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Bem de família & o direito falimentar - mitigação da proteção do bem de família

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Agenda 17/03/2014 às 16:19

A proteção emprestada ao bem de família somente prevalecerá quando o seu beneficiário não tenha concorrido direta ou indiretamente para a prática de atos em fraude ou dos crimes previstos na Lei de Falências.

Resumo: Trata-se de tema importante para o Direito de Família e o Direito Concursal, em particular para o Direito Falimentar brasileiro, eis que, no exercício da empresa, na hipótese de declaração de falência do empresário individual ou do administrador ou sócio com responsabilidade ilimitada, ou, ainda, do sócio com responsabilidade limitada, porém diante da prática de atos em fraude, desvio de finalidade ou abuso da personalidade jurídica, como, também, da prática dos crimes previstos nos art. 168 a 178, da Lei de Quebras, o bem de família, antes protegido pela Lei nº 8.009/1990, cederá espaço à sua constrição judicial mediante ato de arrecadação pelo Juízo Universal da Falência, com aplicação direta, excepcionalmente, da Disregard Doctrine, alienando-se o bem no curso da administração da falência (realização do ativo) para solução do passivo (pagamento aos credores).

Palavras-chave: Bem de família e o Direito Falimentar – Mitigação à proteção do bem de família no processo falimentar – Falência de empresário – Prática de ato em fraude ou de crime previsto na Lei de Recuperações e de Falências – Arrecadação do bem de família e a sua venda para pagamento aos credores.

 

Sumário: 1. Introdução. 2. Linhas gerais do Direito de Empresa. 3. Linhas gerais do Direito Falimentar. 4. Da apuração de responsabilidade do falido. 4.1. Dos efeitos do art. 81, da Lei de Falências. 4.2. Dos efeitos do art. 82, da Lei de Falências. 5. Da arrecadação de bens do falido e da mitigação da proteção e alcance do bem de família. 5.1. Do § 4º, do art. 108, da Lei de Quebras. 6. Conclusões.


1. Introdução

O presente artigo localiza-se no Direito de Família, com conexão direta no Direito de Empresa e no Direito Falimentar. A tradicional ideia de abrigo da família mediante a impenhorabilidade do chamado bem de família, como previsto na Lei 8.009/1990,[1] cederá espaço ao rompimento dessa blindagem na hipótese de falência do empresário individual ou sócio/acionista de sociedade empresária, quando verificado no exercício da empresa a ocorrência de ato em fraude, desvio de finalidade ou prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 168 a 178, da Lei de Quebras.[2]

O tema – proteção ao bem de família - guarda relação com o Direito Falimentar, porque se o empresário individual ou sócio/acionista de sociedade empresária, quando declarado falido, terá apurada a sua responsabilidade nos termos dos arts. 81 e 82, da Lei de Falências.

Decretada a quebra, como efeito material da decisão, ter-se-á à arrecadação de bens do falido, empresário individual ou sócio com responsabilidade ilimitada e da sociedade empresária, formando-se, assim, a massa falida individual e a massa falida social, respectivamente, para posterior alienação do ativo visando à solução do passivo.

Na trilha da impenhorabilidade, o bem de família, em princípio, goza de proteção e não deverá ser arrecadado. Contudo, a depender dos atos praticados pelo falido no exercício da empresa ter-se-á a mitigação do bem de família, rompendo-se com a tradicional proteção para autorizar a arrecadação e alienação do referido bem em favor dos credores na massa falida.

Na abordagem do tema será necessário analisar, de forma sistematizada, os arts. 81, 82 e 108, § 4º, da Lei de Quebras, além dos arts. 1º e 3º, da Lei nº 8.009/1990, para se concluir, ao final, mediante harmoniosa interpretação pela viabilidade da arrecadação e alienação do bem de família, na hipótese de declaração de falência do empresário individual ou sócio de sociedade empresária quando verificado ocorrência de ato em fraude ou prática de crime previsto na Lei nº 11.101/2005.


2. Linhas Gerais do Direito de Empresa

O Código Civil brasileiro, de 2002, incorporou a Teoria da Empresa, do Direito Italiano, para indicar o tripé de sustentação do novo Direito Empresarial, a saber: a) o empresário ou sociedade empresária; b) a empresa; c) o estabelecimento.

