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O Direito Canônico e a formação do Direito ocidental moderno.

Agenda 25/03/2014 às 13:31

Desde a Idade Média, o direito canônico vem criando institutos jurídicos e cuidando de manifestações sociais e comunitárias de seu interesse. Em alguns casos, expressa excelência em organização, formalidade e funcionamento, sendo copiado pelo ordenamento estatal.

Resumo: Tendo como escopo temático o Direito Canônico e a evolução do direito ocidental moderno, este trabalho tratará sobre o desenvolvimento deste, dando ênfase aos legados propiciados por aquele. Primeiramente, apoiando-se, sobretudo, nas pesquisas de Rafael Llano Cifuentes e Edson Luiz Sampel, apresentar-se-ão os traços fundamentais do Direito Canônico e as especificidades que o diferem do direito secular, as quais, para um pleno entendimento daquele, devem ser levadas em consideração quando do seu estudo. Após, expor-se-ão algumas das generalidades presentes no direito ocidental moderno também manifestadas pelo Direito Canônico. Seguidamente, explanar-se-á sobre as autonomias e soberanias da Igreja e do Estado e um pouco sobre a problemática que a definição daqueles termos costuma gerar. Passando-se, finalmente, às influências recíprocas entre Direito Canônico e direito estatal, focando-se nas que o primeiro teve sobre o segundo e tratando-se especialmente sobre o matrimônio, que pode ser considerada a manifestação social que mais entrelaça interesses estatais e eclesiásticos.

Palavras-chave: Direito Canônico. Direito Ocidental. Igreja. Estado. Casamento. Família.


1. INTRODUÇÃO

O Direito Canônico surge pela necessidade e com o propósito de organizar e manter a ordem de acordo com os anseios da vida em comunidade e dos preceitos divinos estabelecidos e divulgados pela Igreja Católica. Muitos dos institutos existentes no direito ocidental moderno foram inspirados ou copiados do Direito Canônico, pela funcionalidade que este revela para com os fins a que foi criado. A Igreja, instituição de grande prestígio em todo o mundo, intitula-se como soberana dentro do seu âmbito de atuação, assim como o Estado o faz, o que gera uma preocupação de ambos em manter um ordenamento jurídico eficaz aos seus propósitos e às necessidades nascidas das relações sociais manifestadas entre seus seguidores (no caso da Igreja) ou governados (no Estado). Por isso, o direito estatal e o eclesiástico colaboram-se mutuamente, haja vista que muitas das manifestações sociais reveladas no Estado são de interesse religioso e vice versa, como exemplo, o casamento e a instituição da família.


2. DIMENSÕES FUNDAMENTAIS DO DIREITO CANÔNICO

Para entender-se e interpretar-se a Igreja, necessário se faz uma observação além das questões históricas, jurídicas, filosóficas e sociológicas, que podem ser empiricamente analisadas. É preciso que nos atentemos ao seu “conteúdo interno, eminentemente espiritual e sobrenatural, que dá sentido a todas as suas manifestações externas” (CIFUENTES, 1989, p. 3).

A existência do direito na Igreja gera críticas, alegando-se que ele atrapalharia a caminhada dos fieis em direção ao Reino de Deus. Esse pensamento manifesta uma visão rasa da realidade eclesiástica, haja vista que a vida em comunidade na Igreja é um fenômeno social, e onde este último se manifesta, surge também a necessidade da presença do direito. (SAMPEL, 2001, p. 16). Assim, “se tomarmos em consideração o caráter social da Igreja, não podemos suprimir dela a estrutura jurídica nem a atividade legislativa” (CIFUENTES, 1989, p. 8).

Dessa necessidade jurídico-legislativa dentro da Igreja surgiu o Direito Canônico, que pode ser definido como “o conjunto de normas jurídicas, de origem divina ou humana, reconhecidas ou promulgadas pela autoridade competente da Igreja Católica, que determinam a organização e atuação da própria Igreja e de seus fieis, em relação aos fins que lhe são próprios” (ibid., p. 15).

