Introdução
1. Breve histórico da intolerância
A história da humanidade é pródiga em exemplos de intolerância. Na Antiguidade, por exemplo, ela normalmente tinha como base certos aspectos como diferenças socioculturais ou religiosas[1]. Estas últimas, especialmente, legitimaram movimentos como as Guerras Santas, a Inquisição e a perseguição dos judeus em diversos momentos históricos.
Entretanto, ao longo do tempo, a discriminação calcada na divisão dos seres humanos em diferentes raças assumiu proporções consideráveis, tornando-se a mais visível. Esse tipo específico de intolerância atingiu seu ápice ao obter status de política oficial de governo, como na África do Sul e em algumas regiões dos Estados Unidos da América.
O Brasil, por sua vez, não constitui exceção aos desafios sociais decorrentes do preconceito racial - estimulado e sedimentado, em grande parte, devido à escravidão adotada em suas terras a partir da colonização portuguesa. Note-se que o Brasil foi o último país do mundo a abolir oficialmente a escravatura, no ano de 1888, quando a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea.
Aliás, o progresso do capitalismo, desde suas origens remotas no mercantilismo, é apontado por diversos autores como o motor principal de nascimento e solidificação dos preconceitos raciais existentes atualmente. A necessidade incessante de lucro pelos Estados nacionais europeus diante dos meios de exploração disponíveis àquela época redundou na demanda de vasta mão-de-obra.
Em função disso, os “maiores detentores da força, os brancos europeus, acabaram por subjugar os habitantes de outros continentes, principalmente escravizando índios americanos e negros africanos”. [2] A crença na subumanidade dos nativos das colônias continuou a render frutos ao longo dos anos, sendo que:
Durante as décadas de 1850 e 1870 as ideias de raça e racismo se consolidaram na Europa. A partir dessa época, generalizou-se a crença de que certos povos, por questão de raça, não tinham a capacidade para progredir como tantos outros, e os europeus passaram a reconhecer diferenças entre os brancos e as outras raças. [3]
Ocorre que, a supremacia europeia sofreu diversos abalos, principalmente com as duas Guerras Mundiais, cujo resultado foi o enfraquecimento considerável das capacidades dos Estados da Europa em manter o controle político, econômico e social sobre as colônias ocupadas ao longo de sua expansão imperialista.
Ademais, outros fatores como a ascensão do nacionalismo asiático e africano e a emergência das superpotências EUA e União Soviética igualmente influenciaram na ocorrência do que ficou conhecido como processo de descolonização.
Uma das principais consequências da Segunda Guerra Mundial foi o fim dos grandes impérios coloniais europeus, com o processo de descolonização da Ásia e da África. Entre 1945 e 1960, conquistaram a independência mais de 40 países africanos e asiáticos, habitados por 800 milhões de pessoas, o que representava na época um quarto da população do globo. [4]
Em decorrência dessas mudanças na organização da ordem mundial, os povos dos países que lograram romper com os laços de dominação impostos durante longos anos passaram a demandar participação no cenário internacional. Eles pretendiam com isso fazer valer seus interesses e contribuíram decisivamente com a expansão dos direitos humanos.
Nesse sentido, tem-se, por exemplo, a adoção no âmbito da Organização das Nações Unidas, em 21 de dezembro de 1965, da “Convenção sobre a Eliminação De Todas As Formas De Discriminação Racial”.
De acordo com Flávia Piovesan, o referido acordo teve dentre seus precedentes históricos o ingresso de dezessete países africanos na ONU, assim como a realização da Primeira Conferência de Cúpula de Países Não Aliados que ocorreu em 1961[5].
A incorporação desse tratado pela comunidade internacional representou uma conquista para grupos populacionais anteriormente excluídos. E constitui uma das bases jurídicas mais importantes para a promoção da diversidade, seja social, cultural, econômica, política ou religiosa ao redor do mundo.
Atualmente no Brasil o tema continua a proporcionar calorosos debates, como demonstrado pela recente discussão acerca das cotas em universidades públicas, que culminou na edição da lei n. 12.711/12. A discussão chegou inclusive ao STF, que decidiu pela constitucionalidade da reserva de vagas na ADPF n. 186.