Copiando o Código Civil italiano, de 1942, o Código Civil brasileiro inseriu o conceito econômico de empresa no art. 966, caput, ao afirmar que é a atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços, que será exercida pelo empresário. A empresa não é titular de direitos, mas mera atividade organizada, cuja organização será levada a efeito por seu titular: o empresário ou a sociedade empresária, essa representada por seus sócios, acionistas ou administradores, responsáveis por emprestar espírito à ficta pessoa jurídica e respectiva atividade econômica.

No desenvolvimento da empresa o empreendedor poderá empreender isolado ou coletivamente: a primeira forma, na modalidade firma individual; enquanto que na segunda, abaixo ou dentro da sociedade empresária, constituída, no Brasil, com, no mínimo, 02 (duas) pessoas naturais ou jurídicas, salvo se tratar de companhia constituída sob o regime jurídico de subsidiária integral.

Nesta abordagem, interessa-nos, especificamente, o empreendedor isolado na prática da empresa, que denominamos de empresário individual, cujo conceito se extrai do referido art. 966, do Código Civil, sendo aquele que exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços ou o sócio, acionista ou administrador. O titular da empresa é quem empreende (empresário ou sociedade empresária) no exercício da atividade econômica (empresa) em determinado local ou lugar formado pelo complexo ou conjunto de bens organizados (estabelecimento).

 Para o desenvolvimento da empresa, o empresário ou sociedade empresária deve, antes de iniciá-la, realizar o registro da atividade econômica mediante o arquivamento de sua inscrição ou de seus atos constitutivos no Registro do Comércio, no Registro Público de Empresas Mercantis, ou seja, na Junta Comercial do Estado da Federação de sua sede social.[3]

O empresário ou sociedade empresária, no exercício da empresa, poderá lograr êxito ou ser mal sucedido. A atividade de empreendedorismo se, por um lado, apresenta-se glamourosa e lucrativa; de outro, implica riscos de variadas ordens, dentre eles, o mais grave - a declaração da falência – porque a quebra significa o fim da empresa, a lacração do estabelecimento, a inabilitação empresarial, a apuração de responsabilidade e a arrecadação de bens sociais e pessoais do empreendedor, empresário individual ou sócio com responsabilidade ilimitada, com a formação de massas falidas.

 


 

3. Linhas Gerais do Direito Falimentar

O Direito Concursal brasileiro, por opção legislativa, embora sem justificativa científica, encontra-se fragmentado. Há, na atualidade, 03 (três) regimes jurídicos distintos, apesar de correlatos, a saber:

? a) o sistema comum – que abriga, de modo geral, os agentes econômicos, empresário individual ou sociedade empresária, a saber: a.1) empreendedor individual, com faturamento anual até R$ 36.000,00; a.2) microempresa, com faturamento anual até R$ 240.000,00; a.3) empresa de pequeno porte, com faturamento de R$ 241.000,00 a 2.400.000,00; a.4) média empresa, com faturamento de R$ 2.401.000,00 a R$ 240.000.000,00; a.5) grande empresa, com faturamento superior a R$ 300.000.000,00 ou ativo superior a R$ 240.000.000,00;

? b) o sistema especial – que abriga os empreendedores sujeitos aos regimes de intervenção e liquidação extrajudicial e falência, de acordo com a natureza do objeto da empresa, a saber: b.1) instituição financeira privada ou pública; b.2) corretora e distribuidora de títulos e valores mobiliários; b.3) securitizadora de créditos; b.4) seguradora; b.5) previdência complementar; b.6) assistência médica; b.7) consórcio; b.8) cooperativa; b.9) outras companhias reguladas pelo Poder Público;

? c) o sistema da insolvência civil aplicável, a saber: c.1) às pessoas naturais; c.2) às sociedades simples.

O sistema indicado na letra a acima é regulado pela Lei de Recuperações e de Falências (LRF) – Lei nº 11.101/2005. O previsto na letra b é regulado por legislação especial, de acordo com o objeto de cada atividade econômica. O indicado na letra c é regulado pelo Código de Processo Civil, no Livro II – Processo de Execução – na execução sob o rito da quantia certa contra devedor insolvente.