Pela parte final desta definição, tem-se que o Direito Canônico possui fins próprios, quais sejam: cuidar da organização e atuação da Igreja e de seus fieis. Assim, o Código Canônico possui “muitos cânones que são verdadeiros mecanismos de uma ‘cidadania laical’” (SAMPEL, 2001, p. 17), mas, “ao contrário do direito estatal, o ordenamento jurídico eclesiástico possui normas [...] de caráter estritamente divino” (Ibid., p. 18).


3. GENERALIDADES DO DIREITO ESTATAL PRESENTES NO DIREITO CANÔNICO

3.1. Direito positivo

Podemos definir direito positivo como “o conjunto de normas estabelecidas pelo poder político que se impõem e regulam a vida social de um dado povo em determinada época” (DINIZ, 1999, p. 243). Ao se falar em poder político e povo, tal definição foi notoriamente elaborada em relação ao direito estatal. Sem embargo, no direito eclesial as normas também são emanadas de uma autoridade (eclesiástica) competente e direcionadas a um povo: todos os católicos (SAMPEL, 2001, p. 37).

Em se tratando de autoridade para legislar, há a teoria do monismo jurídico, pela qual, apenas considera-se legitimamente jurídico o direito elaborado pelo Estado. Porém, além de ultrapassada esta teoria, a realidade cotidiana contrasta com tal pensamento, pois, o Direito Canônico, além de outros ramos de direito paraestatal (direito social do trabalho, direito esportivo etc.), “mobiliza advogados, juízes eclesiásticos, notários e centenas de pessoas que recorrem à justiça eclesiástica no afã de solucionar problemas de ordem jurídico-moral”. (Ibid., p. 38).

3.2. Direito objetivo

A doutrina define direito objetivo como o “complexo de normas jurídicas que regem o comportamento humano, prescrevendo uma sanção no caso de sua violação” (DINIZ, 1999, p. 244). A sanção é parte essencial na vida do direito, já que, sem ela, apenas os mais virtuosos cidadãos cumpririam as leis. Contudo, a não observância de determinada norma estabelecida pelo Estado gera uma punição. Por exemplo, ao devedor que não paga sua dívida, pode recair o peso de ser-lhe retirados coercitivamente seus bens. (SAMPEL, 2001, p. 38).

Ora, diante disto, também o Código Canônico constitui-se em direito objetivo. Apesar de o Direito Canônico não ser possuidor de eficazes mecanismos sancionadores como o estatal, ele também prevê punições em caso do descumprimento de seus cânones. A mais pesada sanção imposta pela Igreja em certo é a excomunhão. A maioria das pessoas encara esta com presunção anedótica. Deveras, para o crente, esta punição é algo formidável (Ibid., p. 38-39).

3.3. Direito público e direito privado

A clássica divisão entre direito público e direito privado tem seu berço no direito romano. Enquanto o direito público tratava das questões do Estado, o privado cuidava dos problemas particulares. Esta divisão, explicam os especialistas, também presente está no direito canônico: ao passo que o direito administrativo canônico e o direito processual canônico são ramos do direito público eclesial (Ibid., p. 40-41), e o direito privado canônico é “o sistema de leis mediante as quais se determinam os direitos e deveres dos membros da Igreja, para com o seu governo e santificação” (CIFUENTES, 1989, p.26).

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4. AS SOBERANIAS DA IGREJA E DO ESTADO

4.1. A Igreja como sociedade autônoma e soberana

A Igreja atribui para si mesma uma série de características, como: a) ser uma sociedade originária e independente do Estado, em razão de seu fundador ser o próprio Deus; b) ser capaz de autogovernar-se, coordenando e ordenando suas atividades da maneira mais adequada à consecução de seus fins; c) ter plenitude jurisdicional nas matérias vinculadas sob o âmbito de seu fim, sendo soberana nestes assuntos. Com isso, A Igreja “sempre proclamou seu caráter de sociedade independente do poder estatal [...]. Como tal, procurou-se dar um ordenamento jurídico adequado à sua natureza” (CIFUENTES, 1989, p. 29-30).

 “As razões pelas quais a Igreja afirma sua soberania fundamentam-se principalmente na Sagrada Escritura e na sua própria natureza e desenvolvimento histórico” (Ibid., p. 35).