A tentativa por parte dos entes estatais para promover o desenvolvimento socioeconômico das populações historicamente oprimidas no Brasil vem de encontro ao enraizamento de práticas discriminatórias no próprio seio das instituições, fenômeno conhecido como racismo institucional.
O racismo institucional é o fracasso das instituições e das organizações em promover serviço profissional e adequado às pessoas, em decorrência de sua cor, cultura, origem racial ou étnica. Manifesta-se por meio de normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano de trabalho (PNUD, 2006).
Naturalizadas nas estruturas e nos procedimentos das organizações, as práticas discriminatórias que caracterizam o racismo institucional impedem que as políticas universais nas instituições públicas sejam de fato igualitárias, atendendo, de forma diferenciada, grupos historicamente discriminados na nossa sociedade. [6]
E ainda que durante muito tempo tenha reinado e ainda reine no país a crença na existência de uma democracia racial, a realidade é que as pessoas consideradas não brancas no Brasil enfrentam grandes obstáculos na busca por real igualdade no país.
Muito se fala em cordialidade racial e democracia racial e de crença no Brasil. Tende-se a negar a existência das discriminações e dos preconceitos, ou minorar suas consequências, atribuindo os atos deles decorrentes a obra de pequenos grupos, ou entendendo as ocorrências como casos isolados. Outra vertente tende a considerar indivisível o preconceito de classe e os preconceitos de raça ou cor. Assim sendo, negros, índios e mestiços, na grande maioria, pertencentes às classes socioeconômicas mais baixas, sofreriam apenas indiretamente os reflexos da discriminação e do preconceito racial, de cor ou étnico. [7]
Registre-se que os dados do Censo de 2010 realizado pelo IBGE mostram que embora as pessoas que se consideram pretas ou pardas constituam a maioria da população (50,7%), as taxas de analfabetismo são maiores nesses grupos do que entre brancos e amarelos, além de ser a renda média daqueles, menor do que a desses últimos [8].
Tal quadro indica a persistência da desigualdade iniciada com a escravidão, e reforça a perspectiva de que a discriminação e o preconceito raciais produzem resultados concretos sobre diversos aspectos da qualidade de vida das pessoas afetadas.
Contudo, cabe ressaltar que a resposta social tendo em vista o combate a essa conjuntura pode ocorrer por diferentes meios:
Se as manifestações do problema são de diversas ordens, as possibilidades de medidas para enfrentá-lo também são muitas – podem envolver estratégias com escopos distintos e também distintos tipos de ações, incluindo ou não o Estado e o direito. Podemos, por exemplo, pensar tanto em ações voltadas à valorização da estética e da cultura afro-brasileira, como ações voltadas especificamente à correção do quadro de desigualdade econômico-social, como também respostas sancionatórias a práticas racistas ou discriminatórias. [9]
Apesar da existência de distintas modalidades de ação para a diminuição ou extinção de sistemas e comportamentos racialmente excludentes, o Brasil optou historicamente pela ótica jurídica. Sendo que “desde o início da articulação do movimento negro, as estratégias de combate ao racismo levaram em consideração o direito e, em especial, o direito como instrumento sancionatório” [10].
2. Objetivo e estrutura do trabalho.
O foco do presente trabalho recai no tratamento jurídico-penal dispensado à questão da discriminação racial no Brasil. Em especial, diante da criminalização expressa da prática do racismo pela Constituição Federal brasileira de 1988, em seu artigo 5°, inciso XLII, que estipula: “a prática do racismo constitui crime inafiançável, imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;”.
Tendo em vista essa proposta, o primeiro capítulo inicia-se com uma identificação dos conceitos de discriminação, preconceito, raça, racismo e cor. Além disso, examinar-se-á a relevante interpretação acerca do tema que ocorreu no bojo do julgamento do Habeas Corpus n° 82.424, pelo Supremo Tribunal Federal, em 2003.