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Regra comum entre os sistemas é a impontualidade ou o inadimplemento de obrigação líquida constante de título executivo judicial ou extrajudicial, situação que caracteriza, em tese, a ocorrência do estado de insolvabilidade, portanto, de falência, ou quando diante da impossibilidade material de solver obrigações, o ativo do devedor se apresentar menor do que o seu passivo (A < P = Resultado Negativo [R(-)]), o que indica estado de insolvência.

Embora se possa presumir o estado  pré-falimentar ou de insolvabilidade do devedor tanto na falência quanto na insolvência a incidência de seus efeitos exige prévia declaração judicial. Sem decisão declaratória de falência não há que se falar em falido; sem decisão declaratória de insolvência não há que se falar em insolvente.

A crise econômico-financeira do devedor, empresário individual ou sociedade empresária, em regime de recuperação extrajudicial ou judicial, quando não administrada oportuna e corretamente poderá chegar à convolação da recuperação em falência, com a aplicação dos efeitos materiais decorrentes da quebra. O mesmo ocorrerá em relação à decisão declaratória da falência em pedido autônomo, quer com fundamento na impontualidade, quer com fundamento em atos de falência (condutas caracterizadoras de estado pré-falimentar).

A decisão de quebra implica vários efeitos materiais na vida do falido e na vida dos seus credores:

? a) na vida do falido: a.1) paralisação da empresa; a.2) lacração do estabelecimento; a.3) afastamento dos sócios e administradores; a.4) inabilitação empresarial; a.5) apuração de responsabilidade; a.6) arrecadação e indisponibilidade de bens; a.7) resolução dos contratos unilaterais; a.8) afetação das obrigações do falido; a.9) realização do ativo etc;

? b) na vida dos credores: b.1) instauração de concurso de credores; b.2) verificação de créditos: a) habilitação de créditos; b.3) impugnação de créditos; b.4) reserva de créditos; b.5) resolução de contratos unilaterais; b.6) afetação das obrigações; b.7) classificação de créditos; b.8) solução do passivo etc.

Dos efeitos apontados acima, destacamos, para o presente trabalho, apenas 03 (três), sendo eles: a) apuração de responsabilidade; b) arrecadação e indisponibilidade de bens; c) alienação de bens (realização do ativo) e solução do passivo.


4. Da Apuração de Responsabilidade do Falido

 A decisão que declarar a falência, obrigatoriamente, indicará o regime jurídico do falido e os nomes dos que forem ao tempo da quebra seus administradores, de modo que se apurem as responsabilidades.

4.1. Dos efeitos do art. 81, da Lei de Falências

Informa o art. 81, caput, da Lei de Quebras, que: A decisão que decreta a falência da sociedade com sócios ilimitadamente responsáveis também acarreta a falência destes, que ficam sujeitos aos mesmos efeitos jurídicos produzidos em relação à sociedade falida.[4] O sócio nunca faliu; a falência é da pessoa jurídica, da sociedade empresária, enquanto que os efeitos da quebra permeiam a vida do empreendedor. Quem pode falir é o titular da atividade econômica.

Por tradição, o ordenamento jurídico brasileiro não confunde a pessoa natural do sócio com a pessoa jurídica da sociedade. É por isso que o Código Civil, de 1916, no art. 18, caput, parágrafo único, contemplava a autonomia patrimonial e a autonomia da personalidade jurídica do sócio em relação à pessoa jurídica, e, agora, repetida no Código Civil, de 2002, no art. 45, quando indica que começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro. Tratando especificamente das sociedades, empresária ou simples, o art. 985, do Código Civil, assim reza: A sociedade adquire personalidade jurídica com a inscrição, no registro próprio e na forma da lei, dos seus atos constitutivos (arts. 45 e 1.150).

Decorrência da constituição regular e do arquivamento dos atos constitutivos da pessoa jurídica é a aquisição, de forma autônoma, da personalidade jurídica em relação aos seus sócios. A aquisição da personalidade jurídica implica autonomia patrimonial e creditícia. Assim, não se confunde o patrimônio da sociedade com o patrimônio pessoal dos seus sócios, ainda que estes respondam solidária e ilimitadamente.

Os efeitos decorrentes da quebra alcançam os sócios com responsabilidade ilimitada. Embora juridicamente impossível no Direito Concursal brasileiro a decretação da falência de pessoa natural, o legislador falimentar, excepcionalmente, dada a necessidade de apuração de responsabilidade, aponta que a decretação da falência da pessoa jurídica também acarreta a falência do empresário ou sócio da sociedade empresária, quando portador da responsabilidade ilimitada.

