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Estrutura constitucional: justo processo

Agenda 22/02/2014 às 17:07

Para que exista um processo justo, é necessário que a legislação infraconstitucional, a sua interpretação e aplicação, parta de seu interlocutor de um ponto necessário em comum, qual seja, o respeito à Constituição Federal.

A falta de técnica e racionalidade para o deslinde de um procedimento persecutório sempre fizeram da confissão o artifício investigativo recorrente em nossos antepassados (e até nos dias de hoje), ainda que a obtenção fosse mediante tortura – isto, pois, não se buscava desvendar o crime, mas provar a existência da verdade previamente criada. Assim, aos que sabiam, tão somente era necessário descobrir no réu um culpado.

No tempo das Ordenações do Reino e, portanto, à época do julgamento dos inconfidentes, a confissão era considerada a rainha das provas, senão a única capaz de refutar outros fatos que eram postos de lado. Sendo apreciada não só como meio de prova, mas como a própria prova. Ainda hoje proporciona ao julgador certa tranquilidade para condenar o acusado sem remorso ou incerteza, ainda que inexistentes requisitos como: a verossimilhança e clareza nas declarações, consistência entre o alegado e o ocorrido, vontade livre e espontânea daquele que confessa; real obediência às diretrizes constitucionais.

Observa-se que ao existir um querer do Estado, se sobrepondo ao indivíduo, não existem limites de força e violência institucionalizada para criar decisões, o que tornaria um acaso fortuito a existência de um julgamento (in)justo. Como exemplo, basta mencionar o caso dos “Irmãos Naves”, o qual em acórdão de ação rescisória do STF restou registrado:

“Gravíssimo êrro judiciário em tôrno a um crime que, depois verificou-se inexistir, foi proclamado e reconhecido judicialmente [...] Êrro judiciário é fato imputável ao Estado pelo mau funcionamento dos órgãos da justiça, não se confunde com o caso em que a indenização é devida pela condenação criminal, em virtude de sentença judicial [...] Não se cuida de reparar simples êrro judiciário. Mas de julgado que incidiu em êrro emergente de conduta criminosa dos agentes do Estado, trazendo para os autos da ação penal provas obtidas criminalmente." (AR 749, Relator(a):  Min. THEMISTOCLES CAVALCANTI, Tribunal Pleno, julgado em 30/04/1969, DJ 22-08-1969 PP-03648 EMENT VOL-00772-01 PP-00022).

Os fatos objetos da ação penal a serem retratados em um processo de reconstrução histórica, não podem ser interpretados por um conceito fascista de processo penal, que perdido na busca por uma vitória, facilmente retratada pela busca do bem, prejudica a justiça e seu equilíbrio, que cega não vê a balança pender propositadamente. E, assim, enquanto perde seu objeto inicial, cria as sutilezas utilizadas pelos julgadores (juiz-sociedade), e leva a algo até mesmo longe da vitória. Reconstroem-se fatos, que nem sempre existiram, e pelo som oco do martelo, recebem as vestes de uma “verdade real”.

Mesmo que silenciosa, a necessidade de regras e garantias que evitem que haja uma livre disposição do processo para um uso que não seja para a justiça (leia-se evitar erros judiciários), estão todas aí, nascendo na Constituição. Ora, não há, ao menos não deveria haver, justiça do livre arbítrio e da inquisição, mas aquela (boa ou ruim, não interessa) em que o resultado seja fruto de um procedimento que respeitou as suas regras para chegar ao livre convencimento.

Duzentos e cinquenta mil reais. Essa é a quantia que a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) fixou para cada um dos proprietários da Escola de Educação Infantil Base, depredada pela população e fechada após a divulgação pela imprensa da falsa acusação de que crianças lá matriculadas eram alvo de abusos sexuais. (noticias STJ, em www.stj.jus.br).

Após a independência do Brasil, em 1822, criou-se a possibilidade de formar um ordenamento penal e processual penal próprio, pelo qual “acreditava-se na liberdade como estar a salvo do controle do Estado sobre as condutas individuais.”[1] No entanto, existiram e existem exemplos de que o (uso do) Estado nem sempre respeita os limites para evitar este controle de seus indivíduos. Grande contraste é do Regime Militar (Golpe de 1964) e seus movimentos jurídicos, como, por exemplo, o ato institucional número quatro – a fim de aprovar um texto constitucional imposto e que coroava a ampliação dos poderes do Executivo –, quando não mencionar o Ato Institucional número 5, que chegou ao extremo limite de suspender a garantia do habeas corpus para os acusados de crimes contra a segurança nacional, bem como dos crimes contra a ordem econômica e social e contra a economia popular.[2]

