1. INTRODUÇÃO À ALTERAÇÃO LEGISLATIVA
Publicada no Diário Oficial da União em 05 de agosto de 2013, a Nova Lei das Organizações Criminosas, Lei 12.850/13, entrou em vigor quarenta e cinco dias depois, em 19 de setembro do mesmo ano, trazendo consigo uma enorme carga de mudanças conceituais e, sobretudo, estruturais, no que se refere ao combate ao crime organizado no Brasil. Como expresso no próprio diploma legal, a Lei se presta a conceituar a organização criminosa e dispor sobre sua investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal. Além disso, altera alguns dispositivos do nosso Código Penal, revoga expressamente a Lei nº 9.034/95 e dá outras providências.
O neófito estatuto, em consequência de suas inovações, abre um imenso leque de questionamentos acerca dos institutos ali tratados. É o ocorre com a nova conceituação de organização criminosa, quedestoa da antiga definição trazida pela Lei 12.694/12, e que diverge também do conceito trazido pela Convenção de Palermo, problemática que abordaremos detalhadamente mais adiante. O fim ou não do descontrole jurisdicional na Ação Controlada também é ponto que já alvitra certa cautela por parte dos aplicadores e intérpretes do Direito. Seguindo a mesma linha, outro tópico - que certamente aflorará debates doutrinários - diz respeito aos procedimentos relativos à Colaboração Premiada, análise esta que trataremos em tópico específico. Outrossim, sob o ponto de vista do conflito aparente de normas, no que diz respeito aos crimes de associação para o tráfico, associação criminosa e organização criminosa, nos prestaremos neste trabalho a esmiuçar as diferenças, por vezes sutis, entre os diversos institutos. Didaticamente e levantando as principais matérias trazidas pela Lei 12.850/13, abordamos com amplitude a inovação legislativa em epígrafe, transformando este projeto num verdadeira manual da temática abordada para seu leitor.
2. ORIGEM E EVOLUÇÃO DO CRIME ORGANIZADO
A ação criminal organizada remonta séculos passados, sendo reportada, entre outros, à Inglaterra do Século XVIII com a gangue de Jonathan Wild, líder de um grupo que tinha como principal objetivo saques, furtos e roubos perpetrados na capital inglesa. Nos EUA, entre as décadas de 20 e 30, com a VolsteadAct, conhecida como Lei Seca, norma que proibia a fabricação e o consumo de álcool no país, surgia Al Capone e seus gangsters contrabandeando bebidas alcoólicas, sobretudo do Canadá. Nas décadas seguintes, o crime organizado teve como escopo os jogos ilegais, a prostituição e, finalmente, na década de 70, o tráfico ilícito de entorpecentes[1].
Em cada país ou região o crime organizado recebe nomenclatura diferenciada. Na Itália, costumam chamar de Maffia os grupos que compõem o crimine organizzato. No oriente, denomina-se Tríade na China; e Yakuza no Japão. Em países como Colômbia e México são tratados como Cartel. Na Rússia são conhecidos como Bratvas. Em nosso país, os Comandos (ex. PCC, Comando Vermelho e Terceiro Comando) dominam grande parte das organizações criminosas nacionais, tendo como pilar de sustentação o tráfico de drogas. Denominações estas que não excluem, por óbvio, outras organizações, em especial as formadas pelos “colarinhos brancos”, geralmente inominadas, mas que representam perigo igual, se não pior, à coletividade e à ordem jurídica posta.
Nos dias atuais, as organizações criminosas têm demonstrado significativo aumento de estruturação, organização, capital e grau de influência em órgãos do estado. O célebre cineasta, escritor e roteirista norte-americano Woody Allen bem resumiu a atual situação: “O crime organizado na América rende 40 bilhões de dólares. É muito dinheiro, principalmente quando se considera que a Máfia quase não tem despesas de escritório”. São, portanto, verdadeiras empresas, atuando de forma globalizada, refinadamente, aliciando – por vezes - detentores de altas patentes do serviço público, hierarquizando formalmente as operações, atuando por trás de empresas de fachada ou até mesmo de companhias fantasmas. Agem em conjunto com o poder público, sorrateiramente, ou com grupos de criminosos privados, ostensivos e violentos, mas que, de uma forma ou de outra, tem como objetivo final a obtenção de vantagem financeira ilícita. São um verdadeiro “câncer” na sociedade.
