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A Justiça Restaurativa (PARTE III) – Implicações psicológicas para o ofensor

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Agenda 19/01/2014 às 11:12

A justiça restaurativa parte das necessidades da vítima, porém deve, necessariamente, ocupar-se também com as necessidades do infrator.

Resumo: Este artigo é resultante de uma pesquisa bibliográfica, intitulada "justiça restaurativa: Da Retribuição à Restauração - Implicações Psicológicas" (Silva & Schmidt, 2008). Em um momento de grande preocupação com os direitos humanos e, considerando a importância e o surgimento de práticas de justiça restaurativa (JR), o estudo mencionado acima deu origem a três artigos que buscam contribuir para a discussão em matéria de justiça e sua aplicação. O presente estudo (parte III) discute aspectos psicológicos ligados ao comportamento criminoso e à sua abordagem, considerando o modelo tradicional de justiça e alguns aspectos da emergente JR. Para isso, foram considerados principalmente estudos da área da psicologia, sem deixar de considerar, também, estudos relevantes da área do direito e da sociologia. A pesquisa buscou apontar os estudos sobre o atual sistema de justiça e do sistema prisional, destacando a sua ineficácia para a recuperação, bem como aspectos relacionados com as motivações do agressor, tendo em vista o desenvolvimento da personalidade e os aspectos sociais, como os estereótipos que impedem uma abordagem livre de humilhação. O estudo culmina com um olhar para as possibilidades e necessidades do infrator sob o aspecto psicológico e, sob o aspecto da JR. Em seguida, terminando com uma conclusão com base nesta revisão.

 

Palavras Chave: Direitos Humanos. justiça restaurativa. Ofensor. Psicologia.


INTRODUÇÃO

Atualmente percebe-se que a sociedade está insatisfeita com a ineficiência do sistema de justiça. A insegurança é um sentimento muito forte na população brasileira hoje em dia e, a partir desse intensificam-se os pedidos de abordagens mais drásticas para com os criminosos. Este comportamento é compreensível, porém ineficaz. Aponta para um retrocesso, para procedimentos já utilizados em outras épocas (calabouço, tortura, decapitação, esquartejamento, enforcamento, entre outros) que acabaram sendo abandonados ao longo dos anos. Atualmente existe uma crise no sistema de justiça a qual transparece nas prisões superlotadas, no desrespeito dos direitos humanos, na presença de grupos organizados dentro das unidades penitenciárias, no baixo índice de recuperação dos apenados, no alto índice de reincidência, entre outros sinais. Sobre esse assunto recomenda-se a leitura do artigo “justiça restaurativa I – da retribuição à restauração” (Silva, J.E.M., 2011).

Considerando a emergência das práticas de justiça restaurativa como mais uma alternativa à insuficiência do sistema judiciário e prisional atual, uma abordagem dos aspectos psicológicos presentes nesse processo é de grande utilidade para o entendimento e desenvolvimento dessa nova abordagem.

É importante destacar que as práticas de justiça restaurativa abordam tanto a vítima quanto o infrator buscando desenvolver um processo que não seja exclusivamente punitivo, mas sim restaurativo. A abordagem enfoca os danos e as necessidades da vítima bem como as necessidades do infrator, sem desconsiderar os aspectos sociais presentes no comportamento criminoso. A justiça restaurativa, de uma forma geral busca possibilitar que a vítima tenha o atendimento adequado e, que o infrator possua condições de fazer uma reparação, se não concreta, então simbólica. Nesse sentido as ‘partes’ principais são a vítima e o infrator e não o Estado e o infrator. A fim de atingir seus objetivos, a justiça restaurativa se utiliza de diversas práticas que não buscam a exclusão e o isolamento do infrator, mas, muito pelo contrário, buscam a participação deste, da vítima e da sociedade na busca de soluções restaurativas para o fato ocorrido. Ao longo desse estudo, são abordados os aspectos psicológicos relativos ao ofensor, destacando aspectos específicos dos procedimentos restaurativos. Sobre aspectos psicológicos relacionados à vítima, recomenda-se a leitura do artigo “justiça restaurativa II – a vítima: implicações psicológicas” (Silva, J.E.M., 2013).