Ainda no primeiro capítulo, apresenta-se um histórico sobre o racismo no Brasil, sob o ponto de vista das cartas constitucionais adotadas anteriormente a 1988, juntamente com a legislação ordinária editada ao longo dos anos, que de alguma forma trata do tema.
Mais à frente, no segundo capítulo, o objeto principal de análise é a atual Constituição Federal, promulgada em 1988. Em função disso, detém-se sobre os diversos mandados expressos de criminalização constantes na Carta Maior, dentre eles, o da prática do racismo. Ademais, são identificadas as leis penais do período pós-88.
Em seguida, no terceiro capítulo, a atenção é voltada para o detalhamento dos elementos que compõem o dispositivo constitucional de criminalização da prática do racismo. Nesse sentido, são abordadas as questões pertinentes à imprescritibilidade, à inafiançabilidade e à pena privativa de liberdade de reclusão.
Adiante, o quarto capítulo é dedicado à análise do principal diploma legal no tratamento penal da discriminação racial, qual seja, a lei n. 7.716/89. Nesse contexto, serão abordados os principais elementos dos tipos penais presente nessa legislação.
No quinto capítulo, inicia-se a abordagem da discriminação do ponto de vista das disposições constantes do texto do Código Penal, em especial, no que tange ao crime de plágio motivado pelo preconceito do art. 149, §2º, inciso II.
O citado enfoque é complementado no sexto capítulo, oportunidade na qual é realizado o exame da injúria qualificada por elementos discriminatórios. Neste ponto, são investigadas as convergências e divergências possíveis entre esse tipo de injúria e o crime de prática de racismo.
A título de conclusãoserão considerados os elementos trazidos ao longo do trabalho, assim como da doutrina e jurisprudência pátrias no sentido de determinar quais as perspectivas no que tange à aplicação das restrições constitucionais incidentes sobre o crime de racismo.
Capítulo I – Noções preliminares sobre preconceito e discriminação.
1. Os conceitos mais relevantes.
Inicialmente, para que seja possível uma análise coerente do tema, os conceitos de preconceito, racismo, discriminação, raça e cor apresentam-se como essenciais. Em vista disso, especificar-se-ão em seguida as definições desses vocábulos que serão utilizadas por todo o texto.
1.1. Preconceito
O preconceito pode ser conceituado como “formulação de ideia ou ideias (que por vezes alicerçam atitudes concretas), calcadas em concepções prévias que não foram objeto de uma reflexão devida ou que foram elaboradas a partir de ideias deturpadas”. [11]
1.2. Racismo
O racismo é uma doutrina que sustenta a superioridade de algumas raças ou grupos sobre outros tidos como inferiores a partir de determinados parâmetros preestabelecidos, ou seja, uma doutrina baseada no preconceito. Logo, tem-se que o racismo é um produto do preconceito, assim como um propagador do mesmo.
A ideologia do racismo não se centra na ciência ou em uma necessidade imperativa da verdade: ela é em si uma verdade, uma verdade de um pequeno grupo que, pela força ou pelo convencimento (da repetição ou da cooptação), se torna imposta como verdade legítima de todo um grupo social. [12]
1.3. Discriminação
O termo discriminação encontra as seguintes caracterizações: “1. Ato ou efeito de discriminar. 2. Tratamento preconceituoso dado a certas categorias sociais, raciais, etc.” [13] Em função disso, discriminação está relacionada com o verbo discriminar que reflete a ação de diferenciar, distinguir ou discernir.
Contudo, é digno de atenção o fato de que a diferenciação de algo ou de um indivíduo não traduz necessariamente a realização de uma conduta negativa. Nesse sentido, o artigo I, item 4 da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial dispõe que:
4. Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas como o único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que, tais medidas não conduzam, em consequência , à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sidos alcançados os seus objetivos. (grifos nossos)
Diante do exposto até o momento, resta evidente que a discriminação negativa tem como força motriz algum tipo de preconceito e pode ser também levada a cabo em certos casos com base nos pensamentos da doutrina racista.
