Desde a antiguidade, o homem demonstra ter o instinto de viver em grupo, e de estar inserido em um núcleo onde é capaz de se autorrealizar, havendo o registro, nas mais antigas civilizações, de que a família foi o principal meio para aproximação e estabelecimento de vínculos sociais. Com o desenvolvimento da sociedade, entretanto, a procriação deixou de ser a única motivação do matrimônio, que atualmente tem por finalidade o bem-estar dos consortes e a busca pela recíproca felicidade.
O Livro IV do Código Civil1, que disciplina o Direito de Família, dispõe em seu art. 1.511 que o casamento estabelece “comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”, destacando-se, especialmente com relação aos deveres matrimoniais, que o aludido diploma legal atribui a ambos os consortes a fidelidade recíproca, a vida em comum, a mútua assistência, o sustento, a guarda e a educação dos filhos, bem como o respeito e a consideração mútuos.
Em outras palavras, a partir do momento em que o juiz declara homem e mulher casados perante a lei, compete-lhes observar rigorosamente tais preceitos, que persistirão até que seja extinta a sociedade conjugal pela morte de um dos cônjuges, pela nulidade ou anulação do casamento, pela separação judicial ou pelo divórcio.
Todavia, a mudança de comportamento ocorrida nas últimas décadas, em parte em razão da conclamada liberdade sexual, ensejou significativo reflexo no que se refere ao respeito à entidade familiar e ao matrimônio. Hoje, existem os mais variados arranjos familiares, a mulher divorciada não é mais desvalorizada, o adultério deixou de ser conduta penalmente relevante, e o homem, inclusive, já assume sozinho a criação dos filhos.
Ainda que a Constituição Federal tenha elevado a família ao status de base da sociedade, a mudança de paradigma também implicou na perda dos mais preciosos valores morais. Só se respeita quando é respeitado. Se o casamento não é mais considerado satisfatório, um envolvimento extraconjugal não é mais visto como uma grave ofensa à honra. A mulher nunca foi tão agredida física e emocionalmente como em tempos atuais. Tanto assim, que criamos Juizados e Delegacias especializadas para coibir esta inadmissível forma de violência, que, via de regra, acontece com mais frequência dentro do próprio seio familiar, tendo o companheiro ou marido como agressor.
De outro lado, há relacionamentos que fracassaram, pois o sentimento que um dia uniu o casal se perdeu em alguma discussão sobre as contas domésticas ou a rotina escolar dos filhos. A mulher conquistou independência financeira que a induz a acreditar que não prescinde emocionalmente de um parceiro que não atenda mais seus desejos ou que não corresponda às suas expectativas. Além disso, o amor e o respeito podem se perder, e, quando não houver nenhuma razão para a manutenção do matrimônio, a extinção da sociedade conjugal parece uma solução sem alternativas.
Para casais emocionalmente saudáveis, qualquer crise pode ser superada, mas uma dificuldade mal resolvida pode ser destrutiva quando surge a possibilidade de um terceiro trazer graça e uma falsa perspectiva de felicidade ao casamento resumido ao tédio.
A descriminalização do adultério é relativamente recente, mas esta prática sempre existiu na história da humanidade, pelos mais variados motivos, desde a disputa de poder até a simples necessidade de satisfação sexual. Liberalidade pura e desmedida, que não só constitui violação moral, mas sobretudo legal, visto que a fidelidade e o respeito mútuo são deveres conjugais impostos pelo Código Civil.
De fato, enquanto o casamento não for declarada extinto, ambos os consortes deverão ser fiéis, respeitar-se e ter consideração um pelo outro, e, igualmente, deverá haver mútua assistência entre eles, inclusive emocional.
Quando o amor e o respeito não estão presentes na rotina do casal, o zelo e o cuidado não fazem mais parte dos ideais pessoais e comuns, de modo que a contenta e a discórdia podem ser facilmente percebidas, e, em muitos momentos, não são superadas sequer após a extinção do vínculo conjugal, prejudicando até mesmo a criação dos filhos em comum.
