4) OS EFEITOS DA PUBLICIDADE INFANTIL E A PERSPECTIVA DE SUA LIMITAÇÃO E/OU PROIBIÇÃO:
A Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias está de posse do Projeto de Lei 5921/01, do deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), que disciplina a publicidade destinada a promover a venda de produtos infantis. Na justificativa para apresentação do projeto o deputado defende que “é preciso avaliar a relação entre publicidade e crianças” especialmente considerando-se que ela “promove uma verdadeira coação para a compra dos bens anunciados”.
A proposta funda-se na inexistência, no Brasil, de qualquer regulamentação nesse sentido, sendo que nas palavras do relator na Comissão de Defesa do Consumidor, deputado Raimundo Gomes de Mattos (PSDB-CE), que apresentou parecer favorável ao projeto “é importante criar mecanismos de proteção das crianças - alvo constante das peças publicitárias - que, não levando em conta a sua vulnerabilidade psicológica, exploram sua inexperiência e credulidade, levando-as a adquirir bens e serviços supérfluos”.
Em nossa atual sociedade tratar-se-ia de uma garantia de certa forma óbvia, mas que em um dado momento chegou a ser relativizado frente à produção e prestação de serviços em massa e de forma padronizada. Isso significa que no necessário momento de desenvolvimento e crescimento da industrialização de cada sociedade foi necessária uma maior transigência para permitir a estabilização desse novo modelo.
Entretanto, é importante compreender que em uma sociedade primária, em que os meios de produção e subsistência eram artesanais e o contato com os Fornecedores de produtos e serviços era realizado de maneira direta pelos então ‘consumidores’, a disciplina em relação à publicidade, em especial infantil, seria pontual e até certo ponto desnecessária.
A evolução que culminou na produção em massa pela sociedade capitalista, que hoje observa a quase totalidade dos produtos existentes no mercado de consumo como parte integrante desses sistemas de produção e que necessariamente sofrem com problemas decorrentes de falhas do processo produtivo, trouxe à tona novos valores e a exposição à inércia do indivíduo frente ao consumismo e à estrutura social-capitalista.
Fabíola Meira (Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. p. 243) refere-se à inércia como sendo o “estado anímico que direciona o consumidor a adquirir produtos e serviços supérfluos e desnecessários (fenômeno característico e comum da sociedade atual) e o torna ainda mais fragilizado frente às práticas comerciais adotadas no mercado de consumo”.
O comportamento humano passa, então, a ser descompromissado com a sociedade e o projeto de desenvolvimento, iniciado com base nas liberdades conquistadas pelo projeto iluminista passa a se fundar no inevitável risco que essa estrutura causa. Esse risco surge em diversas frentes, desde o próprio risco de esgotamento natural do planeta Terra[5], passando pelos riscos causados pelo desenvolvimento tecnológico, até o próprio risco de uma ruptura na própria ideia de ser humano[6].
Assim, a ideia geral de risco é inerente à própria existência humana, mas a diferença, nesse momento, é que a própria sociedade legitima o novo modelo existente em que o risco se torna um dos fundamentos das atividades humanas. Se antes a busca era justamente fugir dos riscos existentes na natureza e na sociedade, esta agora legitima uma estrutura indissociável do risco que ela causa.
Para SÉRGIO CAVALIERI FILHO[7], “o desenvolvimento tecnológico e científico, a par dos indiscutíveis benefícios que trouxe para todos nós, aumentou enormemente os riscos de consumidor, por mais paradoxal que isso possa parecer. Isto porque um só defeito de concepção, um único erro de produção pode causar danos a milhares de consumidores, uma vez que os produtos são fabricados em série, em massa, em grande quantidade”.
ULRICH BECK retrata a construção dessa Sociedade Industrial de Risco, a legitimação desse modelo outorgada pela própria sociedade, questionando, ao final, justamente se é possível estabelecer uma sustentação ética para esse novo cenário existente. O descompromisso social afirmado no parágrafo anterior é tratado por Beck como uma “cumplicidade geral” que resulta em uma “irresponsabilidade generalizada”, justamente o ‘estado anímico’ mencionado pela Profa. Fabíola.
É exatamente nesse contexto que surge o grande problema do sistema atual: a informação a ser fornecida acerca dos riscos inerentes aos produtos e serviços, as informações a serem fornecidas no momento da oferta e os riscos decorrentes da própria publicidade do produto. A publicidade surge como um campo fértil decorrente da liberdade de expressão e da cumplicidade da sociedade civil ávida por cada novidade proposta pelo mercado.
É nesse âmbito que a publicidade nasce sem limites, amparada pela atuação aética da própria indústria e do mercado, tendo como limite norteador a própria aceitação social sobre ela. Esse modelo, apesar de sofrer algum abalo decorrente dos Estados intervencionistas, sobrevive hoje com facilidade e, no Brasil, para citar o exemplo mais próximo, a regulamentação e repressão à publicidade que extrapola os limites socialmente aceitos é privada e possui pouco ou nenhum intervencionismo estatal.
