No dia da mentira, de 2014, lamentamos os 50 anos do Golpe Militar de 1964 e muitas e grandes lições foram-nos passadas por todos aqueles que se empenharam no combate aos crimes legitimados pelo Estado, com a retaguarda jurídica do famigerado AI-5 (Ato Institucional nº 5). Uma dessas lições permite que vejamos atualmente, tanto quanto se via no passado, alguns limites e ausências do direito como instrumento de enfrentamento e de metamorfose da realidade global.
Todo regime de exceção permite que se veja o direito para além do direito, ou seja, o direito como poder – mas, o poder nu, que se projeta diretamente das redes de comando e desmando. Não é incomum, portanto, que sob o manto do positivismo e do pragmatismo jurídico se escondam as mais graves e dilacerantes ações contra o direito e como mitigação violenta da Justiça Global. A soberania jurídica do Estado de Exceção está nas hostes do poder e não nos princípios gerais do direito.
O positivismo jurídico sob o Estado de Exceção se assenta na falsa identificação da legitimidade à legalidade (como se toda lei ordenada pelo Estado, de cima para baixo, fosse obrigatoriamente legítima). O pragmatismo de exceção, por sua vez, condena na forma de crime de banimento e de ostracismo a investigação/ação do direito que não está a serviço do poder de exceção. Também aprendemos que um golpe no poder é sempre um golpe no direito (quando o poder é externalizado como antidireito: aquela forma jurídica que socorre à exceção e não à regra do próprio direito).
Todo direito de exceção, como refém do poder, em outra dedução lógica, não pode servir à regra de que o direito concerne à Justiça, à retidão; toda exceção dirá que o direito tem exceções e que estas servem ao poder necessário à manutenção do direito. O que não se diz no regime de exceção, contudo, é que o que se define por direito, na verdade, é antidireito, ideologia, opressão social, clausura moral em que o direito se desvia do justo para atender aos princípios inerentes daqueles que se locupletam do poder estabelecido. O direito de exceção se baseia na ilusão de que o direito deriva do Estado e que esta seria a premissa do positivismo jurídico; independentemente se este Estado foi adornado por ato ilegal de obtenção do poder (após o golpe militar) ou se é referente a uma República Democrática (antes do golpe). Portanto, há muito poder para se investigar nas ranhuras do direito, bem como já se antecipa a conclusão de que não há direito que se aparte dos princípios gerais do direito e da Justiça.
Contra o golpe se legitima o direito à revolução, uma vez que o Estado de Exceção se volta contra o maior interesse social; contra a retórica do poder de exceção se legitima a ação contra a Razão de Estado. Afinal, não há razão de ser o Estado um subversor da ordem jurídico-social democrática e se o faz, destilando o fel do antidireito, novamente, legitima-se juridicamente o direito de ação contra todos os atos de poder oriundos do golpe político-jurídico. Desse modo, sob a égide da legitimidade moral, jurídica e social, resistir à opressão e ao golpe de 1964 não era somente parte do direito à revolução, mas acima de tudo um dever democrático de se abater todas as forças que, em nome do positivismo jurídico de exceção, impetravam ações vulgares de poder abusivo.
Aprendemos com o direito que a civilização não se faz com arbítrio e violação da Justiça – não importa em nome de quê. Aprendemos com o direito que é uma obrigação moral (positivista) agir com intolerância diante de toda ameaça ou grave violação do direito (justo). O Estado de Exceção inverte a lógica jurídica (até mesmo porque se vende a ilusão negativa de que a exceção precisa virar regra); quando, em verdade, é nossa obrigação intelectual retomar o curso do raciocínio jurídico correto, apontado para o acerto. Aprendemos com o direito, por fim, que: “quem pode o mais, pode o menos” e que “a exceção desfaz a regra” (e nunca, em hipótese alguma, o contrário).
A luta pelo direito é o aprendizado de que só há direito se e quando lutamos pela lógica da Justiça. O sonho do direito se alimenta da ilusão de que a Justiça se fará igual para todos (e mesmo que o direito trate os iguais, igualmente; os desiguais, desigualmente). Não há Justiça sem ilusão, até porque não há direito na desilusão. Não há força de convencimento maior do que na retórica jurídica contra os princípios da exceção. Todo dogmatismo de exceção deve ser repelido, bem como o positivismo e o pragmatismo ingênuos que ainda se mantiveram a partir de 1964 como legados de má-fé.
1964: um Golpe na moralidade
O golpe militar desferido na calada da noite em 1964, expandido por muitas noites escuras e espessas, formulou-se como ato de terrorismo contra as liberdades e a dignidade do povo brasileiro. Em nome de um direito de Estado se praticou a barbárie e o atentado político na forma de graves crimes contra a Humanidade. Dessa fase, herdamos uma consciência deturpada do direito, do que é certo e do que deveríamos fazer, no pior exemplo do positivismo tupiniquim.
