Conclusão: de uma teoria da argumentação para uma prática da argumentação[28]
A prevalência de teorias da argumentação jurídica e a pouca ênfase na prática argumentativa é causa e consequência tanto da insatisfação dos nossos estudantes de Direito como da precariedade da nossa prática jurídica.[29] As aulas de Direito nas nossas Faculdades dificilmente são construídas com base na análise de casos paradigmáticos de determinado problema jurídico, onde o professor procura demonstrar a dificuldade da caracterização jurídica dos fatos e como teorias diferentes implicam em decisões diferentes. Muito pelo contrário, via de regra é exposto ao aluno uma infinidade de teorias e pouca ou nenhuma atenção é dada aos fatos, como se estes fossem simples de apreender e já se encontrassem rotulados no mundo, prontos para serem subsumidos pela norma que o jurista julga pertinente. Em vez de analisar argumentos jurídicos, expõem-se teorias jurídicas. O estudante é deixado como aquele sujeito que, não sabendo nadar, foi instado a ler diversos manuais de natação e, depois, jogado à água. Tal forma de ensino tem reflexo na prática jurídica, com clientes mal orientados e decisões verborrágicas que desfilam um carnaval de teorias sem explicar com precisão porque naquele caso a teoria, os princípios e as regras a serem aplicadas são estas e não outras.
O leitor atento e conhecedor da história do Direito deve ter percebido que o que está por trás do que foi aqui exposto é, grosso modo, a divergência na forma de entender, ensinar e praticar o Direito na tradição civilista (romano-germânica) e na Common Law. De fato, as diferenças entre as duas práticas são grandes, sendo o exemplo mais óbvio a importância dada aos precedentes e aos princípios neles estabelecidos para decidir casos semelhantes na Common Law e a importância dada à legislação na tradição civilista.[30] A diferença no modo de ensino e no conteúdo dos livros de doutrina é ainda mais acentuada: um manual da nossa tradição é prolífico na exposição de teorias e conceitos, e os exemplos (quando existem!) geralmente servem para ilustrá-los, nunca como ponto de partida e constitutivo do argumento. Já na Common Law os manuais apresentam problemas jurídicos com uma rica descrição dos fatos, e a partir deles desenvolvem argumentações que desembocam em conclusões distintas. Fica claro para o estudante que o que ele precisa aprender é essa habilidade de argumentar juridicamente, e de que forma um bom argumento jurídico pode ser construído.
Por certo que essa distinção aguda entre as duas tradições não encontra respaldo integral na realidade. Quando olhamos com atenção para como alguns dos nossos melhores juristas decidem e escrevem, percebemos que esse modo que defendi aqui de praticar o Direito não é apenas compatível como também em parte constitutivo da nossa tradição. Procurei defender aqui uma forma de justificar e ampliar esta forma de nos relacionarmos com o Direito.
Outro objetivo meu foi enfatizar os limites de uma teoria da argumentação jurídica. Seu problema central, a meu ver, é que ela esquece que raciocinar e argumentar são habilidades que, como tais, pressupõem talento e treino, muito mais do que teorias.[31]
Bibliografia
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ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
ATIENZA, Manuel. As razões do direito. Teorias da argumentação jurídica. 3 ed. São Paulo: Landy, 2003.
HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.
HUTCHESON, Joseph C. Jr. Judgment Intuitive: the function of the hunch in judicial decision. In: Cornell Law Quarterly 274, 1929.
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007.
LEVI, Edward H. An introduction to legal reasoning. London: The University of Chicago Press, 1949.
LOPES, José Reinaldo Lima. Entre a teoria da norma e a teoria da ação. In: STORCK, Alfredo Carlos e LISBOA, Wladimir Barreto. Norma moralidade e interpretação: temas de filosofia política e do direito. Porto Alegre: Linus Editores, 2009.
MACCORMICK, Neil. Legal reasoning and legal theory. Oxford: Clarendon Press, 1978.
MCDOWELL, John. Virtue and reason. In: SHERMAN, Nancy (ed.). Aristotle’s ethics: critical essays. Lanham: Rowan & Littlefield Publishers Inc, 1999.
NUSSBAUM, Martha. The discernment of perception: an Aristotelian conception of private and public rationality. In: SHERMAN, Nancy (ed.). Aristotle’s ethics: critical essays. Lanham: Rowan & Littlefield Publishers Inc, 1999
RORTY, Amélie (ed.). Essays on Aristotle’s ethics. London: University of California Press, 1980.