O correto é apenas reconhecer que os efeitos da quebra alcançam os sócios com responsabilidade solidária e ilimitada, atingindo-se, assim, os patrimônios particulares, de modo que respondam, subsidiariamente, pelo pagamento dos credores sociais na falência.

Em verdade, o legislador pretendeu com a equiparação do estado falimentar dos sócios à sociedade falida avançar sobre os bens pessoais e particulares daqueles que deverão responder e garantir o pagamento dos credores, por conta da responsabilidade ilimitada.

4.2. Dos efeitos do art. 82, da Lei de Falências

Na trilha da responsabilidade dos sócios, o art. 82, caput, da Lei de Falências aponta: A responsabilidade pessoal dos sócios de responsabilidade limitada, dos controladores e dos administradores da sociedade falida, estabelecida nas respectivas leis, será apurada no próprio juízo da falência, independentemente da realização do ativo e da prova da sua insuficiência para cobrir o passivo, observado o procedimento ordinário previsto no Código de Processo Civil.[5]

O caput, do art. 82, da Lei de Quebras, cuidou da responsabilidade pessoal dos sócios com responsabilidade limitada e dos controladores e administradores da sociedade falida.

Classicamente, temos sócios com responsabilidade limitada, nas sociedades de pessoas sujeitas aos efeitos da Lei de Recuperações e de Falências, nos regimes jurídicos societários: a) sociedade em conta de participação – sócio participante ou oculto;[6] b) sociedade em comandita simples – sócio comanditário;[7] c) sociedade limitada – em princípio, todos os sócios.[8] Nessa trilha, a sociedade limitada bem representa a ideia exposta no caput, do art. 82, quando afirma: a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social.

Nas sociedades de capitais ou por ações, compreendendo-se aqui a sociedade anônima, todos os acionistas, em princípio, têm responsabilidade limitada;[9], [10] e na sociedade em comandita – os acionistas que não emprestam nomes à firma social ou denominação ou não exerçam administração ou comando, em princípio, também têm responsabilidade limitada,[11], [12] obrigando-se cada sócio ou acionista pelo preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas, salvo a configuração e prova inequívoca de atos em fraude.

Tem-se, portanto, que o sócio ou acionista, com responsabilidade limitada, responde limitadamente ao valor do investimento realizado, quer nas sociedades de pessoas, com a integralização das quotas, quer nas sociedades de capitais, com a subscrição ou aquisição das ações.

É certo, no entanto, que nas hipóteses de abuso da personalidade jurídica, desvio de finalidade, violação à lei ou ao contrato ou estatuto social, bem assim nos casos excesso de mandato ou dissolução irregular da sociedade a responsabilidade, antes limitada, transformar-se-á em ilimitada, passando o sócio ou acionista, o controlador, o administrador, o conselheiro, o diretor ou gerente a responder pessoalmente, alcançando-se, assim, o seu patrimônio particular mediante a aplicação da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica ou Teoria da Penetração prevista no art. 50, do Código Civil, que aponta: Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

A teoria da desconsideração desconsidera, momentaneamente, não a pessoa jurídica ou a sociedade, mas a personalidade jurídica, a autonomia patrimonial, para atingir o patrimônio pessoal do sócio ou administrador. Afasta-se episodicamente a autonomia patrimonial para alcançar o patrimônio particular do sócio ou acionista. Também é conhecida por teoria da penetração, pois se afasta a blindagem ou proteção legal ou levanta-se o véu da personalidade jurídica para penetrar no patrimônio pessoal dos sócios, administradores ou controladores.

A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica ou penetração requer prova inequívoca da prática de ato em fraude. Essa é orientação da Teoria Pura ou Maior originária da Disregard Doctrine. Para aplicação dos efeitos da mencionada teoria, em situação pontual, é necessária prévia apuração da prática de atos em abuso ou fraude, a saber:

? a) abuso da personalidade jurídica;

? b) desvio de finalidade;

? c) violação à lei;

? d) violação ao contrato ou estatuto social;

? e) excesso de mandato ou poder;

? f) má gestão ou gestão temerária;

? g) dissolução irregular da sociedade;

? h) prática de crimes com reflexos no exercício da empresa.