Há consortes que ignoram totalmente o mandamento legal, que não cumprem o dever de fidelidade e consideração, e consequentemente violam o direito do outro de ser respeitado e ser protegido em sua intimidade. Atinge-se a esfera pessoal daquele com quem se decidiu dividir a vida, e que foi escolhido para ser testemunha da sua história.
Esta transformação de valores caros em meros descompromissos, tem resultado na distribuição de inúmeras petições de indenização por dano moral conjugal nos Tribunais pátrios. Algumas decisões jurisprudenciais são insensíveis em relação aos prejuízos emocionais e ignoram danos desta natureza, consequentemente julgando improcedentes os pedidos reparatórios. Outros singulares magistrados, em contrapartida, compreendem a dimensão de marcas psicológicas nos cônjuges que foram vítimas de grave violação dos seus mais íntimos direitos, especialmente o da honra subjetiva.
É certo que todo e qualquer matrimônio em que os consortes não estão dispostos a fazer cumprir o juramento firmado no dia de núpcias pode ser conduzido ao insucesso. A rotina, a falta de amor ou de respeito passam a ser problemas quando ambos decidem interromper o “para sempre”.
Entretanto, para estas situações, onde a separação dos corações antecedeu qualquer decisão judicial extintiva do vínculo conjugal, não há que se falar em indenização por dano moral, visto que este fato, por si, não ultrapassa os limites dos inevitáveis desgostos e frustrações pessoais.
De outro lado, há casos em que a falência do matrimônio é precedida de uma série de trágicos acontecimentos. A título de exemplo, decisão2 do Tribunal de Justiça de Santa Catarina julgou procedente pedido reparatório de varão que descobriu em um só tempo que a cônjuge-virago possuiu relacionamentos extraconjugais durante toda a constância do matrimônio, que o filho que acreditava ser seu, em verdade, era descendente do amásio, tendo a mulher lhe ocultado a origem biológica da criança durante quase uma década. Não obstante isso, os autos revelaram que, inclusive, o marido foi exposto a situação constrangedora em seu ambiente de trabalho quando a ex-esposa revelou publicamente o adultério, expulsando-o do lar comum e admitindo o amante como novo chefe da família [desfeita].
No referido acórdão, foram elencados inúmeros precedentes jurisprudenciais e posicionamentos doutrinários que fundamentaram a condenação ao pagamento de verba indenizatória, no juizo ad quem, majorada para R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) ao homem que perdeu o referencial familiar e que teve sua dignidade violentada pela conduta desonrosa atribuída à então esposa.
Nessas circunstâncias, é de se presumir que não há apenas o sofrimento pelo término do casamento. Acontece um abrupto rompimento do vínculo paterno-filial existente entre o alegado pai e o filho fruto da traição. Este homem perdeu a esposa, a família, o filho e a dignidade.
Por certo que há consortes vítimas deste comportamento que conseguem superar tais acontecimentos com surpreendente maturidade emocional. Todavia, a fragilidade pode dar lugar a irreversíveis danos psicológicos, que prejudicarão toda a existência da pessoa enganada, que, sem o adequado tratamento e acompanhamento profissional, não conseguirá lidar sozinha com estas feridas sentimentais.
Embora as relações matrimoniais submetam os cônjuges a particulares modos de enfrentamento de situações de conflito, é possível afirmar que em algumas hipóteses um dos pares haverá de seguir com danos psicológicos, e a intensidade destes prejuízos emocionais é que norteará a definição da responsabilidade civil no caso concreto.
São inúmeros e até inimagináveis os exemplos de situações que podem implicar intenso sofrimento, não se olvidando de casos, em que, no entanto, determinadas pessoas poderão revelar maturidade suficiente para não se deixar influenciar pelos aborrecimentos do casamento desfeito, e não há que se falar em dano moral indenizável.
Logo, o bom senso há de prevalecer para se avaliar, caso a caso, ser imprescindível a estipulação de verba pecuniária capaz de viabilizar o custeio de tratamento psicológico, de proporcionar momentos de alegria e de contentamento, obtidos através de uma viagem ou da aquisição de bens materiais.