Temos, pois, uma economia globalizada, um crime organizado e, de outro lado, uma legislação nacional e internacional essencialmente desestruturada, desatualizada e falha, que não acompanhou a evolução daqueles segmentos. Hoje, pagamos o preço desse descaso e temos que verdadeiramente avançar para tentar combater a criminalidade organizada. Este, sem dúvida, é um dos propósitos da Lei 12.850/13.
3. A TRÍPLICE CONCEITUAÇÃO SOCIOLÓGICA DE FERRAJOLI
O nobre jurista e professor italiano Luigi Ferrajoli apontou, como bem apresenta Luiz Flávio Gomes[2], três grupos de crime organizado, essencialmente distintos entre si, que constituem faces de uma mesma moeda, causadores – ainda que de maneiras distintas - do mesmo mal à coletividade, conforme veremos a seguir.
3.1. Criminalidade organizada estruturada por poderes criminais privados
São os bandos violentos, os chamados grupos agressivos, que contam com substantivo poderio econômico. É o caso dos Comandos brasileiros (PCC, CV e TC). Agem formando uma verdadeira empresa exploradora de mão-de-obra local e barata (células), intimidando a população local com crueldade e demonstrações de poder bélico. Têm pouca infiltração no poder público. O principal crime cometido, fonte de sustentação do sistema ilícito, é o tráfico de drogas. Operam paralelamente ao Estado.
3.2. Criminalidade organizada estruturada por poderes econômicos privados
Utiliza-se de grandes empresas para cometer seus ilícitos, prezando, geralmente, pelo uso da não violência. Essas corporações infiltram-se no aparelho do Estado e investem mais em corrupção de agentes públicos do que em atos de violência para realizar seus ilícitos camuflados e ampliar cada vez mais seu poder. Nasce no mundo empresarial e, aos poucos, vai se incutindo dentro do poder público. Cometem, especialmente, os crimes de corrupção, lavagem de dinheiro, fraudes a licitações e crimes contra o meio ambiente. Podemos citar como atuais exemplos os casos das empresas Siemens, Alston, Bombardier e CAF. Funcionam transversalmente ao setor público.
3.3. Criminalidade organizada estruturada por agentes públicos
É o crime de colarinho branco propriamente dito, composta pelas elites, pessoas acima de qualquer suspeita, detentoras de poder de decisão do setor público. Desviam, com isso, dinheiro dos cofres públicos em benefício próprio. Praticam, sobretudo, os crimes de exploração de prestígio, tráfico de influência, lavagem de dinheiro e corrupção. Ocorre em casos como o do “Mensalão”, por exemplo. Nascem e agem dentro do setor público.
4. A EVOLUÇÃO NO CONCEITO LEGISLATIVO DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA NO BRASIL
No Brasil, há três grandes marcos conceituais para organizações criminosas. Antes, ainda em 1995, foi publicada a, hoje já revogada, Lei 9.034 que dispunha sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas. No entanto, lamentavelmente, não trazia no bojo do seu texto a definição legal de organização criminosa, ficando a cargo da doutrina tentar, sem sucesso, conceituar o instituto. Foram anos sem nenhum respaldo legal, até o surgimento de um primeiro conceito.
4.1. O CONCEITO DA CONVENÇÃO DE PALERMO
O ordenamento jurídico brasileiro esteve órfão de uma definição desde a publicação da Lei 9.034/95 até a entrada em vigor do Decreto nº 5.015 de 2004, que promulgou a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, conhecida como Convenção de Palermo, adotada em Nova York em novembro de 2000.
Embora tenha sido adotada em solo norte-americano, a Convenção de Palermo detém essa nomenclatura devido ao fato de que este instrumento internacional e multilateral teve três de quatro instrumentos assinados na cidade de Palermo, na ilha de Sicília, na Itália, tendo sido subscrito por 147 países, que se comprometeram a definir e combater o crime organizado. Na esfera da Organização dos Estados Americanos (OEA), a Convenção de Palermo foi objeto de Resolução, aprovada na XXX Assembleia Geral, contando com o apoio do Governo brasileiro.