Quando o ato de discriminar é baseado em preconceito, os termos discriminação e preconceito se tornam intercambiáveis. Em razão disso, esses termos são utilizados em diversos momentos como sinônimos ao longo do trabalho.
1.4. Cor
A palavra cor evidencia um fenômeno físico, que no âmbito do tema aqui tratado é “empregado para definição da pigmentação epidérmica dos seres humanos” [14]. No entanto, é muito comum a sua confusão com o termo raça, podendo cor ser até mesmo um eufemismo para o mesmo.
Assim, se, por preconceito ou discriminação, for negado emprego a um negro e a mesma vaga for concedida (por exemplificação improvável) a um membro da raça negra, albino, estar-se-á diante de preconceito de cor, e não de raça. [15]
1.5. Etnia
Por fim, o vocábulo etnia igualmente constitui desafio interpretativo, podendo adquirir diversos significados a depender da definição dada. No entendimento de Ricardo Andreucci, trata-se de “coletividade de indivíduos que se diferencia por sua especificidade sociocultural, refletida principalmente na língua, religião e maneiras de agir” [16].
1.6. Raça
A definição do que seja raça no que se refere aos diversos grupos humanos já desfrutou de maior relevância no mundo científico, mas atualmente, a partir da nova ótica proporcionada pelo mapeamento do genoma humano, a tendência tem sido no sentido da inexistência de raças dentro da espécie humana.
Contudo, antes mesmo do mapeamento genético, já era altamente controversa essa diferenciação. O principal problema encontrava-se na própria determinação de quais características físicas podiam ou deviam ser utilizadas como o parâmetro para a classificação dos seres humanos em raças.
Melhor sorte não se obteve com a tentativa de identificar as raças por marcadores genéticos no sangue. Com isso, “tanto pela antropologia física como pela genética de populações, através de estudos de frequência gênicas, é impossível delimitar as raças” [17]. Portanto, “se não é possível delimitar biologicamente as raças, sua definição terá que necessariamente ser imprecisa”. [18]
Neste ponto, cabe ressaltar a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal no que tange à abrangência dos termos raça e racismo. O posicionamento do STF sobre o tema ocorreu no julgamento do Habeas Corpus n. 82.424-2/RS.
A questão de fundo versava sobre a publicação de livros pelo paciente Siegfried Ellwanger, nos quais eram veiculadas ideias de cunho preconceituoso contra a comunidade judaica. O remédio constitucional havia sido impetrado sob o argumento de que não seria possível a aplicação da imprescritibilidade à conduta do paciente.
Ocorre que, segundo os impetrantes, uma vez que os judeus não constituiriam uma raça, eventual preconceito ou discriminação contra eles não constituiria a prática de racismo. E, inexistindo o racismo propriamente dito, a consequência seria a inaplicabilidade da restrição constitucional à prescrição da conduta.
E, embora o relator originário do processo, ministro Moreira Alves, tenha acolhido essa linha de pensamento em seu voto, o resultado final do julgamento não acompanhou sua decisão. Ao final, prevaleceu a interpretação trazida pelo ministro Maurício Corrêa, segundo a qual a incidência da imprescritibilidade era apropriada no caso concreto - o que resultou na denegação da ordem.
Por maioria, concluiu-se que os conceitos de raça e de racismo deveriam ser interpretados em sentido amplo, de modo a se assegurar a maior efetividade possível da norma constitucional, em conformidade com a adequada proteção da dignidade da pessoa humana.
Em suma, os ministros entenderam que seria imprópria a classificação de humanos em raças, pelo menos cientificamente, em razão de o mapeamento do genoma humano ter mostrado definitivamente a inexistência de diferenças biológicas significativas entre os homens, de modo que todos são biologicamente iguais.
Em função disso, a classificação dos seres humanos em raças seria necessariamente sempre o resultado “de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista.” [19]
Sendo assim, a interpretação jurídico-constitucional mais acertada do que constituiria racismo deve ser mais abrangente de modo a compatibilizar conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos e biológicos.
