284, caput, que lhe ordena abrir ao autor a oportunidade de emendar ou completar a inicial, sempre que ela apresente ‘defeitos e irregularidades capazes de dificultar o julgamento do mérito’.

Numa direta aplicação do princípio da proporcionalidade, o magistrado deverá ponderar se aquela ação, que, a rigor, seria "inepta", é capaz de fornecer, mesmo com dificuldades, os elementos mínimos necessários a instrumentalizar o direito de ação. Se a resposta mental for positiva, isto é, se for possível "compreender" de qualquer forma o que se deduz, o magistrado é obrigado a dar máxima efetividade ao princípio da ação. Qualquer comportamento excessivamente formalista por parte do juiz não seria legítimo, pois "os requisitos processuais devem ser interpretados no sentido mais favorável ao direito de ação, sob pena de inconstitucionalidade".

Portanto, o que se pode concluir é que o simples fato de se condicionar a ação aos requisitos de interesse de agir, legitimidade ad causam e possibilidade jurídica do pedido não é, em si, inconstitucional. A inconstitucionalidade reside numa interpretação fechada desses conceitos, apegada a formalidades individualistas não mais condizentes com os escopos sociais e políticos do processo.

Em outras palavras: as condições da ação só serão constitucionais se, em cada caso concreto, numa análise tópica e empírica-dialética, forem aplicadas pelo juiz com proporcionalidade, sempre com vistas à otimização máxima do preceito constitucional que garante o direito à ação.

6.2.2. A problemática do depósito prévio nos embargos e em outras ações (anulatória de débito fiscal, ação rescisória etc)

Situação que ocorre com certa freqüência é a legislação exigir a "segurança do juízo" para que seja exercido o direito de ação.

Exemplo típico é a exigência da garantia da instância para apresentar embargos à execução (que tem natureza de ação).

O prof. MARCELO LIMA GUERRA, aferindo a constitucionalidade de tal exigência, com base nos escritos de ANDOLINA e VIGNERA, diz que qualquer questão que diga respeito à constitucionalidade da subordinação legal do exercício do direito de ação ao atendimento de ônus patrimoniais é de ser solucionada à luz dos seguintes critérios:

a) quando de fácil cumprimento e de pequena importância, o ônus deve ser considerado inconstitucional, na medida em que criar injustificáveis obstáculos formais ao exercício do direito de ação;

b) quando o ônus é, pelo contrário, de difícil cumprimento, pode ser considerado admissível (i.e. constitucional) somente se se apresenta como condição absolutamente necessária para assegurar a realização de outros valores constitucionais considerados prevalentes ou equivalentes ao direito de ação[17].

Portanto, somente na análise de casos concretos é que será possível dizer se a garantia do juízo na execução é ou não constitucional.

A razão de não se mostrar, a priori, inconstitucional essa limitação ao direito de ação está no fato de que o processo de execução é a ambiência natural de concreção da efetividade da tutela jurisdicional. Logo, dois direitos fundamentais estariam em colisão: o direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional do possuidor do título (exeqüente) e o direito fundamental à ação do executado.

Por essa razão, a limitação ao direito de ação do executado mostrar-se-ia constitucional justamente por garantir a concreção do outro direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional executiva, que, conforme assevera BARBOSA MOREIRA, "sempre foi - e continua a ser - uma das pedras onde tropeçam os melhores propósitos de agilização". Isto porque, "estaria de alguma forma comprometida, quanto ao credor, a garantia da efetividade da tutela jurisdicional, se fosse permitido ao devedor opor, livre de qualquer exigência, embargos à execução. Recorde-se que, na sistemática do CPC, a admissão dos embargos do devedor tem o efeito de paralisar a execução"[18].

Assim, a garantia do juízo representa mesmo uma exigência inerente ao próprio direito fundamental à ação, com base na qual "se pretende pôr em xeque a constitucionalidade da garantia do juízo".

