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Entre pavões e pinguins: a questão da metodologia e da pesquisa em Direito

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Agenda 13/03/2014 às 13:35

A formação dos estudantes de Direito tem sido o início de um processo de pinguinização, ou seja, todos devem agir da mesma forma, reproduzindo padrões dogmaticamente estabelecidos e parafraseando saberes que, em tese, nada têm de novo, de científico.

Resumo: A formação dos estudantes de Direito é o início de um processo de pinguinização, ou seja, todos devem agir da mesma forma, reproduzindo padrões dogmaticamente estabelecidos e parafraseando saberes que, em tese, nada têm de novo, de científico. A dogmática jurídica aparece como pretensa ciência do Direito a partir do momento em que se vê obrigada a apresentar propostas de solução aos problemas de pesquisa, sem se permitir manter no campo dos questionamentos apenas e sem dialogar com as outras disciplinas das Ciências Humanas. A maioria dos trabalhos desenvolvidos no mundo jurídico apresentam respostas como ponto de partida de uma investigação acadêmica. A partir de dogmas, os juristas passam a elaborar repetidamente explicações e princípios que justifiquem a existência dessas verdades indiscutíveis. Aponta-se para uma necessidade de mudança, a fim de inserir o Direito, efetivamente, no campo das ciências, começando pela abertura de juristas e das Faculdades de Direito ao diálogo com as outras ciências sociais. A maneira engessada e dogmática como são formados e como atuam profissionalmente os juristas brasileiros, assim como a metodologia utilizada nas pesquisas em Direito, é semelhante à forma como agem os pinguins, todos iguais, agindo da mesma maneira e exigindo que os membros do grupo assim o façam, sem se permitir questionar o porquê de ser assim. Por outro lado, diferentemente da forma negativa como é visto pelo senso comum, o pavão, neste contexto, figura como o elemento da mudança, da abertura às novas possibilidades epistemológicas.

Palavras-chave: METODOLOGIA JURÍDICA – PESQUISA EM DIREITO.


Introdução

Durante as aulas de metodologia jurídica[1], tivemos a oportunidade de refletir sobre algumas questões bastante interessantes que dizem respeito aos métodos variados de produção de conhecimento acadêmico. Dentre elas, discutimos categorias como a dogmática jurídica e a interdisciplinaridade. Discutimos também autores teóricos contemporâneos de outras áreas como a sociologia e a filosofia e analisamos a metodologia utilizada em alguns trabalhos acadêmicos de autores diversos, ligados diretamente à área do direito ou não.

  Tudo isso motivou nosso estudo voltado para a questão da metodologia e da pesquisa em direito, já que muito raramente os estudantes, especialmente na área do direito, somos levados a pensar criticamente sobre o tipo de conhecimento que se produz no mundo jurídico. Somos, na maioria das vezes, reprodutores fiéis de uma metodologia tradicionalmente estabelecida, tanto nos cursos de graduação como nos de pós-graduação. Neste ponto, somos pinguinizados. Correndo o risco de incorrermos num radicalismo questionável, comungamos com a idéia de que os juristas somos iguais na aparência, no modo de falar, no modo de estudar e no modo de produzir conhecimento jurídico.

Entretanto, eventualmente nos deparamos com alguns pavões pelo caminho e até nos assustamos com sua postura diferenciada, ousada. Pinguins e pavões são absolutamente diferentes, embora pertençam ao mesmo grupo animal.

Permitam-nos explicar brevemente o porquê e a origem do uso dessas metáforas.

O professor Luiz Alberto Warat, da Universidade de Brasília, palestrou no Seminário Direito e Cinema[2], da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, e citou a interessante expressão “processo de pinguinização”, criticando a forma unificada e insensível de se produzir o pensamento jurídico e referindo-se à necessidade de se recuperar a sensibilidade na formação dos juristas.