Apenas os leigos de todo gênero e os estudantes de primeiro ano de direito podem dar-se ao luxo de defender o positivismo e o pragmatismo jurídico sem saberem do que se trata. Outros ainda se sentem vangloriados por serem positivistas e - novamente sem saberem - confundem-se ao defender a lei. São legalistas e também não sabem do que se trata. Aos acadêmicos iniciantes e ao senso comum é deferível a confusão que tecem entre direito e lei - limitando o direito à lei. Mas, quanto aos demais, especialmente os magistrados, é um pecado capital. É capital porque perdem a cabeça (caput) do direito, a referência, a premissa maior, em benefício da premissa menor - que é a lei. A lei é uma parte do direito - muitas vezes nem é a principal.
O pior dessa confusão, entretanto, é que ao tomar o direito pela lei, o jurista e o juiz, em primeiro plano, afastam-se totalmente da Justiça. Como se a função principal do juiz fosse aplicar a lei e não precipuamente auferir a Justiça. O juiz que se contenta com a lei - e, infelizmente, perfazem a maioria - são legalistas. Não sabem, sequer, que a lei injusta deve ser alquebrada diante da Justiça. Há certo silogismo, mas é como se fossem tão pragmáticos que não restasse tempo ou interesse em saber o que é e que se deve discutir sobre o direito. É óbvio que diante deste quadro conceitual, cognitivo, ideológico, não há como alimentar uma consciência do que seja o direito ou o antidireito (que é quando o direito se traveste de ideologias – ou atua como ideologia propriamente dita – e socorre ao poder e não aos princípios de justiça).
O direito não é o único Princípio de Justiça, a política também pode sê-lo, se temos a luta política pela verdade, liberdade e igualdade; contudo, o direito é, por definição e mérito histórico, o Princípio de Justiça por excelência. Se o direito serve a outro propósito que não seja – nem mesmo teoricamente – à Justiça, então, trata-se do antidireito (assim como foi todo o direito nazista, do direito pós-1964 e ainda é boa parte do direito capitalista, ao priorizar a propriedade ao Bem Jurídico maior que é a vida e a dignidade da pessoa humana). O que não nos permite concluir, por óbvio, que o direito seja justo por si só. E, neste sentido, sempre haverá uma análise/avaliação subjetiva/ideológica e objetiva/política quanto ao papel social e jurisdicional perpetrado pelo direito e pelas instituições jurídicas. O que ainda nos permite concluir que o positivismo e, sobretudo, o pragmatismo, quando adotados e praticados atabalhoadamente, sem reflexão quanto aos fins, podem ser meios de grave injustiça. Exemplo disso é a percepção equivocada de que o positivismo jurídico é demarcado pelo direito positivo, imposto e regulado pelo Estado. Se não entendemos que é este o direito que deve/precisa ser confrontado com os princípios do positivismo, logo, não há direito como pressuposto do próprio positivismo jurídico: “age externamente de modo que o livre uso de teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal, é verdadeiramente uma lei que me impõe uma obrigação” (Kant em A metafísica dos Costumes). A cultura judaico-cristã passou à história com a versão de que “não se deve fazer ao outro, o que não se quer para si”; os gregos clássicos formularam a isonomia; o racionalismo-liberal do Iluminismo apregoava que “deve-se agir de acordo com a consciência, mas que a liberdade de um não obstrua a liberdade de outrem, que a fruição do direito se obstaculiza diante do direito do(a) Outro(a)”.
Por fim, se o que nos interessa é atender ao direito que se convencionou praticar, inclusive em jurisprudência (especialmente por facilidade do próprio sistema), nossa ação pragmática não é de longe o pragmatismo jurídico que deveríamos observar em regras simples, como: “o juiz deverá dar o direito, qualquer que seja o pedido”; “a Constituição democrática ampara a edificação de novos direitos”. Pragmático, positivista e justo não é o juiz ou o Judiciário que decidem sobre a maior quantidade de ações e demandas, mas sim os que atuam em favor do “melhor” direito (e este melhor direito, inclusive, pode estar na contramão das jurisprudências envelhecidas pelas manobras do poder e dos interesses não-difusos).
Muitas vezes, o “bom” positivista – aquele que tem consciência de seus atos jurídicos – defende a desobediência civil em favor do Direito à Justiça. Na mais tradicional lição da modernidade que vem da Roma antiga, a sabedoria do direito, como direito aplicado com prudência (juris prudentia), não está na crítica ao direito, mas sim na crítica à realidade que o direito instiga que se faça. O direito como ficção é o que legitima a sublevação, como direito à revolução, sempre que se faça necessário em face do injusto e do que atenta e desvirtua o direito de seu reto caminho. Esta premissa sempre esteve no raio de visão de todos os juristas que se voltaram contra o arbítrio e a retenção da Justiça a partir do Golpe Militar de 1964. Por tudo isso, foi um golpe imoral, contra qualquer moralidade que se fizesse presente no direito.