Por outro lado, há situações peculiares em que não se mostraria razoável a exigência da garantia do juízo.

Exemplo disso ocorre quando o executado não tem patrimônio disponível para "segurar o juízo", ou seja, para ser penhorado. De que adiantaria exigir que esse devedor garanta o juízo? Haveria, portanto, nessa situação, uma limitação injustificável ao direito de ação.

De fato, explica MARCELO GUERRA, "inexistindo bens penhoráveis, a segurança do juízo não representa uma garantia da ação do credor contra ‘abusos’ no exercício do direito de ação do devedor, pois o processo de execução, por razões práticas e não jurídicas, já está e deve ficar suspenso (CPC, art. 791, inc. III). Ora, se não há como, praticamente, atender ao requisito da segurança do juízo, impedir por tempo indeterminado a proposição dos embargos constitui grave e desnecessária limitação ao direito de ação do devedor"[19].

Em seguida, arremata o professor cearense:

"Assim, tendo em vista hipóteses dessa natureza, compreende-se que a segurança do juízo não apenas é totalmente inútil, na perspectiva (da efetividade) do direito de ação do credor, como também é gravemente prejudicial, na perspectiva (da efetividade) do direito de ação do devedor, por impossibilitar completamente ao executado o exercício desse direito de índole constitucional. Segue-se daí que não seria desarrazoado considerar tal exigência inconstitucional quando, na prática, se verificasse a inexistência de bens do devedor suscetíveis de penhora"[20].

Como conclusão: a garantia do juízo para a propositura dos embargos à execução somente será constitucional se na situação concreta em que for exigida mostrar-se adequada, necessária e proporcional (em sentido estrito) à própria efetividade da execução.

E naqueloutros casos em que há "ônus patrimoniais" condicionando o exercício do direito de ação, há violação ao princípio constitucional?

Vejamos duas hipóteses em que esses ônus são exigidos:

1. exigência de depósito prévio para a propositura da ação declaratória de inexistência ou anulatória de débito fiscal (art. 38 da Lei de Execuções Fiscais) e;

2. depósito de 5% sobre o valor da causa, exigido como condição de procedibilidade para o ajuizamento da ação rescisória (art. 488, II, do CPC).

No primeiro caso, a previsão encontra-se no art. 38 da Lei de Execuções Fiscais:

"art. 38. A discussão judicial da dívida ativa da Fazenda Pública só é admissível em execução, na forma desta lei, salvo as hipóteses de mandado de segurança, ação de repetição de indébito ou ação anulatória do ato declarativo da dívida, esta precedida do depósito preparatório do valor do débito, monetariamente corrigido e acrescido dos juros e multa de mora e demais encargos." - grifamos a parte que nos interessa

É a conhecida cláusula solve et repete (paga e depois discute).

A medida, sem receio de equívoco, não passa pelo "teste" da proporcionalidade. Vejamos.

Primeiramente, com vistas a aquilatar a adequação da medida, devemos saber qual o seu objetivo.

Certamente, a finalidade da exigência do depósito prévio é facilitar a cobrança posterior do crédito na hipótese de improcedência do pedido.

Vê-se, dessa forma, que é adequada a medida. Afinal, ninguém discute que ficaria bem mais cômodo para a Fazenda Pública a simples conversão em renda do depósito do que iniciar uma nova demanda executiva, que nem sempre consegue a almejada efetividade.

Passa, portanto, essa exigência do depósito prévio prevista na LEF pelo primeiro critério da proporcionalidade em sentido lato.

Por outro lado, afigura-se-nos iniludível que a medida não é a "mais suave", ou seja, não é estritamente necessária para atingir os fins almejados. Expliquemos: a Fazenda Pública dispõe de um arsenal de meios (prerrogativas processuais e materiais) para fazer com que o contribuinte pague o montante do tributo, entre os quais podem ser citados a própria execução fiscal, a inclusão do nome do devedor na "dívida ativa" (embora, em alguns casos, essa medida se mostre inconstitucional), a proibição de, em algumas hipóteses, o devedor contratar com o poder público, entre inúmeras outras.