O Ofensor

Ora, nesse sentido a contribuição de Freud foi realmente útil. Ele mostrou que se substituímos o sentimento pela reflexão, não podemos deixar de fora o inconsciente sem cometer vários erros – de fato, sem nos fazermos de bobos. O inconsciente pode ser um estorvo para quem gosta de tudo simples e arrumado, mas decididamente, não pode ser ignorado por planejadores e pensadores. (...) Temos até magistrados que não enxergam que os ladrões estão procurando algo mais importante do que bicicletas e canetas-tinteiro. (WINNICOTT, 2005, p.127-128)

A justiça restaurativa parte das necessidades da vítima, porém necessariamente deve ocupar-se, também, com as necessidades do infrator. Assim é objetivo da justiça restaurativa: sanar o relacionamento entre vítima e ofensor, se não totalmente, pelo menos em parte - buscar a reconciliação/restauração, proporcionar situações que favoreçam a saúde do ofensor - sem deixar de responsabilizá-lo por sua ação - suas necessidades também devem receber atenção.

No entanto, no contexto atual não é muito fácil pronunciar-se no sentido de dedicar uma atenção, um investimento ao ofensor. Parece ser mais fácil, mais cômodo e comum classificá-lo como ‘criminoso’ e aplicar a ele uma pena de prisão, isolando-o do convívio social. Assim, oferecendo à sociedade uma ilusória (ilusória porque não duradoura e, porque o assunto não foi abordado em sua origem, apenas em nível de sintoma) sensação de segurança. Conforme Crochík (2006), os estereótipos, os pré-conceitos possuem a função, também, de economia psíquica. Considerar a especificidade e a singularidade dos fatos pode gerar angústia para aqueles que se sentem ameaçados em relação ao assunto. Também, segundo o autor, os estereótipos são frutos de um mecanismo que procura manter o ‘status quo’.

Já Freud (1986), quando argumentou que os desejos são mais fortes do que as argumentações racionais que tentam constituir os sistemas éticos e filosóficos, apontou para aquilo que movia a razão e que quando não é percebido é falseado. E, assim, no preconceito não deixa de estar presente a racionalização expressada por uma argumentação coerente que oculta a sua verdadeira motivação. (CROCHÍK, 2006, p.57)

Conforme Crochík (2006), psicólogo, doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, é comum um entendimento de que os criminosos tenham que ser responsabilizados totalmente por seus atos. A explicação pelos crimes cometidos pelos infratores é normalmente atribuída à história de vida do criminoso, “apontando-se para sua infância irregular, para suas deformidades de caráter, sem que as condições sociais, que também são responsáveis pelo crime, sejam realçadas” (p.26).

O estereótipo do criminoso como um indivíduo de alta periculosidade, intratável, mau-caráter, auxilia na caracterização que o indivíduo ‘saudável’ deve ter, e contribui para saber como agir quando se defrontar com aquele, ao mesmo tempo em que impede sua identificação com ele. Quanto mais distintos julgarmos que somos dele, mais protegidos nos sentimos dos impulsos hostis que nos pertencem. Nesse sentido, os estereótipos evitam termos de pensar como as condições sociais nas quais vivemos e que fortalecemos contribuem para o crime, e o quanto nós próprios, nessas condições poderíamos cometê-lo. Em outras palavras evitam a reflexão sobre o mundo social e sobre nós mesmos. (CROCHÍK, 2006, p.26)

Apesar de ser mais ‘confortável’ perceber o criminoso de forma estereotipada, o crime pode ser uma forma distorcida do indivíduo dizer que é alguém. De conseguir alguma afirmação pessoal, sentir que tem controle sobre sua vida. Assim, quem se envolve com o crime, normalmente possui pouca auto-estima, pouca autonomia e poder pessoal. Nessas condições, a experiência prisional não contribuirá em nada para que isso seja sanado, muito pelo contrário, ela intensificará esses sentimentos. “Estou convencido de que crimes e violência são muitas vezes uma forma de afirmar a identidade e poder pessoais.” (ZEHR, 2008, p.35).