SHERMAN, Nancy (ed.). Aristotle’s ethics: critical essays. Lanham: Rowan & Littlefield Publishers Inc, 1999.
WIGGINS, David. Deliberation and practical reason. In: RORTY, Amélie (ed.). Essays on Aristotle’s ethics. London: University of California Press, 1980.
Notas
[1] Utilizarei aqui a versão constante do livro de Rorty (1980).
[2] EN 1142a25-30.
[3] EN 1141b15-20.
[4] Wiggins (1980), pp. 232-3.
[5] Idem, p. 236
[6] Utilizarei aqui a versão constante de Sherman (1999).
[7] McDowell (1999), p. 124.
[8] Idem, p. 126.
[9] Idem, p. 137.
[10] Aristóteles ilustra essa ideia com a metáfora de régua de Lesbos. O tema surge ao final do livro V da “Ética Nicomaquéia”, onde o tema tratado é o da justiça, quando Aristóteles discute a equidade. Para ele, essa surge pela incapacidade da lei, que é universal, de prever todas as hipóteses possíveis de sua aplicação: “quando a lei se expressa universalmente e surge um caso que não é abrangido pela declaração universal, é justo, uma vez que o legislador falhou e errou por excesso de simplicidade, corrigir a omissão – em outras palavras, dizer o que o próprio legislador teria dito se estivesse presente, e que teria incluído na lei se tivesse conhecimento do caso.”(EN 1137b20-25). Essa correção se dá através da equidade. Além isso, salienta o Estagirita, “nem todas as coisas são determinadas pela lei: em torno de algumas é impossível legislar, de modo que se faz necessário um decreto. Com efeito, quando a coisa é indefinida, a regra também é indefinida, como a régua de chumbo usada para ajustar as molduras lésbicas: a régua adapta-se à forma da pedra e não é rígida, exatamente como o decreto se adapta aos fatos.” EN 1137b25-30. A analogia com a deliberação prática é óbvia, e é assim estabelecida por Martha Nussbaum: “(...) Aristotle’s picture of ethical reality has the form of a human body or bodies rather than that of a mathematical construct. So it requires rules that fit it. Good deliberation, like the Lesbian Rule, accommodates itself to the shape that it finds, responsively and with respect for complexity.” Nussbaum (1999), pp. 159-60.
[11] McDowell (1999), p. 136.
[12] Nussbaum (1999), p. 155.
[13] EN 1143b10-15. Veja-se também EN 1142a10-15: “(...)embora os moços possam tornar-se geômetras, matemáticos e sábios em matérias que tais, não se acredita que exista um jovem dotado de sabedoria prática. O motivo é que essa espécie de sabedoria diz respeito não só aos universais mas também aos particulares, que se tornam conhecidos pela experiência. Ora, um jovem carece de experiência, que só o tempo pode dar.”
[14] Nussbaum (1999), p. 168.
[15] Compaixão e generosidade, por exemplo, podem impedir uma apreciação imparcial e em obediência à lei por parte do juiz, fazendo com que ele decida não por razões jurídicas, mas por pudores morais. Os malefícios institucionais que isso pode trazer, como arbitrariedade, instabilidade e insegurança, ao fim podem levar a um sistema aleatório guiado pelas emoções de cada juiz. Deste é exigido neutralidade, imparcialidade, obediência às leis, consideração pelas consequências jurídicas da sua decisão, respeito aos precedentes e manutenção da estabilidade social e das expectativas legítimas, e não que ele paute sua decisão por se condoer da situação da parte.
[16] MacCormick (1978).
[17] Alexy (2001).
[18] Para uma boa análise e comparação entre os dois, veja-se Atienza (2003).
[19] Hutcheson (1929). Não há tradução precisa para o termo. Traduções aproximadas seriam “palpite”, “pressentimento” ou “insight”.
[20] “(...) ethical reality is immensely difficult do see clearly. If we are aware of how, for instance, selfish fantasy distorts our vision, we shall not be inclined to be confident that we have got things right.” McDowell (1999), p. 139.
[21] EN 1137b15-20. Sobre a ambiguidade e como ela está presente tanto em sistemas baseados em precedentes como em sistemas baseados na legislação, ainda são estremamente relevantes as considerações de Levi (1949), pp. 6ss.