Logo, ao exigir o depósito prévio para a propositura da ação declaratória de inexistência ou anulatória de débito fiscal, inibindo, com isso, a propositura da ação, está-se criando um meio excessivamente penoso para que se leve a cabo a cobrança do débito fiscal. O meio é adequado, mas não necessário.

Ademais, há de se anotar que o solve et repete também fere a proporcionalidade em sentido estrito. Isto porque não há direito fundamental a se proteger ao se fazer tal exigência. Em outras palavras, limita-se o direito fundamental à ação em nome de um mero interesse (secundário) da Fazenda Pública.

Dessume-se, pois, que o art. 38 da Lei de Execução Fiscal é inconstitucional por limitar, de forma irrazoável, o direito fundamental à ação. Assim, o depósito previsto no malsinado art. 38 deve ser compreendido como uma faculdade do contribuinte: depositando o montante devido, fica obstada a execução fiscal.

Nesse sentido, NELSON NÉRY JR., citando vasta jurisprudência decidindo pela inconstitucionalidade do preceito, afirmou que "constitui negativa de acesso à Justiça, com ofensa ao princípio constitucional do direito de ação, condicionar o ajuizamento de ação declaratória ou anulatória de débito fiscal ao prévio depósito do valor do débito, monetariamente corrigido, acrescido dos juros e multa de mora, como dispõe a LEF 38 numa espécie de cláusula solve et repete. O depósito não é, portanto, condição para o exercício do direito de ação declaratória ou de anulação de débito fiscal"[21].

A outra situação (exigência do depósito para a propositura da ação rescisória) tem supedâneo legal no art. 488, II, do CPC:

"art. 488. A petição inicial [da ação rescisória] será elaborada com observância dos requisitos essenciais do art. 282, devendo o autor:

II - depositar a importância de 5% (cinco por cento) sobre o valor da causa, a título de multa, caso a ação seja, por unanimidade de votos, declarada inadmissível, ou improcedente.

Parágrafo único - Não se aplica o disposto no nº II à União, ao Estado, ao Município e ao Ministério Público" - os colchetes são nossos.

Ressalte-se que, por força da súmula 175 do STJ, "descabe o depósito prévio nas ações rescisórias propostas pelo INSS".

Para aquilatar a proporcionalidade do dispositivo, é fundamental descobrir qual a sua razão de ser.

A finalidade desse depósito de 5% (cinco por cento) sobre o valor da causa, obviamente, não é garantir a efetividade da ação, tal qual ocorre na segurança do juízo para a propositura dos embargos. De fato, aqui a medida tem um caráter eminentemente sancionatório, diria mesmo inibitório ao direito à ação, pois o seu montante, caso a ação rescisória tenha seu pedido julgado improcedente por unanimidade de votos, terá o efeito de multa.

Então, pode-se dizer que o objetivo principal da exigência do depósito é mesmo inibir (limitar) o exercício do direito à ação rescisória nos casos em que esta se mostre impertinente a ponto de ser, por decisão unânime, declarada improcedente ou inadmissível.

Sendo este o objetivo, como de fato o é, percebe-se facilmente que a medida é adequada, isto é, realmente torna "menos sedutora" a propositura da ação rescisória. Afinal, aquele que pretende propor uma ação rescisória certamente pensará duas vezes antes de o fazer se considerar que o pedido será julgado improcedente por unanimidade de votos. O primeiro item da proporcionalidade, dessa forma, resta obedecido.

E é necessária a medida? Em outras palavras: é o meio mais suave de inibir a propositura da ação rescisória? Afigura-se-nos que sim.

