Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

A técnica da inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor:

o momento adequado para a sua determinação

Exibindo página 1 de 2
Agenda 15/03/2014 às 07:07

O momento processual adequado à aplicação do art. 6º, VIII, CDC, no processo civil, é na fase de saneamento do processo, seja no procedimento ordinário, sumário, ou sumaríssimo.

Resumo:  O Código de Defesa do Consumidor prevê uma hipótese de inversão do ônus da prova, a favor do consumidor, se presentes os requisitos ali disciplinados. Há grande controvérsia na doutrina acerca do momento processual adequado para a aplicação da norma. O objetivo deste trabalho é analisar as três principais correntes doutrinárias que defendem a possibilidade de o juiz aplicar a regra ao despachar a inicial, na sentença ou na fase de saneamento do processo.

Palavras-chave: Consumidor. Inversão. Ônus. Prova. Momento.

Sumário: Introdução. 1. Ônus da prova e sua inversão. 1.1. Conceito de ônus da prova. Ônus objetivo e ônus subjetivo da prova. 1.2. Regra de julgamento e/ou regra de instrução? 1.3. A inversão do ônus da prova prevista no art. 6º, VIII, CDC: ope iudicis ou ope legis? 2. O momento adequado para a inversão do ônus da prova: posições doutrinárias e jurisprudenciais. 2.1. No despacho da petição inicial. 2.2. No julgamento da causa. 2.3. Na fase de saneamento do processo. Conclusão.


INTRODUÇÃO

Como adverte José Roberto dos Santos Bedaque (2007), deve-se conciliar, no processo, o tempo necessário a uma decisão justa com a celeridade imposta pelo interesse público, sempre na busca de alternativas em prol da efetividade. Com isso, impõe-se a releitura da técnica processual a fim de colocá-la a serviço dos escopos do processo (sociais, políticos e jurídicos), de modo que a forma não seja um fim, mas um meio para a satisfação do direito material.[1]

Bedaque (2007, p. 02) ensina que “o desenvolvimento do processo é regido por normas destinadas a ordená-lo, previamente estabelecidas e cuja observância é fundamental”. O respeitado autor ainda completa que é imprescindível a admissão com maior amplitude do diálogo entre juízes e partes (restabelecimento de ideais da oralidade), inclusive assegurando-se contraditório pleno antes de decisões aptas a serem tomadas de ofício.

É nessa perspectiva que deve ser estudada a regra prevista no art. 6°, VIII[2], do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que prevê uma hipótese de inversão do ônus da prova, a favor do consumidor, se presentes os requisitos ali disciplinados. Como bem observa Carlos Roberto Barbosa Moreira (1997), o emprego do advérbio “inclusive” no aludido dispositivo legal sugere que a inversão do ônus probatório se insere entre os vários mecanismos de “facilitação da defesa” dos direitos do consumidor.

Segundo Antônio Gidi (1996, p. 583):

“A inversão do ônus da prova em favor do consumidor é um dos meios através dos quais o direito busca atingir o seu objetivo maior de obtenção da justiça, compensando a real desigualdade em que se encontram os litigantes.”

Nessa linha, explicita José Roberto dos Santos Bedaque (2006) que o processo deve proporcionar a possibilidade de a pessoa que se encontra em situação de vantagem no plano jurídico-substancial usufruir concretamente dos efeitos dessa proteção.

Em razão da reconhecida desigualdade material existente entre consumidores e fornecedores, considerando-se a manifesta vulnerabilidade dos primeiros (art. 4º, I, CDC[3]), foi criada a citada regra do art. 6º, VIII, do CDC, suscitando, porém, infindáveis controvérsias na doutrina e na jurisprudência.

Em especial, suscita polêmica a questão relativa ao momento processual adequado para se operar a referida inversão do ônus da prova. O assunto demanda um estudo aprofundado, que parta do pressuposto de que a técnica processual deve ser dirigida à efetividade do direito material pleiteado em juízo, sem apego a formalismos exagerados, como ensina Bedaque (2007).

Assim, buscar-se-á, neste trabalho, analisar as três principais correntes doutrinárias que defendem, cada uma, a possibilidade e a adequação de o juiz aplicar a regra prevista no art. 6º, VIII, CDC, ao despachar a inicial, na sentença, ou na fase de saneamento do processo.

Para tanto, será realizada, preliminarmente, uma abordagem de temas básicos sobre o ônus da prova no processo civil para, após estabelecidas algumas premissas, identificar o momento processual adequado à inversão do onus probandi prevista no CDC, sempre tendo em vista a efetividade do processo[4] e os princípios constitucionais do devido processo legal, ampla defesa e contraditório.

Espera-se, com isso, contribuir para o estudo do tema, dada a sua importância não apenas teórica, mas sobretudo prática.

Nas palavras de José Carlos Barbosa Moreira (1984, p. 178),

“o acesso do juiz aos fatos dá-se (...) por meio da prova, e, se a maior dificuldade consiste (...) na reconstituição dos fatos, então se pode muito bem compreender que a prova seja, a mais das vezes, a encruzilhada decisiva do processo. Daí a importância do assunto (...).”


1 ÔNUS DA PROVA E SUA INVERSÃO

1.1 Conceito De Ônus Da Prova. Ônus Objetivo E Ônus Subjetivo Da Prova.

O processo implica a existência de situações jurídicas subjetivas, que se traduzem em ônus, faculdades e poderes, de onde resultam os atos praticados pelos sujeitos do processo (BEDAQUE, 2006).

Citando Carnelutti, afirma Buzaid que há ônus quando o exercício de uma faculdade é colocado como condição para se obter certa vantagem. Assim, “ônus é uma faculdade, cujo exercício é necessário para a consecução de um interesse” (BUZAID, 1972, p. 61). Dessa forma, se não exercitado o ônus, a parte apenas perde a vantagem processual que obteria se o tivesse feito (MONNERAT, 2004).

Do exposto, evidencia-se a diferença entre ônus, dever e obrigação. Como bem afirma Humberto Theodoro Júnior (2004), a parte, no processo, é livre para adimplir ou não o primeiro, com a conseqüência de vir a sofrer um dano jurídico em relação ao interesse em causa. Por outro lado, a parte não tem disponibilidade quanto às obrigações e deveres processuais, podendo ser compelida a cumpri-los, ou sofrer sanção equivalente, sendo que a obrigação importa a sujeição de alguém a uma prestação de valor econômico, ao passo que o dever não tem essa característica pecuniária.