E se há um expressivo e desconhecido risco decorrente da inércia da sociedade acerca dessa constante exposição, a situação das crianças é ainda mais grave e carecedor de intervenção, pois ao contrário dos indivíduos plenamente capazes, é possível apontar com segurança que as crianças não possuem discernimento e capacidade intelectiva de compreender e racionalizar as informações publicitárias que lhe são destinadas.
Em casos extremos e de alto potencial lesivo já há regramento específico e atuação estatal (sobrepondo-se, então, à autorregulamentação): são as publicidades de bebidas alcoólicas e cigarros, que já possuem restrição de horários e tipos de mídias, deixando de expor as crianças e adolescentes ao risco inerente a esses produtos.
Entretanto, aqui cabe um questionamento pertinente ao tema desenvolvido: tratando-se a criança de hipossuficiente e sem capacidade de compreensão sobre riscos, todo e qualquer produto, mesmo aqueles que ostentem mero risco inerente de que trata o artigo 8º do CDC, serão potencialmente nocivos e enquadrados no artigo 10º do CDC? Deverá, frente ao problema, haver limitação a toda e qualquer publicidade a crianças e adolescentes visando impedir o abuso a suas deficiências de julgamento e incapacidade de compreensão?
Tal modelo, como dito acima, seria mais conservador e permitiria sua abertura na medida em que restasse demonstrada a possibilidade de direcionamento de material publicitário às crianças. Isso garantiria a implementação efetiva dos princípios da precaução (incerteza de dano) e da prevenção (conhecimento científico do risco). A alternativa a tal modelo seria iniciar a restrição de acordo com o princípio da prevenção, afastando-se das crianças e adolescentes aqueles riscos que já se tem conhecimento, mantendo-se a incerteza acerca dos efeitos dos demais materiais apresentados às crianças e à compressão que elas terão dos mesmos.
Diante dos temas tratados é possível afirmar que a crescente pretensão de proibição à publicidade destinada às crianças decorre da consciência da sociedade civil ao novo agir ético estabelecido ao longo da última década, em reflexo direto das alterações legislativas que passaram a proteger e tutelar efetivamente os direitos individuais, ainda que em detrimento do necessário desenvolvimento econômico.
Com vistas ao rompimento do comportamento inercial observado pela população ao longo do período de crescimento do regime capitalista, a sociedade civil hoje pretende ocupar aos poucos o espaço concedido à publicidade como definidora do próprio ser humano, e o primeiro passo para isso é mediante a proteção daqueles que sequer têm condições de fazer tal escolha.
Seja mediante a integral ruptura, como propõe o Projeto de Lei 5921/01, seja mediante a possibilidade de efetiva participação da sociedade da definição dos limites da atuação do mercado publicitário voltado às crianças, a realidade hoje observada é de nascimento de um novo limite ético que deverá amparar um crescimento saudável, livre de interferências do modelo capitalista e da agressividade consumista observada atualmente.
BIBLIOGRAFIA
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SODRÉ, Marcelo Gomes. A Construção do Direito do Consumidor: Um Estudo sobre as Origens das Leis Principiológicas de Defesa do Consumidor. São Paulo: Atlas. 2009.
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__________. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. Marcelo Gomes Sodré, Fabíola Meira, Patrícia Caldeira (coordenadores). 1ª ed. São Paulo: Editora Verbatim, 2009.
Notas
[1]Era dos Extremos: o Breve Século XX: 1914 – 1991. 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras. 1994. p. 284.
[2]A Construção do Direito do Consumidor: Um Estudo sobre as Origens das Leis Principiológicas de Defesa do Consumidor. São Paulo: Atlas. 2009. p .21.
[3]Teoria Geral dos Contratos Típicos e Atípicos. São Paulo: Editora Atlas, 2002, p. 26.
[4] A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 13. Ed. São Paulo: Malheiros. 2008. p. 216.
[5] Rachel Carson aponta em seu livro Primavera Silenciosa que “temia que a tecnologia estivesse avançando em uma trajetória mais rápida do que o senso de responsabilidade moral da humanidade”, em clara preocupação com a segurança dos avanços tecnológicos e a proteção às demais formas de vida existentes no planeta, inevitavelmente ligadas a um necessário equilíbrio do próprio ecossistema.
[6] Esse é um dos fundamentos propostos por Hans Jonas para a criação de um modelo ético aplicável não somente às relações privadas, mas que também abarque os atos coletivos e a estabilidade social, afastando-se, com isso, o risco de extinção do modelo de sociedade e/ou humanidade tal qual os conhecemos hoje, definido pelo autor como uma “mudança da natureza do agir humano”.
[7]Programa de Direito do Consumidor. São Paulo: Atlas. 2008. p. 212.