Realmente, uma das soluções para inibir completamente a propositura da ação rescisória seria simplesmente proibi-la. Nesse caso, certamente teríamos um excesso. Porém, ao se estipular uma multa de 5% (cinco por cento) sobre o valor da causa, consegue-se desestimular o exercício do direito de propor a ação rescisória, sem, contudo, inibi-lo completamente, ou seja, sem atingir seu núcleo substancial. Caso a multa fosse, por exemplo, de 1% (um por cento), o meio seria, sem dúvida, mais suave, no entanto, não seria adequado, vez que não teria o condão de desestimular a propositura da ação.

Por outro lado, entendemos que, em alguns casos, em que, por exemplo, o valor da causa seja muito elevado, ou então na hipótese de o autor da ação rescisória não ter condições financeiras para pagar a multa, esse percentual pode e deve ser diminuído, pois, do contrário, não se estaria sendo proporcional, vez que se estaria inibindo completamente o exercício do direito fundamental à ação.

Quanto à presença ou não da proporcionalidade em sentido estrito, é preciso analisar se há algum outro direito fundamental em jogo capaz de justificar a medida.

A ação rescisória, como é cediço, tem por finalidade desconstituir uma sentença (ou acórdão) de mérito da qual não se caibam mais recursos, ou seja, visa justamente atacar a coisa julgada material.

Ora, uma das principais metas da Jurisdição é exatamente dirimir conflitos em definitivo. Não seria, portanto, muito lógico permitir-se que a coisa julgada material fosse, a qualquer tempo, questionada. Daí ser perfeitamente justificável a proibição de formação de um novo processo com os mesmos elementos (parte, pedido e causa de pedir) daqueloutro já atingido pela coisa julgada material, salvo nas excepcionais hipóteses taxativamente elencadas no Código de Processo Civil (art. 485).

Dessa forma, há um motivo proporcional em sentido estrito para não se estimular a propositura da ação rescisória. Isto é, há um direito fundamental (à segurança jurídica proveniente da coisa julgada material) hábil a justificar a limitação ao direito fundamental à ação. Em virtude dessa constatação, inegável é que há uma proporcionalidade em sentido estrito na criação de mecanismos capazes de inibir a propositura da ação rescisória.

Observa-se, com isso, que as limitações ao direito de ação provenientes de ônus patrimoniais são possíveis, desde que sejam proporcionais (adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito).

6.2.3. O prazo decadencial de 120 para a propositura do mandado de segurança

Questão que atormentou - e ainda atormenta - os juristas é a problemática do prazo de 120 para a propositura do mandado de segurança, sob pena de decadência do direito de impetrar o remédio constitucional.

Tal limitação à propositura do mandado de segurança é prevista no art. 18 da Lei 1.533/51:

"art. 18. O direito de requerer mandado de segurança extinguir-se-á decorridos cento e vinte dias contados da ciência, pelo interessado, do ato impugnado".

Muitos juristas defendem a inconstitucionalidade do preceito, pois "os requisitos para o exercício da garantia fundamental do MS estão enumeradas na CF 5º, LXIX. Não pode a lei ordinária criar outros requisitos que limitem o exercício desse direito. A norma da LMS 18, que estipula o prazo de 120 dias para a impetração do MS, não foi recepcionada pela nova ordem constitucional, sendo ineficaz e inaplicável"[22].

Observa-se que a grande maioria dos autores que entendem ser o prazo do art. 18 é inconstitucional baseia-se no fato de que o exercício do mandado de segurança é um direito fundamental absoluto e, portanto, a lei ordinária não poderia limitá-lo.

De nossa parte, entendemos que o preceito insculpido no art. 18 da Lei do Mandado de Segurança, justamente por se tratar de uma limitação a um direito fundamental, deve ser analisado à luz dos critérios fornecidos pelo princípio da proporcionalidade, pois sabemos que não existem direitos fundamentais absolutos. Vejamos, pois, se o preceito passa pelo "teste" da proporcionalidade.

Primeiramente, há de se perquirir a finalidade do dispositivo para que seja aferida a adequação entre meio e fim, o primeiro subprincípio da proporcionalidade.