Partindo dessa expressão do professor Warat e seguindo o rastro da provocação que fez na sua falação, ao contar uma breve história sobre pinguins e pavões, conseguimos descobrir um livro magnífico chamado “Um pavão na terra dos pinguins”[3], fábula de autores norte-americanos, muito discutida nas áreas de ciências sociais e administração, que conta a história de um pavão que foi trabalhar na terra dos pinguins e teve que submeter-se aos modos e hábitos deles, sufocando seus próprios instintos e comprometendo sua criatividade profissional.

O que nos interessa, ao fim e ao cabo, ao considerarmos todos esses aspectos motivacionais do nosso trabalho, é dialogar com os professores Marcos Nobre, em seu estudo sobre o que é pesquisa em direito; Luiz Alberto Warat, em sua breve análise sobre o processo de formação jurídica; Luciano Oliveira, em seu estudo sobre metodologia e pesquisa nos cursos de pós-graduação em direito; Manuel Atienza, ao tratar da argumentação como um importante ingrediente da experiência jurídica e ao discutir sobre a possibilidade de um ensino científico de Direito e Cristian Courtis ao discutir a questão da pesquisa dogmática na área jurídica. Como pano de fundo, utilizaremos essa bela fábula sobre pavões e pinguins para figurar nossas reflexões teóricas sobre a metodologia e a pesquisa jurídicas.


A dogmática jurídica

O dogma é um ponto fundamental e indiscutível duma doutrina religiosa, e, por extensão, de qualquer doutrina ou sistema. Os dogmas estão presentes em muitas religiões, como o cristianismo, o judaísmo e o islamismo. No cristianismo, por exemplo, religião mais difundida no Brasil, os dogmas da Igreja Católica Apostólica Romana são amplamente reafirmados e explicados através da doutrina, que é um conjunto de princípios que servem de base a um sistema religioso, político, filosófico, científico, etc. A partir do dogma, passando pela doutrina, chegamos à dogmática, que tem como objetivo afirmar a existência de verdades certas e que se podem provar indiscutíveis. No sentido figurado, aquilo que é dogmático é entendido como autoritário. No Kantismo[4], por exemplo, o dogmatismo é a doutrina cujos princípios e proposições são aceitos de modo não crítico.[5]

A partir dessas definições, podemos perceber que a nomenclatura jurídica possui grande influência teológica. As conexões da “ciência” jurídica com a teologia são bastante claras e não é um bom sintoma observar que alguns juristas não hesitam em qualificar sua atividade como dogmática. (ATIENZA, 1978)

A dogmática jurídica, por sua vez, tem como finalidade, assim como a dogmática no campo religioso, reafirmar insistentemente seus dogmas através de textos doutrinários. A dogmática jurídica que nós temos hoje é uma ciência para confirmar, que recebe os textos e procura racionalmente torná-los utilizáveis, gozadores de autoridade e fundamento. (NOBRE, 2004. p. 78) O professor Tercio Sampaio Ferraz Jr, na conclusão de sua obra A ciência do Direito afirma que a dogmática jurídica é um corpo de doutrinas, de teorias que têm sua função básica em um “docere”. (ensinar)[6]

A Constituição, no modelo Kelseniano (teoria do escalamento do ordenamento jurídico), por exemplo, torna-se um dogma da área do saber jurídico e toda a doutrina hermenêutica que advém do texto constitucional seria considerada dogmática, ou seja, uma reafirmação e explicação do dogma. Neste ponto, podemos dizer que a dogmática jurídica difere da dogmática religiosa, pois, uma vez instituído um dogma religioso, este jamais poderá ser refutado, questionado ou modificado. No caso da Constituição, bem como das demais normas jurídicas, possibilita-se que sejam feitos questionamentos, emendadas ou modificações. O caráter dogmático do Direito, portanto, está no fato de confirmar através de textos doutrinários aquilo que é, a princípio, apresentado como verdade última e inquestionável numa norma, objetivando dar autoridade à mesma.