Embora hoje não se reconheça mais, sob o prisma científico, qualquer subdivisão da raça humana, o racismo persiste enquanto fenômeno social, o que quer dizer que a existência das diversas raças decorre de mera concepção histórica, política e social, e é ela que deve ser considerada na aplicação do direito. É essa circunstância de natureza estrita e eminentemente social e não biológica que inspira a imprescritibilidade do delito previsto no inciso XLII do artigo 5º da Carta Política. [20]
Portanto, no julgamento do HC n. 82.424-2/RS, o STF determinou que os judeus são considerados histórica e socialmente como raça, e por isso, os crimes discriminatórios praticados contra eles se submetem à cláusula constitucional de imprescritibilidade, reservada para o delito de prática de racismo.
A princípio, a abordagem do Supremo sobre os elementos determinantes para a identificação do que seria uma raça, para fins de aplicação do inciso XLII do art. 5º da CRFB, permite concluir pela adoção de um conceito amplo do crime de racismo.
Em outras palavras, toda diferenciação negativa de um grupo em função de certas características comuns aos membros, pode em tese dar azo a condutas discriminatórias criminosas. Ocorre então uma possibilidade de englobamento sob o conceito de raça dos outros conceitos como cor, religião, origem e etnia.
A expansividade do conceito de racismo extraída da decisão do STF é criticada por Christiano Jorge dos Santos por incluir outros tipos de discriminação que não relativa à raça, ainda que ele reconheça que:
[...] em alguns casos, fica absolutamente indissociável a definição de raça dos conceitos de cor e etnia (na prática, revelando situações idênticas), motivo pelo qual, excepcionalmente, abarcaria o racismo o preconceito e a discriminação em virtude destas duas características, também. [21]
A priori, no entanto, a posição do STF parece seguir na esteira do que é proposto pela Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial – ratificada pelo Brasil – que no artigo primeiro define discriminação racial como:
[...] qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tem por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano, (em igualdade de condição), de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de sua vida.
E, embora, a cultura jurídica brasileira ainda apresente resistência à interpretação da legislação nacional com atenção aos tratados ratificados pelo país, essa é uma tendência que vem se ampliando. Ressalte-se inclusive, que a lei n. 9.034/95, voltada contra o crime organizado, foi por muito tempo interpretada a partir da Convenção de Palermo.
Até a elaboração da lei n. 12.694/2012, o conceito de organização criminosa era encontrado somente no art. 2º da citada convenção, diante da omissão legislativa no que tange à definição do que constituiria uma organização criminosa para a aplicação da lei antiga.
Registre-se que a acepção trazida pela Convenção antidiscriminatória foi também reproduzida na lei n. 12.888/2010, que institui o Estatuto da Igualdade Racial, o que indica que o caminho adotado no Brasil é efetivamente um no qual o termo raça abrangeria todos os outros elementos já estudados.
Entretanto, é preciso notar que a interpretação trazida pelo STF foi centrada na avaliação de que os judeus podiam ser vítimas de crime da prática de racismo uma vez que eles eram considerados historicamente como uma raça. Logo, não cabe a princípio asseverar que em ulteriores casos, envolvendo outros grupos sociais, o Supremo apresentará uma resposta nos moldes do que foi exposto ao longo do julgamento do HC n. 82.424-2/RS.
2. O Direito e a discriminação racial no Brasil até 1988
O início da história jurídica no Brasil ocorreu com a chegada e permanência dos colonizadores portugueses ao seu território em 1500. A população indígena que habitava o território brasileiro era constituída por diversas tribos, sendo inviável se falar em leis abrangentes de todo o território, assim como é problemática a definição de eventuais regras como efetivamente jurídicas, em termos atuais.
No período conhecido como Brasil colônia, as leis vigentes no país eram as determinadas pelos portugueses, chamadas de Ordenações do Reino. Nesse momento histórico o preconceito racial era, em verdade, elemento integrante do statu quo na sociedade europeia que aqui veio residir, sendo total a legalidade da escravidão de negros e índios.