A instituição de um prazo para a impetração do mandado de segurança tem por função precípua dar uma maior segurança ao próprio exercício do writ, pois, como explica FRANCISCO WILDO LACERDA DANTAS, "decorre mesmo da própria natureza do direito cujo exercício se impede ou se ameaça, descabendo à Constituição disciplinar exercícios de direitos ou vedar que se estabeleçam prazos para eles, sob pena de, ao admitir-se que se possa impetrar o mandado de segurança, indefinidamente, se crie uma situação de insegurança, com o que não se compadece o direito"[23].

Assim, considerando as peculiaridades inerentes à própria natureza da ação mandamental, como, por exemplo, a necessidade de se fazer prova pré-constituída, a existência de um direito líquido e certo etc, o estabelecimento de um prazo de 120 dias para a impetração do writ of mandamus seria pertinente. Com isso, se não houvesse a limitação ao uso do mandado de segurança, a Administração permaneceria eternamente sujeita ao controle do Poder Judiciário, uma vez que a qualquer momento poder-se-ia impetrar o writ, o que geraria uma situação de insegurança jurídica. Este é o argumento de quem entende ser constitucional o referido prazo.

No nosso entender, porém, não há adequação no preceito ora vergastado. É que, se por um lado, a impetração do mandado de segurança estaria impedida após a decorrência dos cento e vinte dias previstos na lei, por outro lado, é igualmente certo que o titular do direito líquido e certo poderia, da mesma forma, socorrer-se às vias ordinárias para conseguir exatamente o mesmo direito. Ou seja, o direito assegurado pela Constituição à impetração do mandado de segurança só se extinguiria com o perecimento do próprio direito material invocado, pela decadência ou prescrição, e não pelo decurso de um prazo criado pela lei. Que segurança traria, então, esta limitação temporal? Absolutamente nenhuma. Como assevera o Min. CARLOS VELLOSO,

"(...) ajuíza-se uma ação de segurança, comprovando-se, documentalmente, os fatos. Poderá o juiz, então, fazer incidir sobre os fatos a norma de direito positivo e verificar se, de tal incidência, nasce o direito. No momento de fazer isto, entretanto, verifica o juiz que o writ foi requerido no 121º dia. Decidirá, então, pela decadência do direito à impetração, mandando o impetrante para as vias ordinárias. O que vai acontecer: na via ordinária, repetir-se-á a mesma petição, serão juntados os mesmos documentos, não será marcada audiência, porque não haveria necessidade de se fazerem novas provas. Ora, isto é científico? É claro que não. Isto não presta obséquio ao princípio da economia processual que comanda todo o processo"[24].

Assim, sob o aspecto da adequação entre meio e fim, o preceito do art. 18 da Lei 1.533/51 malferiria o princípio da proporcionalidade.

Por outro lado, caso se considere que há relação de pertinência na adoção da medida, o que se diz apenas para concluir o raciocínio, parece inarredável que o prazo de 120 dias conseguiria passar pelo segundo aspecto da proporcionalidade lato senso, qual seja, a vedação do excesso.

No caso em questão, o excesso deve ser analisado negativamente, isto é, quanto menor o prazo para a propositura do mandado de segurança maior seria o excesso, o abuso. Assim, se o prazo fosse de 10, 15 ou 20 dias aí sim haveria malferimento à proporcionalidade (vedação ao excesso), pois seria praticamente impossível impetrar a segurança em um período de tempo tão exíguo. Em outras palavras: o estabelecimento de um prazo não poderia tornar impossível, ou melhor, não poderia atingir o núcleo essencial do direito à impetração.

Na hipótese, o prazo de 120 dias não é excessivamente curto, pois permite perfeitamente a propositura do remédio heróico.