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Segundo Castanheira Neves (2008, p.25), filósofo do Direito português preocupado com questões contemporâneas do mundo jurídico, a dogmática jurídica é uma pretensa ciência do Direito. Esta afirmação é corroborada pelo pensamento de Manuel Atienza (1978) que critica a formação acadêmica dos juristas e questiona, a partir do ensino jurídico tradicionalmente dogmático, se seria possível um ensino científico do Direito. Atienza acredita que nas Faculdades de Direito (salvo raríssimas exceções) não se pratica uma ciência autêntica. Logo, um de nossos primeiros questionamentos neste estudo seria se o Direito é ou não uma ciência, considerando-se seu aspecto dogmático.

Para Christian Courtis (2006), a dogmática contemporânea se caracteriza por um reconhecimento gradual das afirmações axiológicas a partir das quais são efetuadas tanto a reconstrução do ordenamento normativo como a proposta de soluções interpretativas em casos problemáticos.

O professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Ronaldo Porto Macedo Jr., define a dogmática jurídica como uma tautologia imperfeita. Para ele, a imperfeição não decorre apenas das falhas de racionalização, mas também das dogmáticas analíticas mal feitas. A escolha da subsunção adequada de uma norma ou de um problema em relação a um sistema jurídico seria um enfoque privilegiado para faculdades. Verificamos o fortalecimento da importância de outros modelos de análise dogmática, notadamente o empírico e o hermenêutico. A razão para isto é a existência de dogmáticas já estabelecidas em determinadas áreas e raramente postas em xeque. Mas há outros campos em que este xeque (imperfeição tautológica) é verificado com maior intensidade – são exatamente os que mereceriam prioridade, um maior esforço de pesquisa.  (NOBRE, 2005. p.90)

Para o professor Tércio Sampaio Ferraz Jr, a questão da dogmática não passa de mera técnica jurídica, incluídos aí o trabalho dos advogados, dos juízes, dos promotores, dos legisladores, pareceristas, dentre outros. (NOBRE, 2005. p.34)

Frise-se, por fim, que nosso objetivo não é realizar profundas discussões a respeito da dogmática jurídica especificamente. Nesta primeira parte, procuramos apresentar brevemente  a visão de alguns autores sobre o tema. Mas o que nos interessa mesmo é o fato de que, no Direito dogmático, ou melhor, na dogmática jurídica, o jurista procura necessariamente partir, em seu estudo, de uma verdade indubitável, de um verdadeiro dogma, a norma jurídica, cuja aceitação é um pressuposto necessário, (ATIENZA, 1978) ao invés de procurar, num dado conjunto de material disponível, um padrão de racionalidade e inteligibilidade, para, só então, formular uma tese explicativa. (NOBRE, 2005).


O ensino e a produção acadêmica em Direito: a pinguinização.

Não são poucas as críticas feitas aos métodos utilizados na formação dos juristas e na maneira como produzem conhecimento acadêmico, principalmente nos cursos de pós-graduação.

Na terra dos pinguins, dando início ao nosso jogo alegórico, havia várias espécies de pássaros. Mas os pinguins eram respeitados e bem sucedidos e todos os pássaros queriam ser pinguins, na tentativa de alcançar sucesso profissional. Muitos desses pássaros que aspiravam ascender nas empresas dos pinguins eram encorajados a se tornar, na aparência e no modo de agir,  o mais próximo possível dos pinguins, encurtavam os passos e andavam como pinguins, usavam ternos de pinguins e seguiam o exemplo de seus líderes pinguins. O conselho dado pelos pinguins aos outros pássaros era: “Esta é a maneira como nós fazemos as coisas aqui. Se quiser ter sucesso, seja como nós.”[7]

 Os graduandos em Direito são pinguinizados logo nos primeiros períodos da faculdade. E o mais interessante disso é que a maioria deles inicia o curso sedento por experimentar este processo. Prova disso é o fato de muitos estudantes dos períodos iniciais, quando estudam as teorias, a sociologia do Direito e a filosofia do Direito, por exemplo, ficarem questionando sobre em que momento começarão a estudar Direito de verdade, ou seja, os dogmas e sua dogmática jurídica. Assim, pois, dá-se início ao sonhado processo de pinguinização dos estudantes de direito.