4.2. O Estado como sociedade autônoma e soberana

O homem tende sempre a viver em sociedade e esta reclama a presença de um direito, que por sua vez gera a instituição do Estado. Dentre os elementos constituintes deste, temos: a) elementos materiais: povo e território, ou seja, a existência de um espaço físico e uma população a ser governada; b) elementos formais: a soberania, que, em um contexto interno, é a autoridade estatal plena dentro de um território e, externamente, pressupõe a independência do Estado em relação a outras sociedades; c) elementos teleológicos: dizem respeito à essência da finalidade estatal, que pode ser definida como o bem comum social (ibid., 44-48).

Desse modo, vê-se o poder estatal como algo necessário à convivência em comunidade e isto justificaria sua autonomia e soberania para o bom convívio entre os cidadãos. Paulo Bonavides (1999, p. 155-157) destaca a problemática que gera esta concepção de autoridade necessária e inquestionável, porém, apontando que vários estudiosos confirmam a existência daquelas duas prerrogativas no Estado moderno.


5. INFLUÊNCIAS RECÍPROCAS ENTRE O DIREITO CANÔNICO E O ESTATAL

Inegável é a influência que o direito estatal sofreu do Direito Canônico. Exemplo disto, temos o fato de que em várias faculdades, mesmo as públicas (a USP no Brasil é um caso), até meados do século XX lecionava-se ao lado do direito romano, o Canônico (SAMPEL, 2001, p. 58). Ademais, é denso e contínuo o aporte dado ao Direito Canônico pelo Direito Civil, como o significado que o trabalho dos pandectistas e civilistas do século XIX teve à ciência canônica (CIFUENTES, 1989, p. 23).

Aqui, interessar-nos-á um maior aprofundamento entre alguns dos significativos legados que o Direito Canônico propiciou ao direito ocidental moderno. Elencados a seguir, estão alguns deles.

5.1. Influências do Direito Canônico em face do Direito Estatal

5.1.1. Influência no ordenamento jurídico ocidental

Além de já ter sido matéria de estudo em várias faculdades de toda a América, Europa e Ásia (e ainda o ser em algumas) o Direito Canônico tem significativa influência em todo o ordenamento jurídico ocidental (Ibid., 24)

Destacada é a ação sofrida por legislações ocidentais em relação ao direito eclesial. Rafael Llano Cifuentes (1989) remete-nos a tal afirmação:

Pense-se que não é difícil verificar que, em legislações como a italiana, institutos jurídicos são totalmente regulamentados pelo Direito Canônico através do sistema de “remissão” ou “reenvio”, ou que, em países como o Brasil e muitos outros, se reconhece valor jurídico a determinados atos como o consentimento matrimonial, realizados sob o amparo e formalidades do Direito Canônico. [...] Na redação das constituições – onde de um modo geral existem referências à Igreja e à religião -, no Direito Internacional e Processual, na legislação sobre educação e especialmente no Direito de Família, o conhecimento do Direito Canônico apresenta-se com frequência como elemento indispensável (p. 24-25).

5.1.2. Teoria da pessoa jurídica

Há outra série conceitos e institutos jurídicos criados pelo Direito Canônico e aderidos pelo direito secular ocidental. Tem-se, por exemplo, a teoria da pessoa jurídica, que não foi, de forma alguma, construída pelos romanos, mas pela Igreja, que sempre se enxergou como uma universalidade e, em certa altura da Idade Média, preocupou-se em enfrentar problemas relacionados a patrimônio comum, representação e responsabilidade. Assim, foram criados alguns princípios: autonomia da associação (direito de corporação); direito de a corporação jurisdicionar sobre seus componentes; direitos de os membros da corporação serem ouvidos sobre pena de nulidade de alguns atos; ideia de patrimônio comum entre os membros da corporação, ideia de delito coletivo, se este fosse cometido pela maioria dos membros da corporação. Contudo, se o líder corporativo ou o governo de determinado local cometesse crime, somente ele seria julgado e não todos os corporativistas ou governados. (SAMPEL, 2001, p. 60-61). “Note-se, assim, que se estava nos albores do que hoje se conhece por teoria da pessoa jurídica. Foram os canonistas, na sua perspicácia, os primeiros a intuir a importância deste instituto tão momentoso na atualidade em todos os países” (Ibid., p. 61).