Já quanto ao último aspecto da razoabilidade, não há a menor dúvida: o art. 18 da Lei do Mandado de Segurança não é proporcional em sentido estrito. Em outras palavra: os benefícios obtidos com a adoção do prazo de 120 para a propositura do writ são infinitamente menores do que os prejuízos dele advindos.

Realmente, ao se limitar o direito fundamental à impetração do mandado de segurança de forma diferenciada, não se tem em mira proteger um outro direito fundamental, mas tão-somente facilitar a defesa da autoridade tida como coatora, donde se conclui que não é razoável a medida, pois os danos causados (limitação ao direito fundamental do impetrante) não são compatíveis com os resultados obtidos.

O Supremo Tribunal Federal, contudo, já se manifestou em sentido contrário, ou seja, já decidiu que o prazo de 120 para a propositura do mandado de segurança é constitucional (Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 21362-DF. Primeira Turma. Relator Senhor Ministro CELSO DE MELLO. Acórdão de 14 de abril de 1992; Recurso Extraordinário em Mandado de Segurança nº 21.364-RJ. 2ª Turma. Relator Senhor Ministro CARLOS VELLOSO. Acórdão de 23/06/92).

Em conclusão: a despeito do posicionamento do Pretório Excelso, tem-se que o art. 18 da Lei do Mandado de Segurança é inconstitucional, pois não é adequado, muito menos proporcional em sentido estrito, embora não seja "excessivo" (excessivamente exíguo, entenda-se).

6.2.4. O prévio exaurimento da instância administrativa para a propositura do mandado de segurança e outras ações

Outra questão problemática no que se refere à limitação ao direito de ação é a necessidade do prévio exaurimento da instância administrativa para a impetração do mandado de segurança e outras ações.

Segundo NELSON NERY JR., "não pode a lei infraconstitucional condicionar o acesso ao Poder Judiciário ao esgotamento da via administrativa, como ocorria no sistema revogado (CF/67, 153, §4º). Não é de acolher-se alegação da fazenda pública, em ação judicial, de que não foram esgotadas as vias administrativas para obter-se o provimento que se deseja em juízo (RP 60/224)".

De fato, à primeira vista, mostra-se irrazoável, ou melhor, desproporcional exigir-se o esgotamento prévio da instância administrativa para, somente empós, socorrer-se ao Judiciário. Ou seja, no instante em que o direito é violado, as portas da Justiça devem estar prontamente abertas para prestar efetivamente a tutela jurisdicional.

Por outro lado, há situações em que o não esgotamento das vias administrativas realmente teriam o condão de impedir a propositura da ação, sem que, com isso, esteja-se limitando o acesso à Justiça.

É, por exemplo, o caso do art. 5º, inc. I, da Lei do Mandado de Segurança, que estipula: "não se dará mandado de segurança quando se tratar de ato de que caiba recurso administrativo com efeito suspensivo, independente de caução".

Nesse caso, na hipótese de o ato impugnado ser comissivo e o impetrante tenha preferido esgotar as vias administrativas, parece incabível o mandado de segurança para atacar o mesmo ato de que caiba recurso administrativo com efeito suspensivo, independente de caução. É que não há o interesse de agir, afinal há necessidade de que "o ato impugnado seja operante e exeqüível. O que não pode ocorrer é a utilização, ao mesmo tempo, do recurso administrativo com efeito suspensivo e do mandado de segurança, por isso que, interposto o recurso administrativo com efeito suspensivo, o ato deixa de ser operante e exeqüível" (Tribunal Federal de Recursos, Quarta Turma, Apelação em Mandado de Segurança n. 89.104-RJ, Relator Ministro Carlos Velloso).

Porém, no caso de o ato impugnado ser omissivo, aplica-se a Súmula 429 do Supremo Tribunal Federal: "a existência de recurso administrativo com efeito suspensivo não impede o uso do mandado de segurança contra omissão da autoridade"[25].

