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O Judiciário contra as máscaras societárias no direito de família: a desconsideração inversa da personalidade jurídica

Agenda 05/01/2014 às 11:50

Para o STJ, é possível desconsiderar a personalidade jurídica de uma sociedade empresária para responder por dívidas de outras, inclusive em fase de cumprimento de sentença.

I – INTRODUÇÃO

A desconsideração inversa da personalidade jurídica tem sido utilizada para reprimir condutas de fraude à lei nas variadas searas do direito, sendo objeto do presente artigo: a) julgado do Tribunal de Justiça de Santa Catarina sobre caso complexo que envolveu uma verdadeira “metamorfose empresarial”; e b) a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre a utilização de complexas formas societárias para desviar patrimônio e prejudicar credores.


II – A DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA: TJSC E STJ

O poder judiciário tem ficado atento às manobras jurídicas de pessoas físicas e jurídicas que pretendem fraudar a lei, forjar situações para se escusar de dívidas, tudo para se enriquecer de forma ilícita e acintosamente prejudicar credores.

A criatividade nas relações jurídicas não tem limite quando o objetivo é enriquecer a qualquer custo e inclusive há quem use de falso arranjo jurídico para criar crédito tido pela lei como preferencial (arts. 955 a 965 do CC).

É contra essas investidas que atentam contra a segurança das relações jurídicas, que afrontam diversas normas, que surge a desconsideração inversa da personalidade jurídica como técnica para recuperar a credibilidade no poder judiciário e a esperança na justiça.

A alegação de que o artigo 50 do Código Civil somente permitiria responsabilizar o sócio da pessoa jurídica, e não o inverso, não tem sido acolhida pelos tribunais. É o que se vê do recente julgado do Superior Tribunal de Justiça, recurso especial 1.236.916/RS, julgado em 22/10/2013, de relatoria ministra Nancy Andrighi. É do aresto mencionado, verbis:

01. A desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio.

02. Conquanto a consequência de sua aplicação seja inversa, sua razão de ser é a mesma da desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita: combater a utilização indevida do ente societário por seus sócios. Em sua forma inversa, mostra-se como um instrumento hábil para combater a prática de transferência de bens para a pessoa jurídica sobre o qual o devedor detém controle, evitando com isso a excussão de seu patrimônio pessoal.

03. Na seara doutrinária, quem primeiramente tratou do tema, foi o Prof. Fábio Konder Comparato, em sua obra "O Poder de Controle na Sociedade Anônima" (Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008), da qual se extrai o seguinte ensinamento:

Aliás, a desconsideração da personalidade jurídica não atua apenas no sentido da responsabilidade do controlador por dívidas da sociedade controlada, mas também em sentido inverso, ou seja, no da responsabilidade desta última por atos do seu controlador. A jurisprudência americana, por exemplo, já firmou o princípio de que os contratos celebrados pelo sócio único, ou pelo acionista largamente majoritário, em benefício da companhia, mesmo quando não foi a sociedade formalmente parte do negócio, obrigam o patrimônio social, uma vez demonstrada a confusão patrimonial de facto. (p. 464)

04. Na mesma senda, o entendimento de Fábio Ulhoa Coelho:

Em síntese, a desconsideração é utilizada como instrumento para responsabilizar sócio por dívida formalmente imputada à sociedade. Também é possível, contudo, o inverso: desconsiderar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizá-la por obrigação de sócio (Bastid-David-Luchaire, 1960:47). (Curso de Direito Comercial, volume 2: direito de empresa , 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 65) (g.n.)

Conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça no recurso especial 1.259.018/SP, relatado pela ministra Nancy Andrighi, publicado em 15/08/2011, a verificação da existência de coligação entre sociedades empresárias pode ser feita com base em elementos fáticos que demonstrem a efetiva influência de um grupo societário nas decisões do outro, independentemente de se constatar a existência de participação no capital social.

Na hipótese de fraude para desvio de patrimônio de sociedade falida, em prejuízo da massa de credores, perpetrada mediante a utilização de complexas formas societárias, é possível utilizar a técnica da desconsideração da personalidade jurídica com nova roupagem, de modo a atingir o patrimônio de todos os envolvidos.

A título de exemplo prático de complexa análise e conjuntura, tem-se o recente julgado o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, agravo de instrumento n. 2013.029781-6, de Blumenau, de relatoria do Desembargador Rodrigo Cunha, publicado no DJe de 17/12/2013, cujo trecho ora se transcreve:

In casu, nada obstante as ponderações aduzidas pela agravante, percuciente análise e cotejo à robusta prova documental carreada aos autos resta induvidosamente comprovado, sem o menor resquício de dúvida, que a sociedade empresária agravante tem como sócios as pessoas naturais de AAA, BBB e a pessoa jurídica CCC LTDA, esta última integrada pelos mesmos sócios já nominados (fl. 402), bem como por outros familiares com participação societária simbólica, evidenciando a inequívoca confusão patrimonial entre sociedades e sócios e, mais ainda, aflorando o manifesto propósito de fraudar credores quando, no curso da execução, a sociedade empresária CCC, detentora de 1.152 quotas da sociedade empresária devedora, ora agravante, no valor total de R$ 1.152.000,00, veio a transferi-las para terceiro, pelo inexpressivo valor de R$ 1,00 (um real), como demonstra a alteração social de fls. 311-312 e 314-316, culminando em sua retirada do quadro social.