Considerando o aspecto acima mencionado, de que os fatores ‘motivantes’ de um crime estão muito além do simples ato e, que são reflexos de situações complexas com forte influência de fatores subjetivos, Joel Birman (2006), doutor em filosofia e psicanalista brasileiro, acredita que a juventude, hoje em dia, está muito vulnerável em função de uma série de características da atualidade, entre elas pode-se citar: uma crescente exigência sobre os jovens, uma ênfase na rivalidade, uma necessidade de preocuparem-se com o futuro muito precocemente, a ausência dos pais durante o dia, um sentimento de abandono por parte dos jovens, fortes influências da televisão, entre outras.

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E, ainda, conforme Birman (2006), "Pode-se reconhecer em tudo isso, enfim, o desamparo (BIRMAN, 2001, 2003) que caracteriza a juventude hoje, que inscreve e marca dolorosamente no seu corpo, lancetado pelas tatuagens, a sua condição psíquica torturada” (BIRMAN, 2006, p. 42). Ainda conforme o mesmo autor, as exposições precoces à violência e à sexualidade produzem novas formas de sexuação e de agressividade. “Estas seriam, com efeito, os únicos meios que os jovens encontram para suprir a carência de cuidados e a solidão de suas existências" (BIRMAN, 2006, p. 38). E, ainda, segundo o autor, considerando a privação psíquica da presença dos pais e, da necessidade de proteção em relação aos perigos da violência urbana, os jovens ficam ilhados, submetidos a uma situação paradoxal. Por um lado são super-protegidos e, assim, infantilizados e fragilizados. Por outro possuem dificuldades para aprenderem a ‘se virar’ e para ingressarem no mercado de trabalho.

Negando a evidente e forte influência de fatores subjetivos e inconscientes nos atos criminosos, o Poder Judiciário, normalmente através de medidas genéricas, além de afastar o sujeito do convívio com a sociedade, busca tratá-lo de forma a que se arrependa, humilhando-o. Este processo de humilhação, conforme Azevedo A.M.V.F. (2005), Ph D em Literatura Comparada (tragédia grega e psicanálise), é uma negação do sujeito. Ao designar alguém como ‘Tu é um fracasso’, este é reduzido ao fracasso e a nada mais. A humilhação pode dar origem à raiva. Nesta reflexão é importante considerar que, conforme Crochík(2006), o único critério para se distinguir o normal do patológico é dado por aquilo que a cultura exige, a cada momento, de seus membros e pelas respostas desses a essas exigências(p.38).

Nessa perspectiva, podemos começar por definir a noção de humilhação como um processo que rebaixa o sujeito ao nível do objeto, um rebaixamento que recobre dimensões de imaginário, de simbólico e de real da experiência subjetiva. Esse ‘tu és isso’ que é enunciado a respeito do sujeito visa justamente a ‘reduzir a nada sua existência (...), a reduzi-lo a um estado que tende a aboli-lo como sujeito’ nos diz Lacan, no que talvez se aproxime mais, em seu ensino, de uma definição de humilhação. (AZEVEDO, A.M.V.F., 2005, p.51-52)

A experiência da prisão é um assunto que necessita ser mais explorada no meio jurídico, visto sua pouca capacidade de contribuir com o infrator e, sua ampla capacidade de humilhar ainda mais o apenado. Soma-se a isso o fato de a prisão parecer ser normativa em nossa sociedade, sendo que, conforme Zehr (2008) as penas diversas dessa necessitam de muita justificativa por parte dos juízes. No entanto, não se pode negar, que, até certo ponto, a prisão, apesar de tudo, produz um sentimento de segurança para a sociedade ao manter o potencial perigoso recluso e, ‘sob controle’. Assim, da mesma forma, o Estado conta com a ação prisional como forma de responder às solicitações e exigências da sociedade.