Nessa senda, caminhou bem o legislador falimentar ao indicar a necessidade de propositura de ação de responsabilização dos sócios ou acionistas, com responsabilidade limitada. A apuração da responsabilidade dar-se-á através de ação própria, ação de conhecimento, oportunizando-se ao réu a garantia constitucional do prévio e devido processo legal, com a ampla defesa e os recursos inerentes, sob pena de manifesta ilegalidade.

Nesse diapasão, o art. 82, da Lei de Quebras, indicou o Juízo Universal da Falência como o competente para conhecer, processar e decidir a referida demanda - ação de apuração de responsabilidade, que deverá ser processada pelo rito ordinário, o mais amplo autorizado pelo sistema processual brasileiro.[13]

No curso da administração da falência, a apuração de responsabilidade, em procedimento próprio, será manejada independentemente da realização do ativo e da prova de insuficiência deste para a solução do passivo. Não importa se o ativo é suficiente ou não para pagar os credores, tampouco se já realizado ou não o ativo. A ação de conhecimento para apuração de responsabilidade do sócio ou acionista, do controlador ou do administrador da sociedade falida será manejada, se necessário, pela massa falida, representada pelo administrador judicial.

O § 1º, do art. 82, da mencionada lei, aponta o prazo prescricional para o exercício da pretensão. O prazo é de 2 (dois) anos para a propositura da ação de responsabilidade civil, contados da data do trânsito em julgado da sentença de encerramento da falência. Não nos parece correta a indicação do início do prazo prescricional a partir do trânsito em julgado da sentença de encerramento da falência. Se há sentença de encerramento é porque, obrigatoriamente, o ativo já foi realizado, inclusive com o pagamento dos credores, segundo a força econômica da massa. Se o legislador afirmou que a propositura da ação independe da realização do ativo e da sua expressão econômica, então, seria razoável que o prazo prescricional tivesse início com a decisão que decreta a falência, e não com a sentença de encerramento.  

Tratando-se de prazo prescricional aplicam-se às causas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição, como estabelecidas nos arts. 197 a 204, do Código Civil.

O § 2º, do art. 82, autoriza o juiz, de ofício, ou a requerimento dos interessados, a determinar a indisponibilidade de bens particulares dos réus, em quantidade compatível com o dano provocado. A indisponibilidade prevalecerá até o julgamento dos pedidos formulados na ação de responsabilização. O mencionado dispositivo legal se orientou pelo art. 36, da Lei nº 6.024/1974, ao cuidar da responsabilidade dos acionistas controladores e administradores de instituições financeiras.

Lá, no regime especial, como aqui, no regime geral da insolvência mercantil, há possibilidade jurídico-processual de imediata indisponibilidade dos bens particulares do réu, sem prejuízo da instauração de inquérito policial, sendo certo que a constrição subsistirá até apuração final da responsabilidade, ou seja, até o trânsito em julgado da futura sentença condenatória.[14]

Apesar do § 2º, do art. 82, indicar que a indisponibilidade dos bens poderá ser pleiteada pelos interessados ou deferida, de ofício, pelo juiz, cabe esclarecer que a legitimidade ativa ad processum para a propositura da ação de responsabilização é exclusiva da massa falida, representada pelo administrador judicial. Os interessados a que se refere o mencionado dispositivo legal compreendem: a) a massa falida, titular da legitimidade ativa; b) os credores, independentemente da classificação e do valor do crédito, podendo ser um, alguns ou todos, de modo facultativo.

Os credores, em querendo, poderão participar da lide, porém na condição de assistentes da massa falida. Têm eles, credores, naturalmente, interesse jurídico que o pedido declaratório, constitutivo (ou constitutivo negativo) ou condenatório seja julgado procedente, favorável a uma das partes, no caso, em favor da massa falida, por conta da recomposição dos prejuízos, situação econômica que contribuirá diretamente para a solução do passivo, com o consequente recebimento do crédito. A assistência é simples, podendo os credores auxiliar a massa falida no curso da lide.[15]

Discordamos do deferimento da indisponibilidade patrimonial pelo juiz, de ofício. Essa autorização afigurar-se-ia abuso de autoridade, se não estivesse prevista na lei. A boa técnica processual deve e deverá prevalecer, qual seja: o juiz atua no processo mediante provocação da jurisdição. E mais: é necessário provar, de forma inequívoca, a ocorrência de vício ou a prática de atos em fraude, antes da decretação da indisponibilidade de bens diante da violência que o deferimento da medida representa ao patrimônio do réu. A indisponibilidade exige cautela e obediência ao princípio do devido processo legal, devendo, em princípio, ser promovida a ação de conhecimento, em procedimento próprio.[16]