No mais, a Jurisprudência é pacífica quanto à desnecessidade do exaurimento da instância administrativa como condição para o exercício do direito de ação, conforme se pode observar nestas súmulas por nós coletadas:

Súmula 89 do Superior Tribunal de Justiça - "a ação acidentária prescinde do exaurimento da via administrativa"[26].

Súmula 213 do Tribunal Federal de Recursos - "o exaurimento da via administrativa não é condição para a propositura de ação de natureza previdenciária".

Súmula 9 do Tribunal Regional Federal da 3ª Região - "em matéria previdenciária, torna-se desnecessário o prévio exaurimento da via administrativa, como condição de ajuizamento da ação".

6.2.5 A perempção e o direito fundamental à ação

A perempção, como se sabe, é a perda do direito de ação em virtude de o processo ter sido extinto, sem julgamento do mérito, por três vezes em razão da desídia do autor, que não promoveu os atos e diligências que lhe competia, abandonando a causa por mais de 30 (trinta) dias (art. 267, III, do CPC).

Assim, na forma do §1º do art. 268 do CPC:

"Se o autor der causa, por três (3) vezes, à extinção do processo pelo fundamento previsto no n. III do artigo anterior, não poderá intentar nova ação contra o réu com o mesmo objeto, ficando-lhe ressalvada, entretanto, a possibilidade de alegar em defesa do seu direito".

Com isso, ocorrendo a perempção, a quarta ação objetivando a mesma pretensão há de ser extinta sem julgamento do mérito. Essa decisão, esgotados os recursos possíveis, faz uma forma sui generis de coisa julgada, pois, embora sem mérito, impede a propositura de uma outra ação com os mesmo elementos da primeira, ficando, entretanto, ressalvada a possibilidade de se alegar a matéria em via de defesa.

A nosso ver, a medida adotada pelo Código de Processo Civil não é proporcional, sendo, portanto, constitucionalmente inválida. É que, como visto, embora os princípios constitucionais processuais não se configurem em preceitos absolutos, quaisquer limitações a esses princípios somente serão possíveis se forem adequados, necessários e proporcionais em sentido estrito.

No caso, a medida, por visar punir o autor desidioso, certamente é adequada. Também é proporcional em sentido estrito, pois, como já dissemos, há, em contraposição ao direito à demanda, um direito fundamental de não ser processado indevidamente. Assim, haverá casos em que será melhor sacrificar o direito à ação em nome do direito à paz (e.g. a exigência de observância das condições da ação como limites ao exercício do direito de ação). Porém, conquanto a medida seja adequada e proporcional em sentido estrito, não é necessária, vale dizer é excessiva, rigorosa ao ponto de atingir o núcleo essencial do direito à ação.

Realmente, a punição prevista no parágrafo único do art. 268 impede, por completo, a apreciação da matéria, em via de ação, pelo Poder Judiciário, sendo de se questionar, inclusive, se caberá ação rescisória da terceira decisão que extingue o processo, pois, apesar de ser uma decisão sem julgamento de mérito, tem o condão de impedir a propositura de uma nova demanda. Afronta, dessa forma, o direito fundamental à ação. Em outras palavras: não é o meio mais suave de se punir o autor desidioso. Certamente, a imposição de uma multa ou outro ônus desta natureza teria o condão de punir o autor, sem contudo impossibilitar o exercício do direito de ação.

Em resumo: a perda do exercício do direito de ação pela perempção, prevista no parágrafo único do art. 268 do CPC não é constitucional, pois, conquanto seja adequada e proporcional em sentido estrito, não é necessária por ser excessiva. Ressalte-se, no entanto, que a doutrina e a jurisprudência, nas raras oportunidades em que tratam da matéria, entendem o contrário, ou seja, que não há inconstitucionalidade no preceito.

Sobre o autor
George Marmelstein Lima

Juiz Federal em Fortaleza (CE). Professor de Direito Constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, George Marmelstein. Limitações ao direito fundamental à ação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 54, 1 fev. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2627. Acesso em: 24 nov. 2024.

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