Quanto ao ônus da prova, define Cândido Rangel Dinamarco (2004, p. 71) como o “encargo, atribuído pela lei a cada uma das partes, de demonstrar a ocorrência dos fatos de seu próprio interesse para as decisões a serem proferidas no processo”.

Acrescenta, ainda, Humberto Theodoro Júnior (2004, p. 387):

“Esse ônus consiste na conduta processual exigida da parte para que a verdade dos fatos por ela arrolados seja admitida pelo juiz.

Não há um dever de provar, nem à parte contrária assiste o direito de exigir a prova do adversário. Há um simples ônus, de modo que o litigante assume o risco de perder a causa se não provar os fatos alegados dos quais depende a existência do direito subjetivo que pretende resguardar através da tutela jurisdicional.”

Além do que foi acima exposto, deve-se ter em vista que o ônus da prova apresenta-se como um dos princípios informativos que estruturam o sistema probatório, “dotando-o de regras específicas e pré-conhecidas para a atividade probante” (ALMEIDA, 1993, p. 48 – grifo nosso). Sem dúvida, o fato de a distribuição do ônus da prova dever ser pré-conhecida às partes será de fundamental importância para se determinar o momento processual adequado para a inversão de tal ônus, como se verá adiante.

Alfredo Buzaid (1972), João Batista Lopes (2000), Munir Karam (1980), Manoel de Souza Mendes Júnior (2004), entre outros, diferenciam, a partir de ensinamentos de processualistas austríacos, o ônus objetivo do ônus subjetivo da prova.

Ensina Mendes Júnior (2004) que é subjetivo o ônus da prova no sentido de que serve de regra de conduta para as partes, predeterminando quais fatos devem ser por elas provados, estimulando, assim, suas atividades. Refere-se, portanto, à questão de saber a quem interessa produzir certa prova e qual das partes será prejudicada pela sua ausência, o que vem regulado no art. 333, CPC (Código de Processo Civil)[5].

Por outro lado, é objetivo o ônus da prova no sentido de que serve de regra de julgamento, ao permitir que o juiz decida a causa, mesmo havendo dúvida quanto à matéria de fato, atribuindo às partes as conseqüências jurídicas decorrentes do não cumprimento da regra de distribuição do encargo probatório, já que não se admite que o processo se encerre com uma decisão non liquet (Mendes Júnior, 2004).

Assim afirma Buzaid (1972, p. 66):

“o problema do ônus da prova tem duas faces: uma voltada para os litigantes, indagando-se qual deles há de suportar o risco da prova frustrada; é o aspecto subjetivo; e outra, voltada para o magistrado, a quem deve dar uma regra de julgamento. É o aspecto objetivo. O primeiro opera geralmente na ordem privada; o segundo, porém, é princípio de direito público, intimamente vinculado à função jurisdicional, (...) que não permite que o juiz se abstenha de julgar, a pretexto de serem incertos os fatos, porque não provados cumpridamente.”

1.2 Regra De Julgamento E/Ou Regra De Instrução[6]?

Grande parte da doutrina brasileira defende que a distribuição do ônus da prova prevista no art. 333, CPC, bem como a sua inversão[7], disciplinada no art. 6º, VIII, CDC, são, exclusivamente, regras de julgamento, relevantes para o juiz no momento em que profere a sentença, quando há dúvida acerca da matéria de fato. Nesse sentido, Andrade (2003), Dinamarco (2004), Matos (1995), Monnerat (2004), Nery Júnior (1992), Pacífico (2000), entre outros.

Mostra-se peculiar, ainda, a posição de Antônio Gidi (1996, p. 587), para quem:

“Não parece haver séria dúvida em doutrina de que as regras que atribuem o ônus da prova sejam regras de juízo, regras de julgamento. Sua função é apenas a de instrumentalizar o magistrado com um critério para conduzir o seu julgamento nos casos de ausência de prova suficiente. Todavia, se o ônus da prova é uma regra de juízo, já não se pode dizer o mesmo da norma que prevê a sua inversão, que é eminentemente uma regra de atividade.”

Todavia, o entendimento dos autores antes citados não parece correto, pois desconsidera a importância do aspecto subjetivo do ônus da prova. As regras de distribuição do ônus probatório não têm por única função possibilitar o julgamento da causa em caso de incerteza quanto aos fatos, evitando o non liquet. Elas direcionam, também, a atuação das partes no processo, no sentido de possibilitar-lhes saber, de antemão, quais provas terão o encargo de produzir a fim de obter sucesso na demanda.

A partir dessa diferenciação entre ônus objetivo e subjetivo da prova, conclui Mendes Júnior (2004) que as normas de distribuição de tal ônus são, para o juiz, regras de julgamento, ao passo que, para os litigantes, são regras de instrução.

Da mesma forma, Carlos Roberto Barbosa Moreira (1997) pondera que as normas sobre repartição do ônus probatório consubstanciam, também, regras de comportamento dirigidas às partes que, assim, ficam cientes dos fatos que a cada uma incumbe provar.

Ensina Arruda Alvim (2000, p. 475) que “as regras do ônus da prova destinam-se aos litigantes do ponto de vista de como se devem comportar, à luz das expectativas (ônus) que o processo lhes enseja, por causa da atividade probatória”

E Munir Karam, citado por Marinoni e Arenhart (2003, p. 310):

“o ônus da prova é uma regra de conduta para as partes, porque assinala quais os fatos que a cada uma interessa provar, para que se tornem certos e sirvam de fundamento à sua pretensão ou exceção. Pode-se dizer que o ônus da prova representa os dois lados de uma mesma moeda: implica uma norma imperativa para o juiz, a quem incumbe atendê-la para cumprir a lei e uma regra de conveniência às partes, pois dá a elas o poder de dispor destas provas e assegurar-lhes correlativamente a liberdade de não fazê-lo, sujeitando-as neste caso às conseqüências adversas. (grifou-se).”

Portanto, as normas de repartição do onus probandi, antes de serem regras de juízo, são, primordialmente, regras de procedimento, pois orientam a atuação das partes durante a fase instrutória, informando quem tem o encargo de realizar a prova das questões de fato trazidas ao processo. É, pois, relevante notar que só no caso de as partes não se desincumbirem do seu encargo é que terá lugar a aplicação do ônus da prova como regra de julgamento, o que denota, indubitavelmente, a aplicação primordial das normas de distribuição do onus probandi como regras de conduta para as partes.