Preceitua a dita Convenção que Grupo Criminoso Organizado é: “grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material”. Define ainda o texto da Convenção que “infração grave” refere-se aquela que “constitua infração punível com uma pena de privação de liberdade, cujo máximo não seja inferior a quatro anos ou com pena superior”; e que “grupo estruturado” diz respeito a “grupo formado de maneira não fortuita para a prática imediata de uma infração, ainda que os seus membros não tenham funções formalmente definidas, que não haja continuidade na sua composição e que não disponha de uma estrutura elaborada”.
Para boa parte da doutrina nacional, este deveria ser então o conceito a ser adotado pela ordem jurídica brasileira, aplicando-se os dispositivos previstos, sobretudo, na Lei 9.034/95. No entanto, contrariando esse entendimento, decidiu o Supremo Tribunal Federal, enfrentando o HC nº 96.007/SP, que o conceito trazido pela Convenção não deveria ser adotado para regular os procedimentos dispostos na Lei 9.034/95. Asseverou, na ocasião, o Ministro Marco Aurélio que “a definição emprestada de organização criminosa seria acrescentar à norma penal elementos inexistentes, o que seria uma intolerável tentativa de substituir o legislador, que não se expressou nesse sentido”.
Não escapou, também, a adesão deste conceito pelo ordenamento pátrio, das críticas doutrinárias. Luiz Flávio Gomes logo estampou e enumerou os vícios decorrentes deste acolhimento: em primeiro lugar, a definição de crime organizado trazida pela Convenção de Palermo é por demais ampla, genérica, e viola a garantia da taxatividade, corolário do princípio da legalidade. Em segundo, o conceito apresentado tem valor para nossas relações com o direito internacional, não com o direito interno. Por último, as definições preceituadas pelas convenções ou tratados internacionais jamais valem para reger nossas relações com o Direito penal interno em razão da exigência do princípio da democracia (ou garantia da lexpopuli)[3].
4.2. A definição legislativa na Lei 12.694 de 2012
Finalmente, em julho de 2012, surge a primeira conceituação legislativa de organizações criminosas. Trata-se da Lei 12.694 que dispõe sobre o processo e o julgamento colegiado em primeiro grau de jurisdição de crimes praticados por organizações criminosas. Essencialmente processual, a Lei não se esquivou de conceituar o tema. Reza o diploma, em seu art. 2º: “Para os efeitos desta Lei, considera-se organização criminosa a associação, de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional”.
Desta forma, notável que o legislador pátrio não adotou o mesmo conceito da Convenção de Palermo, alvitrando suaves, porém significativas, alterações. Conforme lição de Rogério Sanches Cunha[4]:
1) Modificou o rol de infrações sobre as quais podem incidir a caracterização de crime organizado, passando a ser apenas os crimes de pena máxima igual ou superior a 4 anos ou crimes, qualquer seja a pena, desde que transnacionais. O antigo conceito englobava qualquer infração penal, crimes ou contravenções, com pena máxima também igual ou superior a 4 anos e, ainda, as infrações previstas na própria Convenção.
2) O objetivo do grupo no conceito da Convenção deveria ser a obtenção de vantagem econômica ou benefício material; enquanto que na Lei 12.694/12 este objetivo seria a obtenção de vantagem de qualquer natureza, inclusive a não-econômica.
Imperioso destacar que, embora o novo conceito trazido tenha âmbito de aplicação definido como “para efeitos desta Lei”, a Doutrina não hesitou ao afirmar que essa definição não se restringia a esse instituto, abrangendo também os procedimentos previstos na Lei 9.034/95.
4.3. O novo conceito trazido pela Lei 12.850/13
Preceitua o novo estatuto que: “considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional”.
As mudanças conceituais e tipológicas inovadas pela Lei 12.850/13 são evidentes e substanciais. A saber:
1) O número mínimo de integrantes exigidos na nova compreensão legal passa a ser de 4 (quatro) pessoas, e não apenas 3 (três) como previa a lei anterior.
2) A nova definição deixa de abranger apenas crimes, passando a tratar sobre infrações penais, que incluem crimes e contravenções (art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal). Além disso, abarca infrações punidas com pena máxima superior a 4 (quatro) anos, e não mais as com pena máxima igual ou superior a este patamar.