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Dentre estes diversos fatores, quando se busca a constituinte na década de 80, havia uma ânsia coletiva por um texto fundamental com nova ideia de direito e com regência de garantias fundamentais, pela construção de uma rede de garantias ao cidadão, para que não mais ficasse sujeito aos abusos e autoritarismos que marcaram o Regime Militar.[3]Por toda essa história, a constituição de 1988, que vigora no Brasil de hoje, nasce como “uma rede de garantias e direitos fundamentais concedidas ao cidadão, com vistas a que abusos estatais cometidos durante o governo militar não se repetissem.[4]

Ocorre que muito da legislação infraconstitucional em vigor – e aqui cabe destaque paras as codificações em matéria penal e processual penal – é anterior à Carta Magna de 1988, sem falar nas redações temerárias modernas. Por isso, a interpretação das leis conforme a Constituição Federal é um princípio basilar para uma justiça constitucional, ou, em outras palavras, permite uma orientação (guia) para interpretação das normas infraconstitucionais.[5]

[...] em face da existência de mais de uma alternativa possível de interpretação de determinado dispositivo legal, das quais uma (ou várias) implicaria a inconstitucionalidade da disposição normativa em causa, há que se optar pela alternativa de interpretação que, ao mesmo tempo que preserva a integridade do dispositivo legal, lhe atribui um sentido compatível com a constituição.[6]

Com isso, importante evitar leituras cegas e restritas ao verbo do texto legal, principalmente aos textos anteriores de 1988, pois sobrevém um necessário resguardo de orientação constitucional em sua aplicação. No âmbito do processo penal trata-se de organizar um processo idôneo à tutela dos direitos, concretizando o direito ao processo justo.[7] Ora, o “Estado Constitucional tem o dever de tutelar de forma efetiva os direitos”, e assim, se essa proteção depende do processo, ela só pode ocorrer mediante processo justo, o que significa ser a justiça (ou o justo) o meio “pelo qual se tutelam os direitos na dimensão da Constituição.[8]

Debater o que seja justiça pode levar ao desequilíbrio da balança caso não existam regras a serem observadas. Em processo penal é temerário crer na justiça real e na busca de uma verdade absoluta, mas, em nada significa reconhecer a existência de uma decisão justa, mesmo quando o justo seja diverso da ideia de justiça para uma das partes ou envolvidos no caso penal.

“O processo penal é antes de qualquer coisa um anteparo ao arbítrio do Estado e funciona como garantia de liberdade da pessoa diante do Estado[9]”. Para que exista um processo justo, é necessário que a legislação infraconstitucional, a sua interpretação e aplicação, parta de seu interlocutor de um ponto necessário em comum, qual seja, o respeito à Constituição Federal.


REFERÊNCIAS

1 BAJER, Paula. Processo penal e cidadania. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2002.

2 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: RT, 2012.

3 SARCEDO, Leandro. Politica criminal e crimes econômicos. São Paulo: Alameda, 2012.

4 SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de direito constitucional. Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marioni, Daniel Mitidiero. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.


Notas

[1] BAJER, 2002, p. 19.

[2] Sarcedo, 2012, p. 27

[3] Sarcedo, 2012, p. 33

[4] Sarcedo, 2012, p. 44.

[5] SARLET, 2013, p. 228.

[6] SARLET, 2013, p. 229.

[7] MARIONI e MITIDIERO retratam que “ao contexto cultural do Estado de Direito (Rechtsstaa, État Légal), em que o processo era concebido unicamente como um anteparo ao arbítrio estatal, ao passo que hoje o Estado Constitucional (Verassungsstaat, État de  Droit) tem por missão colaborar na realização da tutela efetiva dos direitos mediante a organização de um processo justo”, ou seja, o processo deixaria de servir a alguém ou a um interesse, e passaria a limitar e regrar seus elementos estruturantes, em especial a igualdade, paridade de armas e o contraditório. MARINONI In SARLET, 2013, p. 700.

[8] MARINONI In SARLET, 2013, p. 701.

[9] MARINONI, in SARLET, pg. 704

Sobre o autor
Frederico Cattani

* Sócio da Frederico Cattani Advocacia, que atua com foco no Direito Penal Econômico e Crimes Financeiros * Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS (Porto Alegre, RS) * Especialista em Direito Empresarial pela FSG (Caxias do Sul, RS) * Professor de Graduação e Pós-Graduação

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CATTANI, Frederico. Estrutura constitucional: justo processo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3888, 22 fev. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26747. Acesso em: 22 nov. 2024.

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