5.1.3. Cultura jurídica

Sobre a formação da cultura jurídica, pode-se dizer que com os canonistas surgiu-se a primeira classe de juristas profissionais. Eles foram os responsáveis por formalizar e racionalizar o direito, já que foi a Igreja que inventou o direito como disciplina oficial dentro das universidades, principiado em face do Direito Canônico, que passou a influenciar seculares e eclesiásticos, sendo, assim, difundido com maior avidez (Ibid., p. 61).

5.1.4. Teoria sobre o negócio jurídico

O negócio jurídico, definido no antigo Código Civil brasileiro de 1916, por exemplo, como sendo aquele que tenha por escopo imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos (art. 81), também teve como fonte de sua teoria o Direito Canônico, começando esta a erguer-se quando os canonistas iniciaram estudos pormenorizados sobre a diversidade de casos do direito matrimonial. Estas especulações fomentaram o começo da doutrina laical sobre o negócio jurídico, uma vez que trouxe à tona as práticas que dão forma às relações intersubjetivas (Ibid., 62).

5.1.5. Direito Público

Mesmo o chamado direito público, que percorreu peculiares caminhos durante o seu desenvolvimento, também teve seus primeiros contornos conduzidos pelo Direito Canônico. Toda a problemática envolvendo o comportamento estatal em face de particular foi, primeiramente, de maneira análoga, manifestada nos arrebóis do Direito Canônico, quando este delegava seus atos administrativos e já definia os motivos que poderiam gerar nulidade ou revogabilidade destes (Ibid., p. 63).

5.1.6. Direito processual

Vê-se também no desenvolvimento do direito processual uma enorme influência do Direito Canônico.  (Ibid., p. 63). Havia no Direito Romano, a existência do processo, contudo, com o declínio daquele passou a ocorrer um total descrédito populacional à organização propiciada pelo Estado e isto foi benéfico à ascensão do Direito Canônico, que passou a exercer grandiosa implicação nas relações sociais vigentes (NAVARRO, 1994, p. 51). Na Idade Média tiveram-se documentos promulgados ou adotados pelo poder eclesiástico que são prolatores dos albores processuais, como o Decreto de Graciniano, de enorme contribuição para uniformização do estudo jurídico e os posteriores Decretais, que foi o ajuntamento, de responsabilidade do Papa Gregório IX, das leis eclesiásticas que sucederam o supramencionado Decreto (Ibid., p. 56). “As decretais de Gregório IX exerceram grande influência nas legislações laicas e eram utilizadas nos juízos temporais, face a sua unidade, garantia e segurança, características do Direito Canônico” (Ibid., p. 56).

O próprio inquérito, no qual não é relevante o contraditório (não ocorre oitiva da parte contrária) “é uma instituição tipicamente canônica. Assim, o inquérito policial, tão conhecido por nós outros, remonta à Idade Média. O inquisidor, aquele que inquire, é, concomitantemente, acusador, defensor e juiz. Esta é a principal característica do inquérito” (SAMPEL, 2001, p. 64).

O Papa Gregório VII, intencionando afirmar a independência da Igreja ante as entidades estatais, levou à frente todo “o desenvolvimento racional e formal do processo (petição inicial, contestação, citação, oitiva de testemunhas de acusação, oitiva de testemunhas de defesa, alegações finais e sentença)” (Ibid. p. 64). Posteriormente, reis e príncipes europeus copiaram estas instituições.

Ademais, Edson Luiz Sampel (2001) elenca, de acordo com José Reinaldo Lima Lopes, algumas especiais características legadas ao nosso processo atual:

1ª) trata-se de um processo conduzido por profissionais do direito; 2ª) reconhece um sistema de recursos; 3ª) adquiriu uma natureza inquisitorial mais do que adversarial; 4ª)impôs a escrita sobre a oralidade. Outrossim, não se pode deslembrar o fato de que até o surgimento do processo canônico, as contendas eram compostas mediante a aplicação dos juízos de Deus ou ordálias. O Direito Canônico mitigou as penas atrozes, funcionando também como um fator suasório na consciência das autoridades seculares (p. 64).