Interessante é, nesse sentido, a lição de Eduardo Cambi (2003, p. 136):

“a regra de inversão do ônus da prova não pode ser tratada como uma regra de julgamento, já que o sistema processual deve possibilitar todas as tentativas para que a prova seja obtida, tornando a aplicação da regra do ônus da prova, em sentido objetivo, uma ultima ratio, não como uma regra a priori destinada a determinar a sucumbência e a exclusão da prova. Ademais, tratar a regra de inversão do ônus da prova como uma regra de julgamento implica a construção de um critério discriminatório e parcial, contrariando o princípio da colaboração processual entre o juiz e as partes e a noção democrática de legitimação da decisão judicial através da participação, especialmente pela impossibilidade de efetivo exercício do direito à prova contrária.” (grifo nosso).

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

1.3 A Inversão Do Ônus Da Prova Prevista No Art. 6º, VIII, CDC: Ope Iudicis Ou Ope Legis?

O art. 6º, VIII, CDC, disciplina a possibilidade de inversão do ônus da prova, a favor do consumidor quando, “a critério do juiz”, houver verossimilhança em suas alegações ou ele for hipossuficiente, o que deve ser avaliado de acordo com as regras ordinárias de experiência.

Comentando o dispositivo, afirma Antônio Gidi (1996, p. 586) não se tratar de inversão judicial do ônus da prova, mas de inversão legal, com a justificativa de que “o papel o magistrado é meramente o de aferir a presença dos requisitos impostos pelo CDC”.

No mesmo sentido, André Gustavo C. de Andrade (2003, p. 97):

“A inversão do ônus da prova é produzida ope legis, ou seja, decorre da própria lei, uma vez presentes os requisitos estabelecidos em lei, os quais são apenas reconhecidos no caso concreto pelo juízo.

(...) Todos os casos de inversão do ônus da prova são legais, na medida em que os requisitos para a inversão vêm estabelecidos em lei.”

Todavia, tal entendimento não merece respaldo. A melhor doutrina considera que é judicial a inversão do onus probandi prevista no art. 6º, VIII, CDC, ao argumento de que cabe ao magistrado verificar se estão presentes os requisitos legais para a aplicação da norma. De fato, tal inversão não decorre de imposição ditada pela lei, mas, ao contrário, fica submetida ao crivo judicial.

Assim afirma Barbosa Moreira (1997, p. 299):

“A inversão de que trata o art. 6º, VIII, CDC resulta, necessariamente, de ato judicial, praticado no processo entre consumidor e fornecedor: não pode ser diversa a exegese da cláusula “a critério do juiz”, presente no dispositivo. Não se cuida, portanto, de inversão que decorra diretamente da lei, como se passa nas hipóteses nas quais o próprio Código, dispensando o consumidor da prova do defeito (...) transfere ao fornecedor o encargo de demonstrar que o defeito inexiste (arts. 12, §3º, n. II e 14, §3º, n. I).”

Sem dúvida, embora esteja correta a afirmação de Antônio Gidi (1996) de que o magistrado apenas afere a presença dos requisitos impostos pelo CDC, não se pode, a partir daí, concluir que a norma, por si só, acarrete a inversão, pois esta depende, em qualquer caso, do pronunciamento do juiz. Se e enquanto não houver decisão judicial determinando-a, vigora a regra geral prevista no art. 333, CPC (BARBOSA MOREIRA, 1997).

Conclui, ainda, o mesmo autor:

“Só seria lícito identificar inversão legal desse ônus se a lei a houvesse estabelecido, indistintamente, como regra para os litígios envolvendo consumidores, sem dar ao magistrado qualquer margem na apreciação dos pressupostos que a autorizam.” (BARBOSA MOREIRA, 1997, p. 299)

Nesse sentido, Cunha (2003), Lima (2003), Moraes (1999) e, especialmente, Theodoro Júnior (2002, p. 147):

“No art. 6º, VIII, o CDC não instituiu uma inversão legal do referido ônus, mas, sim, uma inversão judicial, que caberá ao juiz efetuar quando considerar configurado o quadro previsto na regra da lei. (...) a previsão da lei é de um poder confiado ao juiz para promover a inversão, se julgada cabível.”


2 O momento adequado para a inversão do ônus da prova: posições doutrinárias e jurisprudenciais.

Analisar-se-ão, a seguir, as principais teorias acerca do momento processual adequado para a aplicação do art. 6º, VIII, CDC, a partir das premissas estabelecidas no capítulo anterior, quais sejam: (1) o ônus da prova deve ser analisado sob os aspectos subjetivo e objetivo; (2) as regras de distribuição do onus probandi constituem regras de julgamento, mas, primordialmente, de instrução; (3) a inversão de tal ônus, com fulcro no aludido dispositivo legal, opera-se ope iudicis.

2.1 No Despacho Da Petição Inicial

Parte da doutrina, destacando-se Tânia Lis Tizzoni Nogueira (1999, p. 127), defende a possibilidade de o juiz determinar a inversão do ônus da prova logo ao despachar a inicial, afirmando que:

“entendemos que o autor consumidor deverá na inicial requerer a inversão do ônus, e desta forma, a fase processual em que o juiz deverá se manifestar sobre a questão será logo no ato do primeiro despacho, que não irá tratar-se de mero despacho determinando a citação, mas, de decisão interlocutória, passível portanto de recurso de agravo.Tal forma irá propiciar a defesa dos direitos do consumidor de forma ampla, de acordo com o espírito do CDC (...). Tal posicionamento evitaria que o fornecedor pudesse alegar cerceamento ou impossibilidade de defesa.”

No mesmo sentido é o entendimento de Belinda Pereira da Cunha (2003).

Como constata Plínio Lacerda Martins (1999), tal corrente não tem aceitabilidade na doutrina. Bem observa Humberto Theodoro Júnior (2002) que é prematura a aplicação do art. 6º, VIII do CDC antes da contestação por não se saber ainda quais fatos serão controvertidos e terão, por isso, de se submeter à prova.