O ensino acrítico e dogmático oferecido pelas Faculdades, conforme qualifica Atienza, não constitui uma grande preocupação para os sujeitos que participam do processo de ensino-aprendizagem do Direito. Na sua maioria, as disciplinas que habilitam para o título de bacharel em Direito caem dentro do campo da dogmática jurídica. Diferentemente das outras áreas do conhecimento, o jurista, o “cientista” do Direito, não consegue vislumbrar um trabalho possível que não parta de um dogma, de uma verdade inquestionável que é a norma jurídica. Em que pese o reconhecimento por muitos professores da área do Direito dessa necessidade de ampliação de paradigmas, não há interesse em mudanças, afinal, os pinguins são superiores, são admirados e todos querem ser pinguins, sob pena de não serem reconhecidos no grupo. É mais ou menos como se as Faculdades de Direito se apropriassem de uma máxima popular que diz que em time que está ganhando não se mexe. Sob esta lógica, não há que se falar em necessidade de mudança curricular ou de abertura para o diálogo franco com as demais áreas do conhecimento, pois a maneira como o jogo está posto tem garantido a manutenção da autoridade das normas jurídicas. Aqui lembramos dos nossos amigos da terra dos pinguins quando dizem “Esta é a maneira como nós fazemos as coisas aqui. Se quiser ter sucesso, seja como nós.”

Com efeito, os estudantes de graduação em Direito são submetidos a uma tradição jurídica igualmente dogmática. Deixar de usar o terno de pingüim ou ousar andar a passos largos e não curtos, como os pinguins, é violar a tradição e a consequência disto será o fracasso profissional.

Cabe aqui o relato de uma experiência que tivemos na graduação em Direito. Na avaliação da disciplina Direito Tributário, um professor perguntou o seguinte: Um fazendeiro decidiu explorar uma nascente de água mineral e vender aquela água. Haverá incidência de IPI sobre o produto vendido pelo fazendeiro? Primeiramente, chamou-nos a atenção a quantidade de linhas para se responder cada questão da prova, que eram três ou quatro. Isso já induz o estudante a ser taxativo e dogmático em sua resposta. Decidimos ousar na elaboração da resposta, que foi mais ou menos assim: se o fazendeiro comercializasse a água em embalagens rotuladas, obviamente seria o caso de incidência do IPI. Mas se a água fosse vendida para grupos religiosos como água milagrosa e com embalagens artesanais, não seria o caso de incidência de IPI. Resultado: a questão foi considerada errada pelo professor, pois não era para discutir as possibilidades do caso, mas dizer sim ou não e o porquê breve. Neste sentido, nota-se que até mesmo a pergunta elaborada na prova é um dogma. Questionar sobre a limitação da resposta e apresentar soluções inovadoras é considerado uma heresia.

Não se trata de criticar os métodos de avaliação dos estudantes nas Faculdades de Direito, até porque isso pode variar em grande escala. Este exemplo, entretanto, serve para demonstrar o quanto tem importância o argumento de autoridade dos doutrinadores para os sujeitos envolvidos no processo ensino-aprendizagem do Direito. Se a resposta da questão fosse iniciada com a expressão Segundo o doutrinador fulano de tal... seria bem provável que o professor aceitasse reverencialmente a resposta.

Este desestímulo ao pensamento crítico, à elaboração de idéias com certa autonomia intelectual, também faz parte do processo de pinguinização pelo qual passam os estudantes de Direito.

Além disso, o uso dos manuais, o manualismo, ou seja, a tendência a escrever verdadeiros capítulos de manual, explicando redundantemente aquilo que todos os estudantes já estudaram outrora e discorrendo largamente sobre o significado de princípios e conceitos que são como o bê-á-bá da disciplina e o reverencialismo, que se expressa na construção da demonstração a partir do argumento de autoridade, da proximidade com o melhor direito, sem perceber que a hipótese não pode ser tratada como uma tentativa de defesa de uma causa;[8] são ingredientes que abundam na formação pinguinizante dos estudantes de Direito.