Curiosamente, após a alienação das cotas sociais da sociedade empresarial agravante, a sociedade empresária alienante, CCC, alterou seu quadro societário e sua razão social para DDD (fl. 328), passando a realizar a mesma atividade da agravante, no mesmo endereço em que esta se encontrava sediada valendo-se, para tanto, de um simulacro de contrato de locação tendo, já agora, como sócios, a pessoa natural de FFF e a pessoa jurídica EEE LTDA, esta integrada por GGG (sócio com participação social simbólica na empresa CCC LTDA – fl. 402) e FFF, em uma tentativa evidente de frustrar o cumprimento das obrigações financeiras contraída pela agravante, ao engendrar verdadeira metamorfose empresarial.

Impende salientar ainda que, na mesma época em que constituída a sociedade empresária DDD LTDA, veio também a ser constituída a sociedade empresária denominada EEE LTDA, figurando nesta como sócios as pessoas naturais de HHH (fls. 125-128), bem como III, tendo referida empresa não só o mesmo objeto social, como também o mesmo endereço da ora agravante.

Fato digno de nota e que não pode passar despercebido, se constitui na correspondência eletrônica acostada às fls. 352/354, através da qual a sociedade DDD LTDA confirma a aquisição da empresa EEE, caracterizando típica sucessão empresarial de fato que, aliada à assertiva contida nas próprias razões do agravo interposto confessando, Gabinete Des. Rodrigo Cunha expressamente “que parte dos empregados da SACOPLÁS foram transferidos para a DDD" (fl. 17) deixa às escancaras, sem rebuço, o esvaziamento patrimonial da ora agravante.

Deste modo, possível verificar, diante do farto conjunto probatório, tal qual dito no Decisório hostilizado, a existência de uma série de alterações e mudança societária de forma planejada, no sentido de 'desresponsabilização' da Executada, mudanças estas que ocorreram de forma sincronizada visando o esvaziamento de responsáveis pela empresa Sacoplás (sic) pelo que, nenhum reparo está a merecer o provimento judicial que desconsiderou a personalidade jurídica da agravante, dada a flagrante confusão patrimonial, decorrente não só da identidade de atividades e estabelecimentos comerciais, como também pelos laços familiares existentes entre os sócios, o que possibilita a inclusão de todas as sociedades integrantes do grupo econômico no polo passivo do cumprimento de sentença instaurado tendo, sobre a matéria, assim já se posicionado em data recente este Pretório, verbis:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. EMBARGOS DE TERCEIROS. PENHORA DOS BENS PERTENCENTES A AGRAVANTE. EMPRESA EXECUTADA E EMBARGANTE QUE POSSUEM IDENTIDADE DE SÓCIOS, ATIVIDADE ECONÔMICA E FUNCIONÁRIOS. APLICAÇÃO DA TEORIA DA APARÊNCIA.

RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO. "Quando duas ou mais empresas possuem ligação bastante significativa, com identidade de sócios e semelhança nos objetivos, ao ponto de não se fugir a constatação de que se trata de uma coisa só, deve-se aplicar a teoria da aparência e encará-las como partes integrantes de um único organismo. [...]". (AI n. 2013.023438-8, rel. Des. Saul Steil, j. 10-9-2013).

Diante de tal circunstância, conheço e nego provimento ao recurso.

Via de consequência, revogo a antecipação da tutela recursal deferida em sede de delibação sumária em favor da agravante (fls. 73/78). (g.n., omitidos alguns nomes)

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A jurisprudência Superior Tribunal de Justiça externa entendimento pacífico quanto à possibilidade de desconsiderar a personalidade jurídica de uma sociedade empresária para responder por dívidas de outras, sendo que tal procedimento pode ser adotado, inclusive, em fase de cumprimento de sentença. Entende, ainda, que "a falta de citação da empresa cuja personalidade foi desconsiderada, por si só, não induz nulidade, capaz de ser reconhecida apenas nos casos de efetivo prejuízo ao exercício da defesa, inexistente na hipótese." (cf. AgRg no AREsp 316038/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 15/08/2013, DJe 27/08/2013; e REsp 1253383/MT, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/06/2012, DJe 05/10/2012).

São outros precedentes do STJ sobre o tema:

PROCESSO CIVIL. FALÊNCIA. EXTENSÃO DE EFEITOS. SOCIEDADES COLIGADAS. POSSIBILIDADE. AÇÃO AUTÔNOMA. DESNECESSIDADE. DECISÃO INAUDITA ALTERA PARTE. VIABILIDADE. RECURSO IMPROVIDO.

1. Em situação na qual dois grupos econômicos, unidos em torno de um  propósito comum, promovem uma cadeia de negócios formalmente lícitos mas com intuito substancial de desviar patrimônio de empresa em situação pré-falimentar, é necessário que o Poder Judiciário também inove sua atuação, no intuito de encontrar meios eficazes de reverter as manobras lesivas, punindo e responsabilizando os envolvidos.