Também André Gustavo de Andrade (2003, p. 106) afirma:

“a inversão do ônus probatório quando do despacho da petição inicial seria inadequada porque forçaria um juízo de valor prematuro sobre a questão. (...) antes da resposta do réu o juízo não dispõe de todos os dados necessários para aferir se é caso de inversão.”

De fato, mostra-se inadequada a decisão judicial que inverte o onus probandi antes do oferecimento da contestação, já que, nesta fase, os limites da lide ainda não foram fixados, não sendo possível, assim, precisar quais fatos serão objeto da prova.

Além disso, neste momento afigura-se prematuro qualquer juízo acerca da verossimilhança das alegações do consumidor ou de sua hipossuficiência, pois as afirmações constantes da inicial podem ter sua veracidade questionada pela contestação do réu. Assim, a garantia constitucional do contraditório impõe que seja ouvido o fornecedor antes de se deferir a inversão do onus probandi.

Portanto, só após o oferecimento da contestação, quando fixados os pontos controvertidos da lide, é que terá lugar a aplicação da regra prevista no art. 6º, VIII, CDC.  Logo, não merece respaldo essa primeira corrente ora em análise.

2.2 No Julgamento Da Causa

Muitos autores defendem que o momento processual adequado para a aplicação do 6º, VIII, CDC, pelo juiz, é o da sentença. Justificam tal posicionamento alegando que a regra de distribuição do ônus da prova é regra de juízo, sendo, pois, no julgamento a oportunidade de sua aplicação. Assim, o magistrado, ao analisar as provas colhidas, se constatar falhas na atividade probatória que o conduzem à incerteza quanto à matéria de fato, inverteria o ônus da prova, onerando o fornecedor por sua omissão ou desinteresse na fase instrutória (MATOS, 1995).

Nesse sentido, afirma Kazuo Watanabe:

“Quanto ao momento da aplicação da regra de inversão do ônus da prova, mantemos o mesmo entendimento sustentado nas edições anteriores: é o do julgamento da causa. É que as regras de distribuição do ônus da prova são regras de juízo, e orientam o juiz, quando há um non liquet em matéria de fato, a respeito da solução a ser dada à causa” (GRINOVER et al, 2001, p. 735).

O autor sustenta, ainda, que o juiz não pode determinar, antecipadamente, a inversão do onus probandi, sob pena de incorrer em prejulgamento da causa, pois a demonstração da ocorrência dos requisitos da verossimilhança e da hipossuficiência dependem de elucidação probatória (GRINOVER et al, 2001).

No mesmo sentido é o entendimento de Dinamarco (2004), Nery Júnior (1992), Lima (2003), Pacífico (2000), Santos (2003), Monnerat (2004), entre outros.

No entanto, tal corrente doutrinária sofre várias objeções dos que defendem que é na fase de saneamento do processo a oportunidade adequada para se proceder à inversão do ônus probatório.

Afirma Barbosa Moreira (1991) que a inversão não pode se dar no momento da sentença, pois aí não haveria mais a oportunidade de o fornecedor produzir outras provas. Logo,

“se a este, em decorrência da inversão, se transferiu o ônus de demonstrar fatos, então o órgão judicial há de lhe conceder a chance efetiva de desincumbir-se do encargo, que antes inexistia. Por isso, ao juiz não se permite inverter o ônus da prova, para beneficiar o consumidor, senão em etapa do procedimento que ainda comporte a produção de provas.” (BARBOSA MOREIRA, 1991, p. 144 – grifo do autor).

Em outro artigo, o autor pondera que, sendo as normas de repartição do ônus probatório regras de comportamento dirigidas aos litigantes, a inversão na sentença representa, quanto ao fornecedor, a mudança da regra até então vigente, que compromete a sua defesa, já que, antes da adoção da medida, não era seu o ônus de provar determinados fatos. Assim, tal interpretação ofenderia os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa pois, ao mesmo tempo em que estivesse invertendo o ônus da prova, o juiz já estaria julgando, sem dar ao fornecedor a chance de apresentar novos elementos de convicção, com os quais pudesse cumprir o novo encargo (BARBOSA MOREIRA, 1997).

 Como adverte Bedaque (2006), às partes deve ser assegurada a possibilidade de participar e de influir no resultado do processo, conferindo-se ao juiz o poder de conduzir os trabalhos, segundo regras previamente estabelecidas.

Com razão, constata Mendes Júnior (2004) que os autores que defendem a tese de ser na sentença a ocasião correta para a aplicação do art. 6º, VIII, CDC, consideram somente o aspecto objetivo do ônus da prova, ou seja, como regra de julgamento apenas. Esquecem-se, assim, de que, para as partes, o ônus da prova é regra de conduta que demanda, com isso, o conhecimento prévio acerca dos encargos que terão no processo.

Respondendo a isso, a doutrina merecedora de tais críticas traz alguns argumentos que serão a seguir analisados.

Afirma Cecília Matos (1995, p. 99):

“A fixação da sentença como momento para análise da pertinência do emprego das regras do ônus da prova não conduz à ofensa do princípio da ampla defesa do fornecedor que, hipoteticamente, seria surpreendido com a inversão.

De acordo com o artigo 6º, VIII do CDC, o fornecedor tem ciência de que, em tese, serão invertidas as regras do ônus da prova se o juiz considerar como verossímeis as alegações do consumidor ou se ele for hipossuficiente. Além disso, o fornecedor sabe que dispõe do material técnico sobre o produto e o consumidor é a parte vulnerável da relação de consumo e litigante eventual.” (grifo nosso)

E Luiz Eduardo Boaventura Pacífico (2000, p. 160):

“não nos parece constituir ofensa aos cânones constitucionais a inversão no momento da decisão. A partir do conteúdo da petição inicial – com a exposição da causa de pedir e do pedido – às partes envolvidas no processo é perfeitamente possível avaliar se há a possibilidade de aplicação das normas do Código de Defesa do Consumidor ao caso concreto. Se a pretensão estiver fundada em relação de consumo, protagonizada por consumidor e fornecedor, expressamente conceituados pelo Código (arts. 2º e 3º da Lei 8078/90), este pode merecer incidência. Logicamente, a inversão do ônus da prova pode ser prevista, não implicando surpresa ou afronta aos citados princípios, caso efetivada.”  (grifo nosso).