[22] Eu não estou defendendo aqui que toda norma jurídica é um norma moral institucionalizada, e muito menos que é necessário que assim seja. Tanto pode haver (como de fato há) normas jurídicas sem qualquer relevância moral, como diversas normas morais não recebem respaldo jurídico. Minha intenção é somente marcar que, principalmente na área penal, a maioria das normas jurídicas possuem também um desvalor moral.
[23] Deve ser ressaltado que fatos salientes devem ser interpretados de maneira ampla. Pode ser saliente num caso a força de determinados precedentes, a determinação expressa da lei, a coerência do ordenamento jurídico, as consequências jurídicas (eventualmente também fáticas) da decisão, algum outro mandamento judicial (súmula, por exemplo) etc. Em determinadas cortes, como na Suprema, até questões políticas podem ser consideradas fatos salientes. Com todos esses fatores defronte de si, o bom juiz é aquele que identifica quais são os mais salientes dentre eles (no que, por óbvio, ele é auxiliado pela argumentação das partes, cada uma procurando demonstrar como os seus argumentos indicam os traços salientes do caso).
[24] Da mesma forma como, segundo Thomas Kuhn (2007, passim) se dá o aprendizado de paradigmas na ciência, também no Direito o estudante deveria ser submetido a casos modelo que o ensinariam não só a linguagem do grupo, mas também a forma como ele lidará com os demais casos semelhantes que apreciará na sua atividade. Ele deveria aprender que, quando defrontado com certo caso, deve reconhecê-lo como “um caso de X”. Com o devido treinamento, ele se torna membro da comunidade jurídica e passa a compartilhar das percepções dos fenômenos como os demais colegas.
[25] Mas há uma especificidade muito importante na decisão jurídica: a necessidade de justificá-la. Fora do Direito, alguém pode muito bem dizer que o que fez “era a coisa certa a fazer”. Outros podem interpelá-lo procurando entender suas razões para isso, e ele pode ser mais ou menos apto a fornecê-las (e, em muitos casos, fornecer, sem o saber, razões diversas daquelas que realmente o moveram). De qualquer forma, e mesmo que terceiros não se convençam das suas razões, isso não é o suficiente para tirar-lhe o mérito ou maculá-la, como se a falta de justificativa diminuísse seu valor. Isso não ocorre no Direito, onde é fundamental que as decisões sejam justificadas, devido ao seu caráter formal, institucional e o fato de ele possuir como funções também oferecer segurança jurídica, previsibilidade e estabilidade social. Portanto, além dessa sensibilidade do discernimento o jurista precisa também possuir conhecimento jurídico para justificar sua decisão, é dizer, precisa aprender a linguagem jurídica.
[26] Como afirma McDowell, seguindo Wittgenstein: “We are inclined to be impressed by the sparseness of the teaching which leaves someone capbale of autonomously going on in the same way. All that happens is that he pupil is told, or shown, what to do in a few instances, with some surrounding talk about why that is the thing to do; the surrounding talk, ex hypothesi given that we are dealing with a case of the second kind, falls short of including actual enunciation of a universal principle, mechanical application of which would constitute correct behaviour in the practice in question. Yet pupils do acquire a capacity to GO on, without further advice, to novel instances. (...) it is a fact (no doubt a remarkable fact) that, against a background of common human nature and shared forms of life, one’s sensitivities to kinds of similarities between situations can be altered and enriched by Just this sort of instruction.” McDowell (1999), p. 133.
[27] Hart (2007) p. 170.
[28] Neste capítulo é grande meu débito com as aulas de Lógica I, do prof. Guerzoni. Embora ele não tenha sido o primeiro, certamente foi o que com mais eloquência me convenceu das limitações de uma teoria da argumentação.
[29] Veja-se a interessante discussão sobre os reflexos de diferentes formas de conceber o direito (como teoria da norma ou teoria da decisão) no ensino e na prática jurídica em Lopes (2009), especialmente pp. 43-47.
[30] Veja-se, novamente, Levi (1949), pp. 30ss.
[31] As teorias da argumentação muitas vezes são interessantes como a explicitação de empreendimentos argumentativos que fazemos uso na prática jurídica, mas não conseguem ensinar a argumentar e, no caso da argumentação jurídica, convencer ou decidir bem. Nesse sentido, elas seriam puramente descritivas. E, nesse aspecto, seriam semelhantes à lógica, que também explicita a estrutura lógica dos nossos argumentos mas, se desvinculada da análise e desenvolvimento de argumentos concretos, dificilmente melhora a argumentação de qualquer um.