Tudo isso refletirá na maneira como os estudantes de Direito dos cursos de pós-graduação trabalharão em seus projetos de pesquisa. Talvez seja nesta etapa da vida de um estudante de Direito que ele tenha a oportunidade de se deparar com os primeiros pavões.

O pavão, como todas as outras aves, sonhava em ser pingüim, em fazer parte daquele seleto e admirável grupo de empresários bem sucedidos. Um dia, o pavão foi convidado por um pinguim para fazer parte de sua equipe. Radiante, o pavão tratou logo de se pinguinizar para seu primeiro dia de trabalho na organização dos pinguins. Vestiu um elegante terno de pinguim, escondeu seu enorme rabo colorido, passou a andar com passinhos de pinguim e foi se apresentar ao grupo. O sucesso do pavão foi imediato entre os pinguins. Todos os pinguins elogiavam a forma elegante como ele se portava, sua criatividade, sua determinação para o trabalho e suas idéias magníficas. O pavão conquistou o respeito e a admiração dos pinguins. Embora os pinguins estivessem muito contentes com o desempenho pinguinizado do pavão, este se sentia cada vez mais oprimido e infeliz. O pavão passou então a questionar-se se realmente aquele aparente sucesso profissional era o que ele desejava. Até que um dia o pavão decidiu soltar o seu enorme rabo e abri-lo em plena sala de diretores da organização dos pinguins. Tirou o seu terno de pinguim passou a se portar como um exuberante pavão. O espanto foi geral.  Vejam, ele não é como nós. Ele não age como nós. Ele não se veste como nós. Vamos expulsá-lo da nossa organização! – bradou um dos pinguins. A águia porém, há muitos anos pinguinizada e adaptada àquela condição, tentou convencer os pinguins a darem uma segunda chance ao pavão: Seria o caso de tentar pinguinizá-lo novamente e aproveitar o seu enorme talento. Mas não adiantou. O pavão preferiu ser pavão e viver em outras terras a submeter-se àquele martírio de ter de ser igual aos outros, reproduzindo cega e acriticamente o comportamento padrão dos pinguins...

Imaginemos o estudante de direito, já pinguinizado na graduação e até mesmo na pós-graduação, tendo suas primeiras experiências com pavões...

No que tange à pesquisa jurídica, sobretudo na pós-graduação, há uma certa tendência a uma “naturalização que conduz a uma aceitação acrítica de institutos e conceitos, substancializando sua essência. Com efeito, a outorga de atributos fixos, quase axiomáticos, aos conceitos jurídicos termina por emprestar uma natureza substancialista, negligenciando toda a sua dimensão construtivista! Deixa-se, assim, de perceber que esses conceitos são construtos sociais e, portanto, apresentam diferentes matizes que devem (e necessitam) ser exploradas para que se possa adequadamente evidenciar a correção da hipótese suscitada. Sem dúvida, essa perspectiva explica-se pela dinâmica presente no campo jurídico, onde os estudos efetuados estão interessados em dizer o que deve ser ou não pode ser feito, antes mesmo de saber o que é efetivamente feito! Isso é fruto de um normativismo espontâneo, que se desenvolve a partir de uma perfeita interiorização de uma representação de mundo marcada pela ordem e pela organização de normas jurídicas. Enfim, essa naturalização é fundamental para que o mundo possa tornar-se normativamente explicável!” (FRAGALE FILHO, 2007)