A argumentação dos dois autores antes citados, data venia, não procede. Os termos em destaque mostram a fragilidade dessa teoria, que se embasa na possibilidade, genérica, de se aplicar às demandas envolvendo relação de consumo a regra do art. 6º, VIII, CDC.

Bem ressalta Barbosa Moreira (1997) que a mera possibilidade de a inversão ser determinada não deve ser entendida como a supressão, nos litígios entre consumidores e fornecedores, das regras do Código de Processo Civil que regulam a distribuição do onus probandi, pois elas incidirão enquanto o juiz não inverter, explicitamente, aquele ônus. Como visto, a inversão opera-se ope iudicis, e não ope legis.

Certo é que o ônus da prova deve estar prévia e claramente distribuído entre as partes, de modo que elas tenham ciência das conseqüências que advirão caso dele não se desincumbirem.

Como a seguir se verá, a melhor doutrina é a que aponta a ofensa aos princípios constitucionais do devido processo legal, ampla defesa e contraditório quando o juiz, na sentença, inverte o ônus da prova a favor do consumidor.

Nas palavras de Bedaque (2006), a técnica processual deve ser concebida à luz dos princípios que regem o nosso sistema jurídico, especialmente aqueles de natureza constitucional. 

Sobre o princípio do devido processo legal, afirma Nelson Nery Junior (2004, p. 70):

“Especificamente quanto ao processo civil, já se afirmou ser manifestação do due process of law: a) a igualdade das partes; b) garantia do jus actionis; c) respeito ao direito de defesa; d) contraditório.

Resumindo o que foi dito sobre esse importante princípio, verifica-se que a cláusula procedural due process of law nada mais é do que a possibilidade efetiva de a parte ter acesso à justiça, deduzindo pretensão e defendendo-se do modo mais amplo possível (...)”.

E Alexandre de Moraes (2003, p. 124), sobre a ampla defesa e o contraditório:

“Por ampla defesa, entende-se o asseguramento que é dado ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de omitir-se ou calar-se, se entender necessário, enquanto o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa, impondo a condução dialética do processo (par conditio) (...)”.

Completa Nelson Nery Junior (2004, p. 188):

“Como decorrência do princípio da paridade das partes, o contraditório significa dar as mesmas oportunidades para as partes (...) e os mesmos instrumentos processuais (...) para que possam fazer valer os seus direitos e pretensões, ajuizando ação, deduzindo resposta, requerendo e realizando provas, recorrendo das decisões judiciais etc.”

O princípio do devido processo legal garante às partes o direito a um processo justo, de modo a permitir a efetiva participação paritária, em contraditório, com acesso a informação adequada acerca dos atos processuais e possibilidade de reação, através do exercício das faculdades, ônus e poderes processuais (MENDES JUNIOR, 2004).

Como ensina José Roberto dos Santos Bedaque (2006), toda a organização e a estrutura do processo encontram sua razão de ser nos valores e princípios constitucionais por ele incorporados, de modo que a técnica processual destina-se a assegurar o justo processo, ou seja, aquele desejado pelo legislador ao estabelecer o modelo constitucional ou devido processo constitucional.

Sobre o princípio do contraditório, o autor ainda explicita:

“O contraditório não deve mais ser visto apenas como instrumento destinado a assegurar às partes paridade de armas na luta por elas travada. Mais que isso, é meio pelo qual o juiz exerce sua atividade, possibilitando-lhe a formação do convencimento.” (BEDAQUE, 2006, p. 111)

Diante desse quadro, não se pode negar que a inversão do onus probandi, determinada na sentença, fere os princípios constitucionais em análise. Isso porque, como visto no capítulo anterior, o ônus da prova é um encargo, uma recomendação à parte que, não o cumprindo, pode vir a sofrer as conseqüências de sua inércia. Se há um ônus, um encargo de provar, este não pode ser atribuído ao fornecedor sem que ele tenha tido a oportunidade de dele se desincumbir, sob pena de ofensa ao devido processo legal e, sobretudo, à ampla defesa e ao contraditório.

Como sugere Mendes Júnior (2004), ao impor, na sentença, um novo ônus ao litigante, o Estado não lhe propicia adequada participação no processo, pois não lhe permite saber com antecedência a que ônus estava sujeito, ferindo, assim, a garantia do contraditório – e da ampla defesa, como pode se acrescentar ao pensamento do autor.

Da mesma forma, não se mostra justo o processo no qual o fornecedor é surpreendido, ao final, com a descoberta de que tinha o encargo de provar determinados fatos, já não sendo mais possível, no entanto, realizar a prova, pois ultrapassada a fase instrutória, o que fere o devido processo legal (MENDES JUNIOR, 2004).

Sendo a inversão um ato do juiz, há de se reconhecer que, enquanto não proferida tal decisão, estará o art. 333 do CPC regulando a distribuição do ônus probatório entre as partes, de modo que não se poderá penalizar o fornecedor, ao fim do processo, por não ter realizado uma prova que, em verdade, não era de sua incumbência.

Assim afirma Marinoni, citado por Sandra Aparecida dos Santos (2002, p. 84):

“se a parte tem o direito de adequadamente participar do processo, ela evidentemente não pode ter uma sentença que lhe é contrária formada em virtude de sua inércia, quando originariamente, de acordo com a regra comum do ônus da prova, a prova não seria da sua incumbência.

Se a parte tem o direito básico e fundamental de participar do processo, sendo apenas corolário disto o direito à prova, ela tem o direito de produzir a prova que passa a ser da sua incumbência, e influirá na decisão do juiz.” (grifo nosso).

Deve-se conferir aos que necessitam da tutela jurisdicional instrumento seguro para a solução das controvérsias, o que somente se verifica se houver ordem no desenvolvimento do processo, com estrita observância do contraditório e da ampla defesa. Essas garantias constitucionais, além de assegurar igualdade entre as partes, impedindo o arbítrio judicial, contribuem para que o processo atinja seu escopo de realização da justiça, ao possibilitar que a decisão seja resultado da efetiva participação de todos os envolvidos (BEDAQUE, 2006).