Com a independência do Brasil, em 1822, pouco mudou, não contendo o Código Criminal de 1830 nenhuma infração relativa à prática de racismo. O negro era apenas uma coisa, e qualquer agressão contra ele constituía nada mais do que um dano à propriedade, ainda que, ele pudesse ser condenado caso fosse autor de algum crime.
Mesmo após a Lei Áurea, o Código Penal adotado no início do período Republicano, em 1890, não fazia menção à discriminação racial como delito. A Consolidação das Leis Penais que veio para sistematizar as leis esparsas retificadoras desse Código, tampouco inovou no assunto.
Com o fim oficial da escravidão, o controle penal dos negros foi refinado através de regras discriminatórias de atuação reflexa sobre o comportamento desse grupo. É nesse contexto que o artigo 402 do Código Penal vigente à época vedava e punia a “capoeiragem”, prática típica dos descendentes de escravos.
Somente com as constituições brasileiras de 1934 e 1946 se fizeram presentes condenações, ainda que genéricas, ao preconceito por motivo de raça. E a constituição de 1967 avançou, tendo disposto em seu artigo 150, §1º que a lei deveria punir o preconceito racial.
A disposição constitucional em 1967 consolidou a tendência de combate ao preconceito já corrente na comunidade internacional. Em especial, é necessário destacar os textos da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948), da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965) e do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966).
Contudo, já sob a Constituição de 1946, se dá a edição da primeira lei específica para punição penal da discriminação racial, a Lei Afonso Arinos (Lei n. 1.390/1951), que passou a considerar “a prática de atos resultantes de preconceito de raça, de cor, de sexo ou de estado civil” como contravenção penal.
[...] tratou-se a iniciativa de importante marco na história da defesa dos discriminados, entre outros aspectos por reconhecer oficialmente a existência de racismo no Brasil e por possibilitar a punição criminal de algumas formas de exteriorização do preconceito de raça e de cor. [22]
Entretanto, a lei sofreu diversas críticas ao longo de sua vigência, dentre elas, a estipulação da discriminação como mera contravenção e a própria tipificação, tida como pouco abrangente e de difícil aplicação aos casos concretos tendo em vista a pequena variação entre os tipos.
Alguns apontam que as limitações da lei residiriam no fato de que o anteprojeto de lei foi fruto de emotividade e improvisação por parte do parlamentar mineiro Afonso Arinos, responsável pela autoria da proposta apresentada.
De acordo com Eunice Aparecida de Jesus Prudente, “[...] esta lei teve como causa imediata a discriminação racial sofrida por seu motorista negro, que há trinta e cinco anos servia a família e que teve sua entrada barrada em uma confeitaria no Rio de Janeiro”. [23]
Na esteira da lei Afonso Arinos foram elaboradas algumas disposições legislativas que tratavam marginalmente da penalização de condutas discriminatórias em geral. Como por exemplo, as leis nº 2.889/1956 (Lei do Genocídio), nº 4.117/1962 (Código Brasileiro de Comunicações), nº 4.898/1965 (Lei do Abuso de Autoridade), nº 5.250/1967 (Lei de Imprensa), nº 5.473/1968, nº 6.001/1973 e nº 7.437/1985.
A lei n. 1.390/51 ficou em vigor até a Constituição Federal de 1988, tendo sido considerada não recepcionada pela Carta Política. Ocorre que esta exigiu do legislador infraconstitucional a definição da prática do racismo como crime, inafiançável, imprescritível e sujeito à pena de reclusão.
Tendo em vista que a lei considerava a discriminação racista como mera contravenção penal e a pena aplicável, segundo o art. 5º e incisos da LCP, era a de prisão simples, incabível sua subsistência como lei penal apta a regular a prática de racismo nos termos da CRFB/88.
A Carta de 1988 inaugurou um novo e inédito marco jurídico do combate à discriminação racial. Em função dessa nova conformação, o legislador ordinário rapidamente editou nova lei, a Lei n° 7.716, sancionada em 1989. É esse novo quadro jurídico o objeto principal do capítulo seguinte.