Percebe-se, portanto, a variedade de conceitos herdados, pelo direito processual moderno, do Direito Canônico. Conforme Sampel (2001, p. 65), “se fôssemos discorrer a respeito de todas as notáveis influências que o direito processual civil moderno sofreu do Direito Canônico, teríamos de dedicas uma tese unicamente para este objetivo”.

5.1.7. O aparecimento de algumas figuras jurídicas

Como acima declarado, o processo escrito teve sua criação no Direito Canônico, e com ele surgiu a figura do notário. O direito atual adotou semelhante figura, que no direito brasileiro, a exemplo, é representado pelos chamados escreventes, que são dotados de fé pública, reduzindo a termo informações importantes dentro do processo e dando celeridade a muitos feitos processuais, como as audiências de testemunhas (SAMPEL, 2001, p. 65).

Outro profissional presente no direito moderno, de imprescindível relevância, diga-se de passagem, e que foi criado no bojo do Direito Canônico, é o próprio advogado. No processo de inquisição, quando o réu negava a acusação que lhe era imputada, o juiz dava-lhe um advogado que jurava defendê-lo e, ademais, não tendo recursos financeiros, nada era cobrado, em termos de honorários advocatícios, do réu (Ibid., 65). Nota-se semelhante atitude estatal hodiernamente, na situação em que o Estado oferece um defensor público encarregado da defesa da parte em todas as fases do processo, para os que provam insuficiência de recursos. Tal garantia é prevista na nossa Carta Cidadã de 1988 (art. 5º, inc. LXXIV).


6. MATÉRIAS MISTAS E O VALOR JURÍDICO DO MATRIMÔNIO

Rafael Llano Cifuentes (1989) define matérias mistas como:

aquelas que diretamente se referem ao mesmo tempo a um fim espiritual e a um fim temporal e que, portanto, caem sob o domínio direto da Igreja e do Estado. Daí que nesse setor jurisdicional comum venha a ser necessário um acordo que delimite claramente as competências (p. 251).

Entre estas matérias, temos: “o matrimônio, ensino religioso e secular, reconhecimento de filhos ilegítimos, questões relativas ao direito à vida (aborto, eutanásia etc.), união de fato, assistência religiosa nas instituições totais (caserna, hospitais, internatos etc.)” (SAMPEL, 2001, p. 68).

Este trabalho restringir-se-á a tratar sobre o matrimônio no Brasil, que, entre as matérias mistas, “talvez seja o que mais preocupa as autoridades eclesiásticas” (Ibid., p. 68) e aquele que “destaca-se pela sua importância, [...] sobre o qual a Igreja, em todos os acordos e concordatas, tem mostrado singular interesse” (CIFUENTES, 1989, p. 251).

6.1. O matrimônio no Brasil

“Antes da proclamação da República, no regime de confessionalismo regalista vigente no Império, vigorava apenas o matrimônio religioso. A partir da separação entre a Igreja e o Estado [...] o religioso tornou-se mero concubinato incapaz de produzir qualquer efeito jurídico” (Ibid., p. 264). Contudo, desde que proclamado como República, o Brasil vem passando por um processo harmonizador no que tange às relações Igreja-Estado. Na Constituição de 1891, houve uma total ruptura ao reconhecimento estatal sobre o casamento religioso (Ibid., p. 251-252). Assim dizia o art. 72, § 4º da citada Carta: “A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita.” (Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao91.htm>. Acesso em: 06 maio 2013). Tal atitude do legislador caracterizava-se como uma antítese à realidade social, pois a sociedade brasileira, praticamente toda católica, tinha o casamento religioso como o que deveria ser reconhecido. Com a declaração do texto constitucional, os cidadãos, para gozarem dos efeitos civis matrimoniais, passaram a realizar dois casamentos: o “civil (único válido para o Estado) e o religioso (único válido para a Igreja)” (SAMPEL, 2001, p. 69).

Com o passar dos anos, vieram mudanças na legislação brasileira e gradativamente houve um processo de harmonização entre Estado e Igreja a respeito dessa desvinculação. Ante a realidade social, aquela ruptura criada gerava reclamações por uma “reformulação do sistema estabelecido” (CIFUENTES, 1989, p. 252).