Portanto, o respeito ao contraditório e à ampla defesa, corolários do devido processo legal, impõe que o juiz determine a inversão do ônus da prova em momento anterior à fase instrutória, possibilitando assim que ambas as partes, cientes de seus encargos, produzam as provas de seu interesse. Cabe ao juiz garantir aos litigantes igualdade de tratamento no processo, nos termos do art. 125, I, CPC, dando-se aos mesmos a possibilidade de reagirem frente aos atos que lhes sejam desfavoráveis. Deve-se, pois, preservar a dignidade da disputa processual, de forma a eliminar as surpresas desleais (BARBOSA MOREIRA, 1984).

Adverte Bedaque (2006) que o processo deve ser visto como um instrumento adequado e seguro cuja utilização proporcione a solução justa para a situação de direito material, garantindo-se aos sujeitos parciais absoluta igualdade de condições e ampla oportunidade de participação.

O autor ainda esclarece que “as partes devem ter efetiva oportunidade de participação e defesa antes de ser pronunciado qualquer julgamento” (BEDAQUE, 2006, p. 483 – grifo nosso).

Ademais, relegar para a sentença o momento para a decisão sobre a inversão do onus probandi é trazer insegurança para as partes que, assim, terão, ambas, a necessidade de provar todos os fatos trazidos ao processo. A situação será análoga à inexistência de qualquer regra de distribuição do ônus da prova. Exemplificando: em uma demanda ajuizada por um consumidor, este terá de provar a existência do fato constitutivo do seu direito e o fornecedor deverá provar a sua ausência; e em uma ação interposta por um fornecedor contra um consumidor[8], este terá de provar a existência de fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do fornecedor, a quem, por sua vez, incumbirá provar a sua não ocorrência. Assim será porque as partes não saberão dizer qual será prejudicada pela eventual falta de demonstração de algum de tais fatos, por se mostrar indefinido o critério de distribuição do ônus probatório. Sem dúvida, isso é ilógico e incompatível com o nosso sistema.

Mais uma vez, merecem reflexão as palavras de Bedaque (2006, p. 101), para quem “o desprezo à técnica gera insegurança e eterniza processos”.

Reconhece Cecília Matos que a sua tese implica a necessidade das partes apresentarem todas as provas possíveis para fundamentar suas pretensões (1995).

Em contraponto, afirma, com razão, Flávio Renato de Almeida (1993, p. 52):

“O ônus da prova regulariza a atividade probatória, fazendo com que prevaleça a celeridade processual. Inexistisse o ônus da prova e cada parte ver-se-ia na contingência de provar todos os fatos trazidos a Juízo, para que o juiz deles todos tivesse conhecimento. Se assim fosse, o procedimento – já tão criticado – se tornaria um infindável produzir prova.

Tal absurdo é inconcebível. O sistema probatório – para ser efetivamente um sistema – jamais poderia acobertar tamanha incongruência, ou seja, exigir que as partes provem todos os fatos que envolvem a questão e ao mesmo tempo impor como dever do juiz velar pela rápida solução dos litígios (art. 125, II)”.

Conforme já se analisou anteriormente, o supracitado autor aponta que a regra de distribuição do ônus da prova deve dotar o sistema processual de regras específicas e pré-conhecidas (Almeida, 1993). Sem dúvida, é isso que garantirá às partes a segurança e a lealdade necessárias não só à atividade probatória, mas a todo o processo.

Nas palavras de Bedaque (2006), os poderes, deveres, ônus e faculdades dos sujeitos envolvidos na relação jurídica processual submetem-se a regras que devem ser previamente estabelecidas, de cuja observância é fundamental.

Assim, defendendo que a inversão do ônus da prova deve ser decidida em momento anterior à fase instrutória, Humberto Theodoro Júnior (2002, p. 148):

“A não ser assim, ter-se-ia uma surpresa intolerável e irremediável, em franca oposição aos princípios da segurança e lealdade imprescindíveis à cooperação de todos do processo na busca e construção da justa solução do litígio. Somente assegurando a cada litigante o conhecimento prévio de qual será o objeto da prova e a quem incumbirá o ônus de produzi-la é que se preservará a garantia constitucional da ampla defesa.” (grifo nosso).

Cecília Matos (1995) afirma, ainda, que, por se tratar de norma de julgamento, qualquer conclusão acerca da distribuição do ônus da prova não pode ser emitida antes do fim da fase instrutória, sob pena de incorrer o juiz em prejulgamento. No mesmo sentido, Kazuo Watanabe (GRINOVER et al, 2001).

Mais uma vez, mostra-se equivocado este entendimento. A distribuição do ônus da prova é, primordialmente, uma regra de procedimento, conforme conclusão alcançada no capítulo anterior. E a sua inversão não é um prejulgamento, pois, ao decidi-la, o juiz apenas declara existente os requisitos que a autorizam e, mesmo no caso de se reputar verossímil a alegação, nada impedirá que o magistrado, após concluída a instrução, decida a causa a favor do fornecedor, como bem aponta Barbosa Moreira (1997) e Sandra Aparecida dos Santos (2002).

Aqueles que afirmam ser prejulgamento a inversão decidida em momento anterior à sentença entendem que a verossimilhança só poderá ser aferida nesta oportunidade, a partir da análise das provas colhidas. Tal argumento evidencia uma concepção equivocada do que seja a verossimilhança. Esta, pelo contrário, é aferida por um juízo provisório (MARINONI e ARENHART, 2003), à semelhança do que é feito para a concessão da tutela antecipada prevista no art. 273, CPC.

Sustenta, com acerto, Antônio Gidi (1996, p. 584):

“Verossímil não é necessariamente verdadeiro. Mesmo porque um fato somente poderá ser considerado juridicamente verdadeiro (verdade formal, obviamente) após o trânsito em julgado da sentença que o reconhece. Mas a verossimilhança está intimamente relacionada com a verdade. Verossímil é o que é semelhante à verdade, o que tem aparência de verdade, o que não repugna a verdade, enfim, o provável.”

 O juízo de verossimilhança previsto no art. 273, CPC, pode ocorrer em qualquer fase do processo (THEODORO JUNIOR, 2004), sendo até mais comum que se dê antes da sentença. Ele revela apenas uma cognição sumária, em que o magistrado analisa a plausibilidade das alegações do litigante.

Tendo em vista a unidade e a sistematicidade do ordenamento jurídico, deve-se reconhecer que, assim como previsto no art. 273, CPC, não constitui prejulgamento a aferição do requisito da verossimilhança para a inversão do ônus probatório, com fulcro no art. 6º, VIII, CDC, em momento anterior ao da sentença. Raciocínio análogo pode ser feito em relação à hipossuficiência, também prevista no citado dispositivo legal, no sentido de que a sua aferição se faz por um juízo provisório, que não implica prejulgamento da causa.