A prisão construída com ‘tijolos de vergonha’, muros espessos e grades de ferro pra não se ver como ‘o homem os seus irmãos mutila’, para esconder os horrores que ali se pratica que até Deus duvida, é lugar de humilhação, sofrimento e dor. (...) no qual o indivíduo é apenas um objeto numerado, o cárcere avilta o ser humano. A privação de liberdade é humilhante e desumana, especialmente para os que acreditam que ser humano é ser livre. (LOPREATO, 2005, p.255-256)

Conforme Zehr (2008), a prisão: desumaniza; pode promover e intensificar a perda da autonomia; pode intensificar a dependência; alguns indivíduos podem se submeter, outros podem se rebelar e, ainda outros podem se tornar enganadores, manipuladores; ensina a dominação sobre os outros; tende a agravar o comportamento criminoso.

Para Bitencourt (2004), doutor em direito penal, a prisão possui efeitos negativos sobre a auto-imagem do recluso. Os motivos, segundo o autor, são muitos, mas, destaca o isolamento social. Uma desconexão com o social, onde nada do que o apenado faz dentro da prisão parece lhe trazer benefícios transferíveis para a vida fora da penitenciária. Também para Trindade (2007), - Mestre em Desenvolvimento Comunitário, Doutor em Psicologia, o isolamento prisional não é nada favorável ao desenvolvimento humano.

Bitencourt (2004) destaca que, atualmente não se acredita que a prisão seja causadora de uma psicose com formato específico (psicose carcerária), como se acreditava no passado, mas sim, que ela é um ambiente que produz reações carcerárias. Estas reações são vivências que ocorrem em um local que perturba ou impossibilita “o funcionamento dos mecanismos compensadores da psique” (p.195), facilitando o desequilíbrio, podendo facilitar o aparecimento desde reações psicopáticas momentâneas até duradouros quadros psicóticos. Esses quadros são típicas patologias que apenas recebem um colorido diferenciado em função do ambiente prisional não podendo ser caracterizadas com a singularidade de uma distinta patologia carcerária. Para o autor, a existência de uma série de reações carcerárias, as quais são ocasionadas pelo ambiente prisional aponta para uma situação paradoxal. Não faz sentido falar em reabilitação do infrator “em um meio tão traumático como o cárcere” (p.199). Para o autor isso evidencia a falência da prisão.

Nos próximos parágrafos o estudo foca alguns aspectos relativos à origem da culpa durante o desenvolvimento da personalidade, bem como fatores relacionados à culpa potencialmente presente (conscientemente ou não) em um infrator.

Ao contrário do que em geral se pensa, os ofensores sentem culpa pelos atos que cometeram. Mas a sensação de culpa pode ameaçar gravemente o seu sentido de valor próprio e de identidade. Um estudo concluiu que os ofensores são caracterizados por medos terríveis, e que seu maior temor é de ser um ‘zero à esquerda’, ou seja, o medo de total falta de valor pessoal. Consequentemente os ofensores se valem de uma série de técnicas defensivas a fim de evitar a culpa e manter seu sentido de valor próprio. (ZEHR, 2008, p.48)

A culpa (ZIMERMAN, 2005) é algo inerente ao ser humano. Conforme Freud, por Zimerman (2005), ao tomarmos o Complexo de Édipo, a culpa surge após os primeiros anos de vida, quando a criança começa a perceber que a mãe não é toda sua. A criança vai percebendo a perda da mãe e a entrada de um terceiro, o pai. Assim, um sentimento de raiva pode ser dirigido ao pai, o que produz um sentimento de culpa na criança. A culpa, desta forma, é resultante do próprio processo ‘civilizatório’, onde as pessoas necessitam conter seus impulsos, não podendo atender aos seus instintos, respeitando o código social. No entanto, se a culpa ultrapassar certa dimensão, estaremos diante de algo que pode produzir muito sofrimento para a pessoa. Insegurança, ansiedade, medo de errar, dificuldade de tomar decisão, depressão, entre outros sintomas que podem acompanhar a pessoa com excesso de culpa.