3) A prática de crimes com pena máxima igual a 4 (quatro) anos, que incluem o furto simples (art. 155, CP), a receptação (art. 180, CP), a fraude à licitação (art. 90, Lei 8.666/90), restaram afastados da possibilidade de incidirem como crime organizado pelo novo conceito legal. Embora o contrabando e o descaminho (art. 318, CP) tenham pena máxima igual a 4 anos, estes são essencialmente transnacionais, razão pelo qual não estão excluídos na nova conceituação legal.
4) A nova compreensão legal inovou também ao estender o conceito às infrações penais previstas em Tratados Internacionais quando caracterizadas pela internacionalidade; e ainda aos grupos terroristas internacionais.
Por fim, oportuno recordar que a Lei 12.850/13 - pela primeira vez – tipificou as condutas de organização criminosa, transformando-as em crime autônomo, o que abordaremos mais profundamente em tópico específico.
4.4. Quadro-comparativo: evolução do conceito de organização criminosa
CONVENÇÃO DE PALERMO |
LEI 12.694/12 |
LEI 12.850/13 |
Grupo estruturado de três ou mais pessoas (3+). |
Associação de três ou mais pessoas (3+). |
Associação de quatro ou mais pessoas (4+). |
Existente há algum tempo e atuando concertadamente. |
Estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas. |
Estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas. |
Intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material. |
Objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza. |
Objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza. |
Propósito de cometer uma ou mais infrações graves (4+) ou enunciadas na presente convenção. |
Prática de crimes com pena máxima igual ou superior a 4 anos ou de caráter transnacional (4+). |
Prática de infrações penais com pena máxima superior a 4 anos (5+) ou de caráter transnacional. |
Infrações previstas em tratado ou convenção (internacionalidade) ou por organizações terroristas internacionais. |
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DE 2003/2004 |
DE 2012 |
DE 2013 |
4.5. Aparente coexistência entre os conceitos da Lei 12.694/12 e da Lei 12.850/13
A Lei 12.694/12, que disciplina o julgamento colegiado em primeiro grau, conceitua organização criminosa. Igualmente, a Lei 12.850/13 também traz uma definição, fato este que impulsionou parte da doutrina a se posicionar pela existência, hoje, de dois conceitos de organização criminosa coexistindo na ordem jurídica nacional.
Neste sentido, Rômulo de Andrade Moreira[5], defende que: “esta nova definição de organização criminosa difere, ainda que sutilmente, da primeira (prevista na Lei nº. 12.694/2012) em três aspectos, todos grifados por nós, o que nos leva a afirmar que hoje temos duas definições para organização criminosa: a primeira que permite ao Juiz decidir pela formação de um órgão colegiado de primeiro grau e a segunda (Lei nº. 12.850/2013) que exige uma decisão monocrática. Ademais, o primeiro conceito contenta-se com a associação de três ou mais pessoas, aplicando-se apenas aos crimes (e não às contravenções penais), além de abranger os delitos com pena máxima igual ou superior a quatro anos. A segunda exige a associação de quatro ou mais pessoas (e não três) e a pena deve ser superior a quatro anos (não igual). Ademais, a nova lei é bem mais gravosa para o agente, como veremos a seguir; logo, a distinção existe e deve ser observada”.
Em sentido contrário, ensina o ilustre professor-doutor Cezar Roberto Bitencourt[6] que: “admitir-se a existência de “dois tipos de organização criminosa” constituiria grave ameaça à segurança jurídica, além de uma discriminação injustificada, propiciando tratamento diferenciado incompatível com um Estado Democrático de Direito, na persecução dos casos que envolvam organizações criminosas. Levando em consideração, por outro lado, o disposto no §1º do art. 2º da Lei de introdução as normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/1942), lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. Nesses termos, pode-se afirmar, com absoluta segurança, que o § 1º do art. 1º da Lei 12.850/2013 revogou, a partir de sua vigência, o art. 2º da Lei 12.694/2012, na medida em que regula inteiramente, e sem ressalvas, o conceito de organização criminosa, ao passo que a lei anterior, o definia tão somente para os seus efeitos, ou seja, “para os efeitos desta lei”. Ademais, a lei posterior disciplina o instituto organização criminosa, de forma mais abrangente, completa e para todos os efeitos”.
Seguindo o posicionamento de Bitencourt, sem nenhum demérito aos argumentos contrários expostos, entendemos que a conceituação trazida pela Lei 12.694/12, e somente ela, em seu art. 2º, foi tacitamente revogada pelo §1º do art. 1º da Lei 12.850/13.