Outro argumento daqueles que entendem ser na sentença o momento adequado para a inversão prevista no art. 6º, VIII, CDC, é considerar que, no processo civil, o juiz não precisa avisar determinada parte de que é seu o ônus da demonstração do fato que alegou, já que isso é previsto em lei. Assim, afirma Monnerat (2004, p. 84), referindo-se ao Direito do Consumidor:

“Nesse microssistema, o juiz não precisa avisar o fornecedor de produtos ou serviços de que, havendo verossimilhança das alegações ou hipossuficiência do consumidor, e em havendo dúvida no momento do julgamento, poderá destinar a ele, produtor ou fornecedor de serviços, a desvantagem pela insuficiência da prova colhida. Está na lei.

Fazê-lo é mero didatismo, seria afirmar-se o que o operador do direito tem obrigação de saber. A lei.”

Tal argumentação, defendida também por Cíntia Lima (2003), não merece acolhida. É verdade que a distribuição do ônus da prova está legalmente prevista no art. 333, CPC e que, por isso, não há razão para o juiz advertir as partes acerca da aplicação desse dispositivo. No entanto, como já se demonstrou, a inversão do ônus da prova não se opera ope legis, mas depende de pronunciamento judicial.

Adverte Mendes Junior (2004) que em muitos processos discute-se, até mesmo, a natureza da relação jurídica existente entre as partes, com a incidência ou não do Código de Defesa do Consumidor ao caso. E, ainda que não haja controvérsia envolvendo a natureza dessa relação, é necessário que o juiz reconheça a presença dos requisitos para que a inversão se opere, mesmo porque isso se configura, muitas vezes, em mais uma questão controvertida dentro do processo. Logo, “as partes somente ficam sabendo, com segurança, a quem cabe o ônus probatório a partir do instante em que o juiz profere decisão a respeito” (MENDES JUNIOR, 2004, p. 83).

Por fim, sintetiza Sandra Aparecida dos Santos (2002) que a tese aqui criticada é equivocada por: ofender os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, já que o fator surpresa não pode existir no processo; e por desconsiderar que as regras de distribuição do ônus probatório são de procedimento.

Apesar disso, tal tese por vezes é acolhida pela jurisprudência. Nesse sentido foi o julgamento do Recurso Especial n° 203.225 - MG (1999/0009786-6), em que o Superior Tribunal de Justiça (2002) declarou que “não há vício em acolher-se a inversão do ônus da prova por ocasião da decisão, quando já produzida a prova”.

2.3 Na Fase De Saneamento Do Processo

Boa parte da doutrina defende que o momento processual adequado para a aplicação do 6º, VIII, CDC, pelo juiz, é anterior à fase instrutória.

Com razão, ensina Humberto Theodoro Júnior (2002) que o art. 6º, VIII, CDC, por representar uma inovação à regra geral do art. 333, CPC, dependente de ato do juiz, deve ser aplicado em tempo útil à defesa do litigante destinatário do novo encargo da prova. Assim, a inversão seria medida tardia se decidida no momento da sentença, porque já encerrada a fase instrutória.

Completa o autor:

“É certo que a boa doutrina entende que as regras sobre ônus da prova se impõem para solucionar questões examináveis no momento de sentenciar. Mas, pela garantia do contraditório e da ampla defesa, as partes, desde o início da fase instrutória, têm de conhecer quais são as regras que irão prevalecer na apuração da verdade real sobre a qual se assentará, no fim do processo, a solução da lide.” (Theodoro Júnior, 2002, p. 148)

Afirma, com acerto, Mendes Junior (2004), que é necessário considerar, na definição do momento adequado à inversão do onus probandi, não apenas a relevância das regras que o distribuem para o juiz, mas também para as partes. Assim, o ônus da prova tem relevância para o juiz no momento em que profere a sentença, na hipótese de insuficiência probatória, ao passo que para as partes tal regra é importante para dirigir a sua atividade probatória, o que se dá em momento anterior à decisão final do processo.

A referida lição recorda a importância da diferenciação entre os aspectos objetivo e subjetivo do ônus da prova, com a especial relevância do segundo, o que induz ao raciocínio de que a sua distribuição – incluindo a sua inversão – deve ser pré-conhecida às partes, de modo que elas saibam as conseqüências de sua eventual inércia.

Bem afirma Antônio Gidi (1996) que a atividade instrutória das partes deve se iniciar com as cargas probatórias transparentemente distribuídas entre elas, não sendo possível a inversão de tal ônus na sentença, sob pena de, simultaneamente, se atribuir um encargo ao réu e negar-lhe a possibilidade de dele se desincumbir.

De fato, este parece ser o melhor entendimento, pois possibilita que, já no início da fase instrutória, saibam as partes os fatos sobre os quais recairá a prova e a quem incumbirá o ônus de produzi-la. Respeitam-se, assim, as garantias constitucionais do devido processo legal, ampla defesa e contraditório. E, nas palavras de Bedaque (2006, p. 49), “não há efetividade sem contraditório e ampla defesa”.

Até mesmo Dinamarco (2004, p. 83-84), apesar de entender que a inversão do onus probandi se opera na sentença, afirma:

“É dever do juiz, na audiência preliminar (art. 331), informar as partes do ônus que cada uma tem e adverti-las da conseqüência de eventual omissão (...). A transparência das condutas judiciais é uma inafastável inerência do due process of law e da exigência do diálogo que integra a garantia constitucional do contraditório: o processo civil moderno quer muita explicitude do juiz e de suas intenções, que são fatores indispensáveis à efetividade do justo processo. Por isso, a locução “determinará as provas a serem produzidas” (art. 331, §2º) inclui a exigência de esclarecer as partes sobre seus ônus probatórios.” (grifo nosso)

Sustenta o autor que se o juiz “pretender” inverter o ônus da prova com fulcro no art. 6º, VIII do CDC, deve apenas advertir as partes dessa possibilidade na audiência preliminar, sendo que a efetiva inversão só ocorrerá no momento de julgar a causa (DINAMARCO, 2004).