Se há risco de perecimento, de desvio ou de extravio de bens, a razoabilidade indica que a massa falida, autora do pedido, não só poderá, mas deverá requerer a indisponibilidade, o que poderá ocorrer a qualquer momento, previamente ou no curso de ação de responsabilidade, em sede de ação cautelar inominada preparatória ou incidental,[17] ou, ainda, de seqüestro[18] ou de arresto,[19] conforme a hipótese.

É viável, também, orientado pelo princípio da economia processual, que o pedido de indisponibilidade seja requerido em regime de tutela antecipada na ação de responsabilidade desde que presentes os pressupostos autorizadores da sua concessão.[20]

O deferimento da tutela antecipada poderá ocorrer, no todo ou em parte, sendo certo, no entanto, que para o cumprimento da decisão que concedê-la, seja total ou parcial, deverá ocorrer prestação de caução real ou fidejussória, quando a decisão importar levantamento de dinheiro ou a prática de atos que impliquem alienação ou possam causar graves danos ao réu, eis que se trata de execução provisória,[21] em sede de cumprimento de sentença.

A motivação para o requerimento e o consequente deferimento da indisponibilidade é o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação em que no curso da lide possa ocorrer o extravio ou transferência irregular de bens ou, ainda, a dilapidação patrimonial, tudo visando prejudicar a massa falida e os credores.

A indisponibilidade há que ser compatível com a potencialidade do dano causado à massa falida. Há que se ponderar, ao tempo do deferimento da indisponibilidade, a equivalência econômica com o dano experimentado, evitando-se, tanto quanto possível, exageros ou excessos, daí por que defendemos a prévia comprovação do dano ou da potencialidade do risco, de modo a afastar desmandos ou abusos, mormente no caso de concessão da indisponibilidade, de ofício, pelo juiz.

A ação de responsabilização prevista no art. 82, da Lei de Quebras, não necessariamente deverá ser promovida. Absolutamente dispensável é ou será o manejo da mencionada demanda, se os sócios ou acionistas, controladores ou administradores, ao tempo do seu ajuizamento, já estiverem condenados, com sentença penal transitada em julgado, por quaisquer dos crimes previstos nos arts. 168 a 178, da Lei de Recuperações e de Falências. A dispensabilidade da ação ocorrerá independentemente da sentença penal condenatória motivar os efeitos materiais apontados nos incisos I a III, do art. 181, porque a sentença penal condenatória, regra geral, faz coisa julgada no Direito Civil e no Direito Mercantil.[22], [23]

É absolutamente desnecessária a propositura da ação de responsabilização, pois os efeitos decorrentes da condenação penal, por qualquer dos crimes previstos na Lei de Quebras, com a incorporação do fenômeno da coisa julgada, por si sós, autorizam à conclusão da ocorrência da prática de ato com vício ou em fraude, antes ou após a decretação da falência, o que permitirá, excepcionalmente, a incidência, de modo equivalente, dos efeitos decorrentes da desconsideração da personalidade jurídica.

Aplica-se a mencionada teoria de forma direta e imediata aos bens particulares ou pessoais dos sócios, controladores ou administradores, na condição de infratores,[24] devendo o administrador judicial, em observância aos seus deveres, iniciar o cumprimento da sentença penal condenatória perante o Juízo Universal da Falência,[25], [26] procedendo-se, naquilo que interessa – a efetividade da indisponibilidade e arrecadação dos bens dos condenados, com a sua alienação e ressarcimento dos prejuízos experimentados pela massa falida. O mesmo critério, orientação e efeitos aplicam-se aos sócios com responsabilidade ilimitada.

Em relação ao empresário individual, a Disregard Doctrine é direta, eis que não existe separação patrimonial de parcelas do patrimônio social (da empresa) do patrimônio pessoal. O empresário individual exerce empresa com patrimônio único, com todos os seus bens, sem qualquer distinção ou autonomia patrimonial. Há em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 5.805/2005,[27] que visa instituir o empresário individual com responsabilidade limitada, com a separação de parcela patrimonial específica para o desenvolvimento da atividade econômica. Porém, enquanto não é aprovado, o empresário individual submete todo o seu patrimônio à sorte do empreendedorismo, alcançando-se, na hipótese de atos em fraude, desvio de finalidade ou prática de crime previsto na lei, o bem de família, inclusive.