Rafael Llano Cifuentes (1989) mostra-nos as diretrizes tomadas pela legislação brasileira nesse processo de aproximação, em que o Estado passa a dar algum reconhecimento ao matrimônio religioso:

Esta desvinculação foi-se suavizando num processo de aproximação ascendente, desde a Lei n.º 379, de 16 de janeiro de 1937, passando pelo Decreto-Lei n.º 3.200, de 19 de abril de 1941, até chegar à reformulação completa estabelecida pela Lei n.º 1.110, de 23 de maio de 1950, que concretizou as determinações gerais do Art. 163 da Constituição Federal de 1946 recolhido mais tarde textualmente no Art. 175 da Constituição de 1969 (p. 252).

Apesar de não ser total, o reconhecimento dado ao casamento religioso pelas Constituições de 1946 e 1969 pelo menos denotava um afastamento ao radical laicismo legislativo manifestado com o início da República (Ibid., p. 252), pois se passava a dar valor civil ao casamento religioso desde que este fosse inscrito no registro público competente. Já a Carta Cidadã de 1988 passou a dar ao matrimônio canônico os mesmos efeitos do civil, alegando que o casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei (Art. 226, § 2º).


7. CONCLUSÃO

O Direito apresenta-se onde existe vida em sociedade e, sendo a Igreja uma organização onde as relações sociais entre seus seguidores são manifestadas veementemente das mais variadas maneiras, necessário fez-se o nascimento de um ordenamento jurídico específico para atender aos anseios humanos e divinos, nos moldes essenciais da própria criação daquela instituição.

Observa-se que várias são as heranças fornecidas pelo Direito Canônico ao direito ocidental moderno. Desde a Idade Média, aquele vem criando institutos jurídicos e cuidando de manifestações sociais e comunitárias de seu interesse, de tal forma, que, em casos, expressa excelência em organização, formalidade e funcionamento. Por isso, o Estado em não raras matérias jurídicas implanta institutos análogos ou integralmente iguais aos que funcionam no ordenamento jurídico eclesiástico.

Não por acaso o Estado influencia-se, em sua organização jurídica, por aquilo que adequadamente funciona no ordenamento jurídico eclesiástico, haja vista que a Igreja agrega milhares de fieis seguidores e, se as leis desta são capazes de estabelecer, dentro das suas propostas, uma funcional ordem normativa, há de considerarmos natural a atitude estatal de aplicar paralelamente, aos seus cidadãos, os mecanismos de ordem que dão fluência à organização eclesial, afinal os indivíduos que vivem sob a égide estatal são, em boa parte, fieis da Igreja.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BONAVIDES, Paulo. Ciência política. São Paulo: Malheiros, 1999.

BRASIL. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 24 de fevereiro de 1891).  Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constitui%C3%A7ao91.htm>. Acesso em: 06 mai. 2013.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.  Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 06 mai. 2013.

CIFUENTES, Rafael Llano. Relações entre a Igreja e o Estado: a Igreja e o Estado à luz do Vaticano II, do Código de Direito Canônico de 1983 e da Constituição Brasileira de 1988. 2. ed. atual. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

NAVARRO, Luiz George. A defesa do réu na história do processo. São Paulo, 1994. Tese de Mestrado – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo.

SAMPEL, Edson Luiz. Introdução ao Direito Canônico. São Paulo: LTR, 2001.

Sobre o autor
Antônio Rogério Lourencini

Possui Graduação em Direito pela UNESP - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (2017); Discente do Programa de Pós-Graduação em Direito, Curso de Mestrado, da UNESP; Estudante do Núcleo de Pesquisas Avançadas em Direito Processual Civil Brasileiro e Comparado, da UNESP; Oficial de Promotoria do Ministério Público do Estado de São Paulo. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8921531226046140

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOURENCINI, Antônio Rogério. O Direito Canônico e a formação do Direito ocidental moderno.: Dos fundamentos do direito canônico à sua geral influência no ordenamento jurídico estatal, mormente no direito de família (matrimônio). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3919, 25 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27059. Acesso em: 2 nov. 2024.

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