2. É possível ao juízo antecipar a decisão de estender os efeitos de sociedade falida a empresas coligadas na hipótese em que, verificando claro conluio para prejudicar credores, há transferência de bens para desvio patrimonial. Inexiste nulidade no exercício diferido do direito de defesa nessas hipóteses.

3. A extensão da falência a sociedades coligadas pode ser feita independentemente da instauração de processo autônomo. A verificação da existência de coligação entre sociedades pode ser feita com base em elementos fáticos que demonstrem a efetiva influência de um grupo societário nas decisões do outro, independentemente de se constatar a existência de participação no capital social.

4. Na hipótese de fraude para desvio de patrimônio de sociedade falida, em prejuízo da massa de credores, perpetrada mediante a utilização de complexas formas societárias, é possível utilizar a técnica da desconsideração da personalidade jurídica com nova roupagem, de modo a atingir o patrimônio de todos os envolvidos.

5. Recurso especial não provido.

(REsp 1259018/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 09/08/2011, DJe 25/08/2011)

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. CONFUSÃO PATRIMONIAL. CABIMENTO. EMPRESAS PERTENCENTES AO MESMO GRUPO ECONÔMICO. DIVISÃO MERAMENTE FORMAL. CITAÇÃO DAS DEMAIS EMPRESAS. DISPENSA. RECONHECIMENTO DE QUE, NA PRÁTICA, SE TRATAVA DO MESMO ORGANISMO EMPRESARIAL.

1. A alegação de ofensa ao art. 535 do CPC deve ser afastada, porquanto deduzida de forma genérica no recurso, sem a indicação dos pontos acerca dos quais deveria o acórdão ter-se manifestado. No particular, incide a Súmula n. 284/STF.

2. A tese de que os executados não foram intimados a falar sobre os documentos que deram ensejo à constrição patrimonial não foi objeto de prequestionamento no acórdão recorrido, circunstância que atrai a incidência da Súmula n. 211/STJ.

3. A confusão patrimonial existente entre sócios e a empresa devedora ou entre esta e outras conglomeradas pode ensejar a desconsideração da personalidade jurídica, na hipótese de ser meramente formal a divisão societária entre empresas conjugadas. Precedentes.

4. A superação da pessoa jurídica afirma-se como um incidente processual e não como um processo incidente. No caso, o reconhecimento da confusão patrimonial é absolutamente contraditório com a pretendida citação das demais sociedades, pois, ou bem se determina a citação de todas as empresas atingidas pela penhora, ou bem se reconhece a confusão patrimonial e se afirma que se trata, na prática, de pessoa jurídica única, bastando, por isso, uma única citação. Havendo reconhecimento da confusão, descabe a segunda providência.

5. Ademais, o recurso foi interposto exatamente pelos devedores que foram citados no processo de execução, circunstância que também afasta a pretensão recursal.

6. Não obstante a controvérsia tenha se instalado anteriormente à Lei n. 11.382/2006, é evidente a frustração da execução do crédito em razão da ineficácia de outros meios de constrição patrimonial, de modo que é cabível a penhora on line sobre os ativos financeiros do devedor.

7. Recurso especial não provido.

(REsp 907.915/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 07/06/2011, DJe 27/06/2011)


III – CONCLUSÃO

É remansosa a jurisprudência Superior Tribunal de Justiça quanto à possibilidade de desconsiderar a personalidade jurídica de uma sociedade empresária para responder por dívidas de outras, sendo que tal procedimento pode ser adotado inclusive em fase de cumprimento de sentença, por interpretação teleológica do artigo 50 do Código Civil, em procedimento mais simples, célere e eficaz do que o instituto de fraude a credores.


IV – REFERÊNCIAS

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1236916/RS. Relatora: Min. Nancy Andrighi. Julgamento em 22/10/2013. Publicação em 28/11/2013.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1259018/SP. Relatora: Min. Nancy Andrighi. Publicação em 15/08/2011.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1259018/SP. Relatora: Min. Nancy Andrighi. Publicação em 25/08/2011.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 316038/SP. Relator: Min. Luis Felipe Salomão. Julgamento 15/08/2013. Publicação em 27/08/2013.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 907.915/SP. Relator: Min. Luis Felipe Salomão. Julgamento 07/06/2011. Publicação em 27/06/2011.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1253383/MT. Relator: Min. Ricardo Villas Boas Cueva. Julgamento 12/06/2012. Publicação em 05/10/2012.

BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de instrumento n. 2013.029781-6, de Blumenau. Des. Relator: Rodrigo Cunha. Publicado no DJe de 17/12/2013.

Sobre a autora
Suzana Gastaldi

Procuradora Federal junto à Procuradoria Federal no Estado do Paraná. Especialista em Direito e Processo do Trabalho. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GASTALDI, Suzana. O Judiciário contra as máscaras societárias no direito de família: a desconsideração inversa da personalidade jurídica . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3840, 5 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26329. Acesso em: 22 dez. 2024.

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