Para Winnicott (2005), o sentimento de culpa é a angústia atrelada ao conceito de ambivalência. Considera um grau de integração no ego individual que permite o registro da imagem do objeto bom ao lado da idéia da destruição dele. O envolvimento, conforme o autor necessita maior integração e maior crescimento. Ele está atrelado de forma positiva com o senso de responsabilidade do indivíduo, principalmente no que se refere às pulsões instintuais. “O envolvimento refere-se ao fato de o indivíduo preocupar-se ou importar-se, e tanto sentir como aceitar responsabilidade” (p.111).

Ainda, segundo o mesmo autor, tanto as crianças quanto os adultos costumam confrontar tudo com o código aceito. É uma forma de ver como está sua relação com a comunidade. Para um desenvolvimento da moralidade, segundo o autor existem duas correntes extremas. Uma delas afirma que a moralidade, o senso de certo e errado, se desenvolve por agentes externos que apresentam, ‘que plantam’ “um código moral em solo virgem” (p.120) e, outra corrente acredita que este desenvolvimento se dá a partir de desenvolvimentos internos, ou seja, que essa dimensão já está internamente presente e que se desenvolve ao longo do tempo, de acordo com processos naturais de maturação. Winnicott (2005), diz agradar-se de pensar que qualquer moralidade proveniente da submissão tenha pouco valor e, de que os fatores internos ao lado dos fatores hereditários e ambientais contribuem para o desenvolvimento do senso de certo e errado nas crianças. Para um entendimento nesses termos o autor acredita que três fatores devem ser considerados no desenvolvimento da moralidade. Primeiro de que a criança se desenvolve naturalmente da dependência em direção a independência. Segundo, que existem diferenças pessoais iniciais, relativas a fatores hereditários. E, terceiro, existem diferenças que se apresentam no ambiente e, que interferem e diferenciam a forma com que cada um desenvolve sua moralidade.

Como disse Freud, o sentimento de culpa torna o indivíduo capaz de ser malvado. De acordo com o padrão, a criança tem o impulso, talvez morda (ou coma um biscoito) e tenha a idéia de estar comendo o objeto (digamos, o seio da mãe), e então sente culpa. Meu Deus, como sou horrível! E daí resulta o impulso para ser construtivo. (WINNICOTT, 2005, p.123)

Nesse sentido, Sandrini (2005), mestre em educação, considera que as pessoas podem cometer pequenas transgressões ou infrações no cotidiano, sem que isso faça delas um criminoso. O mesmo acontece com os adolescentes que, nesta fase específica da vida, cometem algumas infrações sem necessariamente virem a se tornar criminosos. Já o adolescente infrator, conforme o autor, pode ser visto também como vítima de um descumprimento social da lei. Nesse aspecto, mesmo considerando a ‘falta social’, não se pode fazer uma ligação linear entre pobreza e delinquência, mas, pode-se dizer que a miséria é um dos fatores presentes na determinação da criminalidade.

Por mais difícil que consideremos a aplicação dessas idéias, precisamos abandonar totalmente a teoria de que as crianças podem ser inatamente imorais. Isso nada significa em termos do estudo do indivíduo que se desenvolve em conformidade com os processos de maturação herdados e permanentemente interligados com a ação do ambiente facilitador. (WINNICOTT, 2005, p.124)

Para Zehr (2008), um dos meios de o infrator tentar manter seu valor pessoal é através da racionalização e da justificativa, de forma que tenta afastar de si a culpa, nem que essa tenha que ser colocada na própria vítima. Para que a punição alivie a culpa ela deve ser percebida como merecida. Porém, considerando o ofensor, atualmente, existe pouca chance de ele perceber que sua atitude foi contra a sociedade.

A tendência anti-social, normalmente, possui sua origem durante o desenvolvimento da personalidade/moralidade. Segue-se este estudo com uma revisão sobre esse aspecto, fundamentada em Winnicott.

Para Winnicott (2005), a tendência anti-social se expressa por duas vias. Uma através do roubo e outra pela destrutividade. Na primeira, a criança está a procura de algo (a mãe) em algum lugar, mas que não encontra, então procura noutro lugar. Na outra, a criança está em busca do suprimento de estabilidade ambiental que se perdeu. Um ambiente que possa confiar nela e lhe permitir movimentar e agir.