Esta posição, seguida por Kazuo Watanabe (GRINOVER et al., 2001), não é, porém, a que ora se defende. Deve-se ter em vista que não basta a aludida advertência, mesmo porque a simples leitura do art. 6º, VIII do CDC já indicaria aos litigantes a possibilidade de inversão do onus probandi. Soa, inclusive, ilógico que o juiz advirta as partes sobre a aplicação possível de um dispositivo legal – já que isso é óbvio, inerente à sua função.

Além disso, como aponta Mendes Júnior (2004, p. 86), essa “advertência” do magistrado sobre a possibilidade de inversão pode acabar prejudicando o próprio consumidor que, confiando nela, não faz a prova do fato constitutivo do seu direito e, quando proferida a sentença, é surpreendido com a não aplicação da norma prevista no art. 6º, VIII, CDC, pelo fato de o juiz ter concluído pela ausência dos requisitos para tanto. Assim, acrescenta o autor:

“(...) o entendimento defendido por Dinamarco gera insegurança para as partes, que não saberão, com certeza, que fatos têm o ônus de provar no momento em que essa informação lhes é mais relevante: o momento de produção das provas. O autor afirma que a “transparência das condutas judiciais é uma inafastável inerência do due process of law”, mas a opinião que defende não assegura essa transparência.” (Mendes Júnior, 2004, p. 86).

Necessário se faz, portanto, que o juiz efetivamente decida se inverte ou não o ônus da prova na fase de saneamento do processo, de modo a possibilitar que as partes, durante a fase instrutória, saibam com segurança quais provas terão o encargo de produzir, assegurando-se assim a ampla defesa e o contraditório, inclusive com a possibilidade de recurso contra a referida decisão.

Como adverte Bedaque (2006), um dos objetivos da técnica processual é conferir segurança ao instrumento, de modo a proporcionar absoluta igualdade de tratamento aos sujeitos parciais do processo, possibilitando-lhes influir substancialmente no resultado.

Para Barbosa Moreira (1997), no procedimento ordinário, ideal é que o juiz, na audiência prevista no art. 331 do CPC, ao indicar os “pontos controvertidos” – como dispõe o parágrafo segundo deste dispositivo legal – promova, também, se a hipótese comportar a medida, a inversão do ônus probatório.

Esta opinião é compartilhada por Mendes Júnior (2004, p. 89), para quem:

“se a lei prevê um momento, no procedimento comum ordinário, em que o juiz deve organizar a instrução, definindo o que deve ser provado e como pode ser provado, então também deve o juiz, nesse mesmo momento procedimental, decidir quem tem o ônus de provar. Desse modo, se pretende inverter o ônus da prova a favor do consumidor (...), deve o juiz decidir pela inversão na audiência preliminar.”

Diante do que foi exposto ao longo deste estudo, constata-se que em qualquer procedimento a decisão de inversão do onus probandi deve anteceder a fase instrutória. Bem observa Araújo Filho, citado por Monnerat (2004) que: no procedimento ordinário, a inversão deve ocorrer na audiência de conciliação, se frustrado o acordo, ou, não sendo esta designada, no despacho saneador; no procedimento sumário, o juiz deve analisar a questão na audiência prevista no art. 277 do CPC, se não for obtida a conciliação e se for necessária a produção de provas; no procedimento sumaríssimo, a inversão deve ser decidida por um juiz togado na sessão de conciliação, se esta restar infrutífera[9].

Além dos autores antes citados, Sandra Aparecida dos Santos (2002), Anselmo Prieto Alvarez (2006), Rizzato Nunes (2005), Voltaire de Lima Moraes (1999), Eduardo Cambi (2003), entre outros, têm o mesmo posicionamento ora defendido.

Tamanha a importância de se preservar as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, que alguns doutrinadores consideram que, se o juiz se convencer da necessidade de inverter o ônus da prova depois de já encerrada a fase instrutória, deverá reabri-la, para dar ao fornecedor a oportunidade de produzir a prova que julgar conveniente para liberar-se do novo encargo. Esta é a posição de Tereza Arruda Alvim, citada por Humberto Theodoro Júnior (2002), além de Barbosa Moreira (1997) e de Antônio Gidi (1996).

De fato, a observância da técnica é fundamental ao correto desenvolvimento do processo, por representar garantia de segurança, ordem e participação dos sujeitos na formação da tutela jurisdicional. Assim, deve o juiz atuar de forma efetiva no desenvolvimento da relação, participando ativamente e assegurando às partes real oportunidade de participação, sempre tendo em vista a busca da efetividade do processo (BEDAQUE, 2006).

O entendimento de que a inversão do onus probandi deve ocorrer na fase de saneamento do processo é acolhido por parte da jurisprudência. Essa foi a posição do Superior Tribunal de Justiça (2007) em um importante precedente, cuja ementa se transcreve a seguir:

“PROCESSO CIVIL - RECURSO ESPECIAL - CONSUMIDOR - INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA - MOMENTO OPORTUNO - INSTÂNCIA DE ORIGEM QUE CONCRETIZOU A INVERSÃO, NO MOMENTO DA SENTENÇA - PRETENDIDA REFORMA - ACOLHIMENTO - RECURSO ESPECIAL CONHECIDO EM PARTE E, NESSA EXTENSÃO, PROVIDO.

- A inversão do ônus da prova, prevista no artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor, como exceção à regra do artigo 333 do Código de Processo Civil, sempre deve vir acompanhada de decisão devidamente fundamentada, e o momento apropriado para tal reconhecimento se dá antes do término da instrução processual, inadmitida a aplicação da regra só quando da sentença proferida.

- O recurso deve ser parcialmente acolhido, anulando-se o processo desde o julgado de primeiro grau, a fim de que retornem os autos à origem, para retomada da fase probatória, com o magistrado, se reconhecer que é o caso de inversão do ônus, avalie a necessidade de novas provas e, se for o caso, defira as provas requeridas pelas partes.

- Recurso especial conhecido em parte e, na extensão, provido.”

Sobre a autora
Cibele Cotta Cenachi Napoli

Procuradora Federal. Ex-Procuradora do Estado de Minas Gerais. Especialista em Direito Processual pela UNISUL. Bacharela em Direito pela UFMG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NAPOLI, Cibele Cotta Cenachi. A técnica da inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor:: o momento adequado para a sua determinação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3909, 15 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26885. Acesso em: 5 nov. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!