Podemos dialogar com o que disse o professor Fragale Filho acima, evidenciando a metáfora do pavão na terra dos pinguins. Assim, a aceitação acrítica dos institutos e conceitos no campo do estudo jurídico seria o mesmo que submeter uma gama variada de espécies de aves a aceitarem os padrões estabelecidos pelos pinguins e reproduzi-los acriticamente. Nesse mesmo sentido, valorizar o talento do pavão apenas porque ele se comporta como pinguim é deixar de perceber as diferentes matizes que devem ser exploradas para evidenciar que o sucesso profissional não está ligado exclusivamente ao seguimento de padrões engessados, ou a uma aparência harmônica, como ocorre com os juristas que partem dos pressupostos substancializados no direito para elaborar seus estudos, esquecendo-se que tais pressupostos têm sua origem em lugares que podem não ser a terra dos pinguins, ou a idéia pode não ter sido propriamente de um pinguim, como ele comodamente acreditava. Seria o caso, então, de se buscar conhecer melhor os institutos e conceitos do campo de estudo jurídico, levando-se em conta sua gênese social, partindo para além da norma jurídica, para, enfim, evidenciar adequadamente a correção de determinada hipótese suscitada. Se olharmos somente para o cenário onde o pavão se comporta como pinguim, veremos esse todo normatizado e dogmatizado. Mas um olhar mais apurado, mais científico sobre o cenário descrito, tornará possível ver que o sucesso não é algo inerente aos pinguins apenas. Há pavões, águias e outras aves nesse contexto. A norma jurídica não existe porque existe. Há elementos sociais que fazem com que ela esteja no mundo. Há que se buscar esses elementos também, ao invés de reproduzir sistematicamente o comportamento estabelecido pelos pinguins.

Nas colônias africanas da França, chamam pinguim aos africanos que vão à França formar-se em Direito para voltar às colônias e reproduzir o Direito dos colonizadores.[9] Este exemplo do professor Warat difere de certa forma da idéia metafórica que estamos explorando neste estudo. Mas, de qualquer forma, é interessante observar que a alegoria do pinguim aparece sempre associada àquilo que se faz de forma dogmática e acrítica, perpetuando e autorizando institutos e conceitos existentes.

Faz-se necessária uma marcha contra a pinguinização nas Faculdades de Direito. Temos que buscar outras concepções de direito que não sejam normativas. Precisamos recuperar a sensibilidade dos juristas para que seu olhar possa se voltar para outras áreas do conhecimento também. Mesmo quando surgem idéias novas no mundo jurídico, novas concepções de direito, logo tratamos de normatizá-las. É o caso, por exemplo, da mediação, uma aparente concepção alternativa do direito. O que fizeram com a mediação? Normatizaram-na. O mais do mesmo. Há um consenso entre muitos professores no sentido de afirmar que o normativismo está em crise. A concepção tradicional do Direito está em crise. (WARAT, 2006)

Somente a partir dos anos 90 é que passou-se a encarar essa “visão estreita do Direito”[10] como um problema. Ora, se é notória a crise instalada no campo do Direito, que caminhos devem percorrer aqueles sujeitos envolvidos diretamente com o processo ensino-aprendizagem nas Faculdades?  Se a visão do Direito tem sido estreita, o que deve ser feito para ampliá-la?

Tanto o ensino quanto a produção acadêmica do Direito estão pinguinizados. Há muitos pavões agindo como pinguins no mundo jurídico. A solução não parece estar na extinção de uma das espécies para pôr fim ao choque provável entre seres diferentes. A melhor saída para a crise deve estar na convivência harmônica das diferentes espécies na mesma organização. Pavões podem ser pavões, ostentando sua conduta exótica e colorida e contribuindo para a organização com seu talento e criatividade. Pinguins podem ser pinguins, seguindo sua tradição e, ao mesmo tempo, dialogando com os pavões e as outras aves. O resultado dessa convivência, certamente, resultará mais produtivo e mais rico.

Assim sendo, não há que se falar em fim do manualismo, do dogmatismo, do reverencialismo, etc. A abertura do Direito, tradicionalmente tão isolado das outras ciências, para as outras formas de produção de conhecimento, e, sobretudo para uma abordagem mais sociológica que puramente dogmática, facilitará bastante a transformação do ensino jurídico. Isso resultará, consequentemente, numa produção acadêmica mais qualificada.

Sobre o autor
Jorge Antonio Paes Lopes

Advogado, professor, Mestre em Direito - PPGD-UFRJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Jorge Antonio Paes. Entre pavões e pinguins: a questão da metodologia e da pesquisa em Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3907, 13 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26881. Acesso em: 22 dez. 2024.

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