Para Winnicott (2005), a agressividade, também pode ser um sintoma do medo. Para ele no bebê existe amor e ódio com toda intensidade da dimensão humana. Um bebê toma o seio para sua satisfação, porém, com sua voracidade põe em risco o que mama. Normalmente o bebê chega a um ponto intermediário. Permite suficiente satisfação sem ser excessivamente perigoso. Assim, frustra-se em parte. Por isso surge um ódio contra si. O bebê precisa de algo de fora que o frustre e que suporte o ódio que irá depositar nele.

Ainda, conforme Winnicott, tolerar toda a nossa realidade interior é uma grande dificuldade humana. Assim um de nossos objetivos é “estabelecer relações harmoniosas entre as realidades pessoais internas e externas” (p.98). A agressividade pode ser vista como um reflexo da realidade interna que é difícil de ser tolerada como tal. Um indivíduo normal encontra formas alternativas de dramatização de sua raiva. Isso pode ser visto no caso de um menino que chuta uma bola durante uma partida de futebol. Assim, “pode-se perceber que o ódio ou frustração ambiental desperta reações controláveis ou incontroláveis no indivíduo, conforme o montante de tensão que já existe na fantasia inconsciente pessoal do indivíduo” (WINNICOTT, 2005, p.100). Nesse sentido, “a título de prevenção, o mais importante é reconhecermos o papel desempenhado pelos pais na facilitação dos processos de maturação de cada criança, no decurso da vida familiar” (WINNICOTT, 2005, p.109).

Para Winnicott (2005), a criança que não teve um lar que oferecesse sentimento de segurança, procura isso fora do lar. Ela pode buscar nos avós, nos tios, amigos da família, na escola. Ela está em busca de uma estabilidade sem a qual poderá enlouquecer. Caso essa segurança seja fornecida, a criança, com o passar dos anos, cresce da dependência à independência. “É frequente a criança obter em suas relações e na escola o que lhe faltou no próprio lar” (p.130).

Para Winnicott (2005), uma criança anti-social pode parecer bem quando está sob forte controle, porém, quando a ela for dada a liberdade, surgirá uma ameaça de loucura a qual a fará, inconscientemente, infringir alguma regra na direção de obter novamente o controle externo. Assim, a delinquência aponta para uma esperança. Ela é um pedido de socorro, “pedindo o controle de pessoas fortes, amorosas e confiantes” (p.131).

Em poucas palavras, a não-sobrevivência da mãe-objeto ou o fracasso da mãe-ambiente em propiciar uma oportunidade confiável para a reparação leva à perda da capacidade de envolvimento e à substituição por angústias cruas e por defesas cruas, tais como a clivagem ou a desintegração. (WINNICOTT, 2005, p.117)

Conforme Winnicott (2005), apesar do desenvolvimento da capacidade de envolvimento ter sua origem nos tempos mais remotos do indivíduo (anterior ao complexo de édipo), esse processo, assim como outros, pode continuar se desenvolvendo ao longo da infância, da vida adulta e, até da velhice. Entendimento este que pode dar alguma esperança na recuperação de determinados infratores. No entanto, para o autor, são necessárias condições externas favoráveis para que os “potenciais de maturação se concretizem” (p.112).

Além disso, a oportunidade de dar e fazer uma reparação, capacidade essa que a mãe-ambiente oferece através de sua presença confiável, capacita o bebê a tornar-se cada vez mais audacioso na vivência de suas pulsões do id; em outras palavras, liberta a vida instintual do bebê. Desse modo, a culpa não é sentida mas permanece adormecida, ou potencial, e só aparece (como tristeza ou estado de ânimo deprimido) se a oportunidade de reparação não aparecer. (WINNICOTT, 2005, p.116)

Estabelecidas ou não as falhas de desenvolvimento acima mencionadas, o criminoso se apresenta como uma realidade de nossa sociedade. Cabe, então, refletir sobre qual é a necessidade deste infrator para superar esse comportamento gerador de sofrimento a si e ao social. Conforme Zehr (2008), os infratores necessitam: de que questionem seus estereótipos e racionalizações; necessitam aprender a ser mais responsáveis; podem estar precisando adquirir habilidades profissionais e inter-pessoais; necessitam de apoio emocional; podem estar precisando aprender a canalizar as frustrações e a raiva de forma mais saudáveis e construtivas; podem estar precisando desenvolver uma auto-imagem mais positiva; precisam ajuda para lidar com a culpa.

