"O direito importa,
e é por isso que nos incomodamos com toda essa história"
E.P.Tompson
"Se a justiça desaparecesse,
não valeria mais a pena que os homens vivessem sobre a terra"
Kant
Uma das características marcantes do Direito do Trabalho é o "jus postulandi": a capacidade postulatória da própria parte, que pode agir no processo sem a assistência de um advogado. Fato que se reflete ao final do processo, visto que a sucumbência não implica no pagamento dos honorários advocatícios à parte vencedora. O que toma contornos dramáticos quando se pensa que o reclamante, ao ganhar o processo, deverá retirar uma parte do que lhe é devido (em geral de 20% a 30% do total da causa) para pagar os honorários advocatícios de seu patrono. Isto significa que o reclamante-vencedor é duplamente lesado: por ter o que lhe era de direito após uma longa batalha judicial, a qual ao final não lhe dará a plena reparação a que fazia juz, mas apenas 80% ou 70% daquilo que lhe era devido de direito.
Isso tudo tem apenas um sinônimo: barreira de acesso à justiça.
Analisando o hermético e erudito discurso jurídico, com o qual se articula atualmente o direito, e a classe social que é normalmente a usuária da Justiça do Trabalho (também conhecida como Justiça dos Pobres), percebe-se que o "jus postulandi" é uma falácia e uma afronta a princípios constitucionais de contraditório, isonomia e paridade de armas entre as partes. Como um leigo poderá redigir uma petição inicial obedecendo aos requisitos do art.282 do CPC, como poderá contra-arrazoar um recurso, obedecendo aos prazos processuais rigorosamente impostos pela lei e ainda enfrentar todo o ritual da instrução probatória sem estar amparado por um profissional competente e atento a todas as armadilhas processuais? Qualquer pessoa que atue na área jurídica sabe que um leigo sem advogado torna-se um personagem sem voz no processo, visto que a construção da verdade processual exige muito mais do que a posse da verdade real: exige habilidade para prová-la e construí-la aos olhos do Juiz, usando como únicas armas um bem articulado discurso jurídico, uma retórica bem elaborada e a competente compreensão das leis.
Kim Economides, discípulo de Mauro Cappelletti e Prof. da Universidade de Exeter na Inglaterra, ao participar da Conferência sobre "Cidadania" no Rio em 1996, fazendo uma análise sobre a questão do acesso à justiça, diz: "em um dos estudos considerados clássicos do movimento norte-americano direito e sociedade, Marc Galanter desenvolveu uma estrutura analítica mais rigorosa e abrangente chamando a atenção para a importante distinção entre o que ele chamou "Repeat Players" (RPs - jogadores habituais) e "One Shotters" (OSs - jogadores ocasionais). Em sua análise, Galanter contrapôs os RPs, organizações ou demandantes comerciais com experiência regular do sistema judiciário, capazes de posicioná-lo estrategicamente, aos OSs, invariavelmente consumidores individuais com pouca, ou nenhuma, experiência regular da Justiça e dos serviços jurídicos. A estes claramente faltava "competência legal" (algo mais do que o mero controle dos recursos econômicos), ou seja, a habilidade de aplicar compreensão estratégica, ou know-how tático, de modo a administrar o sistema judiciário para assegurar vantagens de longo prazo". Esse tipo de análise que compara o processo a um "jogo", no qual a participação habitual acaba por capacitar seu jogador, incrementando sua competência quanto às regras do próprio jogo, mostra que o processo exige habilidades complexas que os jogadores habituais (empresas freqüentemente demandadas em Juízo) possuem em detrimento dos jogadores ocasionais (reclamantes que desconhecem o Judiciário e demandam em Juízo pela primeira vez).
Mauro Cappelletti, em seu livro Acesso à Justiça, diz: "na maior parte das modernas sociedades, o auxílio de um advogado é essencial, senão indispensável para decifrar leis cada vez mais complexas e procedimentos misteriosos, necessários para ajuizar uma causa. Os métodos para proporcionar a assistência judiciária àqueles que não a podem custear são, por isso mesmo, vitais. Até muito recentemente, no entanto, os esquemas de assistência judiciária da maior parte dos países eram inadequados. O direito ao acesso foi, assim, reconhecido e se lhe deu algum suporte, mas o Estado não adotou qualquer atitude positiva para garanti-lo. De forma previsível, o resultado é que tais sistemas de assistência judiciária eram ineficientes".
Ovídio A. Batista da Silva, em seu livro Curso de Processo Civil, vol.1, diz: "o princípio do contraditório, por outro lado, implica um outro princípio fundamental, sem o qual ele nem sequer pode existir, que é o princípio da igualdade das partes na relação processual. Para a completa realização do princípio do contraditório, é mister que a lei assegure a efetiva igualdade das partes no processo, não bastando a formal e retórica igualdade de oportunidades. Da exigência deste requisito, como pressuposto de justiça material, decorrem todas as providências administrativas e processuais de representação e assistência aos pobres e carentes de recursos materiais, de modo a assegurar-lhes uma adequada e eficiente defesa judicial de seus direitos".
O "jus postulandi" é assim um princípio que consagra a desigualdade processual entre as partes no processo do trabalho em detrimento daquele que já se encontra numa posição de vulnerabilidade na relação jurídico-material: o reclamante.
Por tudo isso, pergunta-se: a quem interessa o "jus postulandi"? Qual seu real significado na busca da justiça material? Porque o reclamante-vencedor na Justiça do Trabalho não pode ter direito a uma reparação plena?
Piero Calamandrei falava do cruxifixo, que aparece em toda sala como "símbolo, não de fé, mas de desespero", de desconfiança para com a atuação da justiça humana."Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça". E de desesperado amor pela justiça...
Referências Bibliográficas:
CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de processo civil : processo de conhecimento, volume 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998.
CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995.