Somente nessa hipótese, como ressalvado, é que reconhecemos ser dispensável o manejo da ação de responsabilização, com a aplicação direta e imediata dos efeitos relativos à constrição patrimonial dos sócios, controladores ou administradores condenados, com a aplicação da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica.

A propósito do tema em comentário, vale registrar que há em tramitação na Câmara dos Deputados 02 (dois) Projetos de Lei, a saber: a) PL nº 3.401/2008; b) PL 4.298/2008. Ambos os projetos buscam regular a utilização do instituto da desconsideração da personalidade jurídica.[28] Em sendo aprovados, certamente, contribuirão para o aperfeiçoamento do manejo do valioso instituto, evitando-se desmandos e abusos na sua aplicação.

A utilização correta do instituto há muito é reclamada e exigida por aqui, porque, no Brasil, infelizmente, a mencionada teoria se banalizou e vem sendo aplicada à moda brasileira, sem critério e ao sabor das emoções, causando insegurança jurídica e terror aos jurisdicionados, sem atendimento ao pressuposto clássico – que exige prova inequívoca da prática de ato em fraude.

O Código de Defesa do Consumidor, lamentavelmente, nesse particular, contribuiu para a utilização errônea do instituto e de sua banalização nos tribunais, por conta da péssima redação de seu artigo 28 e respectivo § 5º, que apresentam típicas feições de bebê de Rosemary, isto é, disforme, confuso, genérico e equivocado, inclusive com aplicação dos efeitos nefastos da teoria pelo juiz, de ofício, sob o pálio de várias abordagens, a um só tempo, inclusive, por incrível que pareça, até nos casos de insolvência e de falência do fornecedor, adentrando e usurpando competência exclusiva do juízo falimentar.

De forma despreocupada e visando proteger o consumidor, o legislador consumerista, sem critério científico, no § 5º, do art. 28, afirma: (...). A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração,[29] afastando-se, dessa forma, dos limites orientadores da Teoria Pura ou Maior e da indicação prevista no art. 50, do Código Civil.[30]

O Projeto de Lei nº 3.401/2008 visa regular a aplicação do instituto, evitando os desmandos judiciais que vem sendo praticados. O PL nº 4.298/2008 tramita em apenso. O art. 3º, do PL nº 3.401/2008, indica, ainda que tardiamente, que o juiz, antes de decretar a responsabilidade dos sócios ou administradores deverá estabelecer o contraditório, assegurando às partes o prévio exercício da ampla defesa, devendo o pedido ser processado como incidente instaurado em autos apartados, com a devida citação dos réus e comunicação ao Cartório Distribuidor.

Em regra, o juiz não poderá decretar, de ofício, a desconsideração da personalidade jurídica, devendo, nos casos expressamente em lei, antes de decretar os efeitos da teoria, ouvir o Ministério Público.

Sobre o autor
Luiz Guerra

Sócio Fundador & CEO do Guerra Advogados. Advogado sediado em Brasília, com atuação nos Tribunais Superiores. Parecerista. Embaixador Cultural da Rede Internacional de Advocacia de Excelência. Professor Titular e Decano de Direito Comercial da Faculdade de Direito/UNICEUB. Professor visitante em Universidades e Escolas Jurídicas no Brasil e no exterior. Jurista (autor de mais de 50 livros publicados no Brasil e no exterior). Articulista (autor de mais de 250 artigos publicados no Brasil e no exterior). Doutrinador (citado em doutrina e julgados). Palestrante & Conferencista em Seminários e Congressos Nacionais e Internacionais. Membro Benemérito do Instituto dos Advogados do Distrito Federal (ex-Presidente). Membro Efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros. Membro Efetivo do Instituto dos Advogados de São Paulo. Membro de Vários Institutos Culturais no Brasil e no exterior. Titular de comendas culturais e prêmios científicos nacionais e internacionais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUERRA, Luiz. Bem de família & o direito falimentar - mitigação da proteção do bem de família. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3911, 17 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26975. Acesso em: 5 nov. 2024.

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