Ainda, conforme Zehr (2008), é comum que os ofensores tenham sido vítimas em suas vidas (normalmente na infância). Buscam através do crime validação pessoal e empoderamento. Afirmação como pessoa. O crime é um grito por socorro. Os ofensores prejudicam os outros por que foram prejudicados e são prejudicados mais ainda pelo sistema judicial. Assim, muito do comportamento delinquente está relacionado a falhas desenvolvimentais. Não basta flagrar o infrator e penalizá-lo, para que o comportamento anti-social desapareça. É necessário muito mais do que isso, é preciso possibilitar que falhas em seu desenvolvimento possam evoluir em algum nível mais saudável.

Para Zeher (2008), a verdadeira responsabilidade, inclui a compreensão das consequências ao outro, resultantes de nossos atos. Quando se impõe sanções a pessoas irresponsáveis, isso tende a torná-los mais irresponsáveis. O autor menciona que algumas instituições começaram a colocar a restituição como parte da sentença, mas, essa acaba por ser vista como uma punição. Para o autor sentenças restitutivas impostas como punição tem toda a probabilidade de não ajudar aos infratores a se tornarem responsáveis. Por esse motivo é que aparecem baixos índices de retorno em alguns programas de restituição. O responsabilizar-se vai muito além de uma imposição feita por forças externas.

Finalmente, toda a agressão que não é negada, e pela qual pode ser aceita a responsabilidade pessoal, é aproveitável para dar força ao trabalho de reparação e restituição. Por trás de todo o jogo, trabalho e arte está o remorso inconsciente pelo dano causado na fantasia inconsciente, e um desejo inconsciente de começar a corrigir as coisas. (WINNICOTT, 2005, p.101)

Winnicott (2005) acredita que para o tratamento de delinquentes juvenis, a terapia pessoal unicamente seja insuficiente. Faz-se necessário a participação em um lar que possibilite um “ambiente estável e forte, com assistência e amor pessoais, e doses crescentes de liberdade” (p.131). A psicoterapia entra, no sentido de ajudar a criança a completar seu desenvolvimento emocional. Para tal, deve contribuir para estabelecer “uma boa capacidade para sentir a realidade de coisas reais, internas e externas” (p.133) bem como possibilitar a integração da personalidade. “Depois dessas coisas primitivas, seguem-se os primeiros sentimentos de envolvimento e culpa, bem como os primeiros impulsos para fazer reparações” (p.134).

(...) vemos que as crianças privadas de vida familiar ou são dotadas de algo pessoal e estável quando ainda são suficientemente jovens para fazer uso disso em alguma medida, ou então nos obrigarão mais tarde a fornecer-lhes estabilidade sob a forma de um reformatório ou, como último recurso, das quatro paredes de uma cela de prisão. (WINNICOTT, 2005, p.134)

Para o tratamento de crianças com comportamento anti-social, conforme Winnicott (2000), é primordial a oferta de um novo suprimento ambiental o qual deve ser estável. Assim, a criança pode experimentar e testar os impulsos do id fazendo ligações com o ego (se for preciso, para isso deve receber ajuda terapêutica). De uma forma geral é o ambiente que deve dar uma nova oportunidade para as ligações egóicas visto que foi a falha deste que resultou na tendência anti-social.

Winnicott (2005) considera que instituições que busquem atender aos infratores juvenis longe dos tribunais, possuem melhores condições para tratarem do assunto como uma doença e, assim possuem maiores condições de darem o atendimento nesse sentido. “Nesses alojamentos para as chamadas crianças desajustadas, existe liberdade para trabalhar com um objetivo terapêutico, e isso faz muita diferença. Os fracassos acabarão chegando aos tribunais, mas os êxitos serão bons cidadãos” (WINNICOTT, 2005, p.133).