Cria-se, assim, uma alternativa para se superar as marcas do casamento drasticamente falido. Não estamos a tratar de uma espécie de locupletamento indevido, interessado em mera benesse pecuniária. Ao contrário, a possibilidade de indenização por dano moral motivado por violação dos deveres matrimoniais somente é vislumbrada quando implica sérios danos emocionais, inclusive com prejuízos à honra da vítima.
Há que se registrar que, em hipóteses tais, a indenização dificilmente cumprirá a finalidade de compensar integralmente a dor causada pela quebra de confiança, pela humilhação e desprezo, assumindo a verba indenizatória instituída pelo magistrado, portanto, o objetivo de reprimir o causador do dano, repreendê-lo para que não venha a repetir o comportamento praticado, servindo, pois, de exemplo à sociedade.
Portanto, deve-se avaliar com absoluta cautela as situações jurídicas submetidas ao crivo do magistrado de Direito de Família, que, pela natureza de sua função, deve demonstrar sensibilidade para lidar com a intimidade e as emoções dos consortes em litígio, mormente diante da possibilidade de estarem enfrentando o mais delicado e difícil momento de suas vidas.
A propósito, sobre as consequências emocionais da separação ou divórcio, destaca-se a lição sempre precisa de Jorge Trindade, para quem,
A separação e o divórcio implicam também um processo psicológico que corresponde a um conjunto de sentimentos, pensamentos e comportamentos destinados à resolução do conflito emocional entre duas pessoas. Este é de natureza interna e sua resolutividade depende da personalidade, dos mecanismos conscientes e principalmente inconscientes que são utilizados para a busca do equilíbrio, bem como das estratégias que cada pessoa, na parte mais recôndita da sua existência e de sua alma, põe em ação para superar a perda, elaborá-la e aproveitá-la como uma experiência de vida interior3.
Insisto registrar que cada pessoa reage de maneira diferente diante dos traumas decorrentes das adversidades. Todavia, o seio familiar é a mais preciosa e a mais importante constituição de relações íntimas, alicerçadas em valores sentimentais de confiança e de bem-estar, razão porque não são raros os casos em que os ex-consortes apresentam dificuldade de compreender e se adaptar à nova realidade, a de família desfeita.
Inclusive, há que se destacar que a entidade familiar merece especial proteção do Estado por força de mandamento Constitucional, de modo que qualquer comportamento atentatório aos valores morais e éticos do matrimônio deve ser repreendido, garantindo às vítimas de graves danos morais no âmbito conjugal a respectiva reparação pecuniária.
No sentido desta conclusão, Wladimir Valler esclarece que
A violação dos deveres explícitos ou implícitos do casamento, constituindo ofensa à honra e à dignidade do consorte, caracteriza injúria grave, e, por conseguinte, pressuposto autorizador da separação judicial. A separação judicial ou o divórcio importam em um dano para o cônjuge atingido pela conduta antijurídica do outro, violadora dos valores conjugais que sustentam as relações familiares, ensejando a reparação dos danos morais4.
Nesta linha de raciocínio, pela especial proteção da entidade familiar, quando restar efetivamente demonstrado que a violação dos deveres matrimoniais ensejou grave e intenso sofrimento psicológico ao cônjuge ofendido, o magistrado deverá analisar os pressupostos da responsabilidade civil e fixar o quantum indenizatório suficiente para a reprimenda, fundamentando seu posicionamento sempre no respeito ao princípio da dignidade humana inerente ao nosso Estado Democrático de Direito.
notas
1 BRASIL. Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm>. Acesso em: 14 mar 2014.
2 Dados do processo não citados por motivo de segredo de justiça.
3 TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para operadores do Direito. 4. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2010. p. 293.
4 VALLER, Wladimir. A reparação do dano moral no direito brasileiro. 2. ed. Campinas: Editora E. V.,1994. p. 159/160.