Por outro lado, o processo judicial, de caráter complicado, doloroso e não participativo, estimula uma tendência a focalizar os erros cometidos pelo ofensor, evitando, então de se ater sobre o mais importante, o dano causado à vítima. É comum que ao longo do processo uma série de profissionais, incluindo o juiz, trabalhe na direção de determinar a culpa do infrator e de determinar o que será feito. Porém, o infrator não participa dessa decisão. É praticamente um espectador. Apenas preocupa-se em como enfrentar e ultrapassar os obstáculos que se apresentam. O processo desestimula a reconciliação. Não dá espaço para o arrependimento, muito menos para o perdão. Estimula a negação da culpa.

Sobre a justiça restaurativa, conforme Field (2005), doutora em mediação, os defensores dos encontros restaurativos normalmente consideram que a proposta inclui as necessidades e a perspectiva tanto da vítima como do infrator. Sendo o foco do trabalho no futuro, mesmo assim, é facilitado o trabalho (maior segurança) com fatos do passado. Considera-se como importante para o infrator a possibilidade de assumir a responsabilidade e de se comprometer a não reincidir no futuro. Segundo o autor, os aspectos positivos a partir de articulações apresentadas por jovens infratores foram os seguintes:

Dota-se os infratores de poder por meio da participação ativa em um processo reintegrador que não é estigmatizante; · As famílias são fortalecidas por seu envolvimento e focam suas responsabilidades; · Dá-se poder às vítimas através do envolvimento ativo e de possibilidades melhoradas de reparação; · Dá-se poder à comunidade por meio da retomada do controle da resolução de conflitos, que está nas mãos do Estado; · Assim, pode-se dizer que o processo trata o crime com seriedade. (FIELD, 2005, p.338)

Pesquisas mostram o considerável interesse de vítimas e infratores em se encontrarem. Inclusive concordam em fazerem determinados acordos em relação ao futuro, enfatizando a possibilidade de perdoar e ser perdoado, bem como de responsabilizar-se e da reparar. Field (2005) considera que o sucesso dos encontros restaurativos está relacionado a uma variável não tão simples de ser medida. A questão significativa é se “as vítimas e os infratores se sentem envolvidos no processo e na decisão e se as vítimas se sentem melhor como resultado do processo e se os infratores fazem reparações para as vítimas” (FIELD, 2005, p.388).

Scuro (2008), estudioso/doutor da área de sociologia, considerando Barberan (2002 apud Scuro 2008), diz que os modelos de justiça estão mais baseados nas necessidades pessoais do que nas potencialidades dos jovens infratores o que limita a prática e o desenvolvimento de procedimentos restaurativos. Considera-se, muitas vezes, mais fácil responder com tratamento do que com mudanças de relacionamentos. Assim, as vantagens que se apresentam para o infrator nesse novo modelo possuem um longo caminho a trilhar até que realmente leve a muitos os efeitos de uma justiça mais humanizada e, em longo prazo, preventiva.

Ao finalizar esta etapa desta pesquisa e, antes de passar para as conclusões desse estudo, considera-se importante destacar que a revisão aqui apresentada relaciona aspectos psicológicos envolvidos no comportamento criminoso e à sua abordagem considerando o modelo tradicional de justiça e alguns aspectos da emergente JR. Para tal foram abordados estudiosos tanto da área da psicologia quanto do direito (entre outros). Não se tem a pretensão de ter esgotado o assunto, mas acredita-se que o que aqui foi apresentado pode ser fonte de provocações para novos estudos e práticas. Cabe destacar que uma abordagem de uma área de tamanha complexidade como a apresentada por esse estudo necessita certamente olhares multi e/ou transdisciplinares.

Sobre o autor
José Eduardo Marques da Silva

Psicólogo. Especialização em ACP com experiência em Mediação de Conflitos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, José Eduardo Marques. A Justiça Restaurativa (PARTE III) – Implicações psicológicas para o ofensor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3854, 19 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26982. Acesso em: 5 nov. 2024.

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