Atualmente discute-se a extensão do direito de não produzir prova contra si mesmo, subsistindo ampla divergência sobre as situações abarcadas pelo respectivo direito, cuja base normativa está prevista no art. 5º, LXIII, da Constituição Federal, art. 8º, § 2º, “g”, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), art. 14, n. 13, “g” do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos[1] e art. 186, do Código de Processo Penal.
Eugênio Pacelli de Oliveira analisa a questão atinente aos limites do nemo tenetur se detegere no direito pátrio, asseverando que “nenhum texto de tratado internacional abriga as pretensões de extensão de não autoincriminação para além de suas forças, isto é, como direito (esse sim!) de não depor contra si e nem se declarar culpado e como garantia individual de proteção contra intervenções corporais ilegítimas”[2], demonstrando que para parcela da doutrina brasileira o direito ao silêncio tem recebido interpretação extremamente ampliativa, possivelmente extrapolando sua origem histórica e o conteúdo positivado em legislações estrangeiras.
De outro lado, sustentando um amplo espectro de proteção do direito ao silêncio, os autores portugueses, Vera Lucia Raposo e Jónatas E.M. Machado, pontificam que “na medida que se trata de um direito fundamental, o mesmo deve ser construído com um âmbito de protecção alargado. Do mesmo modo, havendo dúvidas sobre o respectivo conteúdo, deve optar-se pela interpretação mais favorável ao respectivo titular.” [3]
No âmbito jurisprudencial brasileiro, o julgamento do HC 99.289 permite identificar com clareza as prerrogativas básicas decorrentes do direito a não autoincriminação: “(a) o direito de permanecer em silêncio, (b) o direito de não ser compelido a produzir elementos de incriminação contra si próprio nem de ser constrangido a apresentar provas que lhe comprometam a defesa e (c) o direito de se recusar a participar, ativa ou passivamente, de procedimento probatório que lhe possam afetar a esfera jurídica, tais como a reprodução simulada (reconstituição) do evento delituoso e o fornecimento de padrões gráficos ou de padrões vocais para efeito de perícia criminal.”[4]
Com efeito, lançadas as premissas iniciais, pretende-se abordar neste trabalho o tema atinente à (in)viabilidade de a autoridade policial ou mesmo o magistrado determinar a intimação do investigado/acusado para fins de interrogatório, sob pena de condução coercitiva, prática comumente observada na práxis jurídica, respaldada na redação do art. 260, CPP: “se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença”, o qual, ao menos numa leitura superficial, tornaria prescindível maiores digressões sobre a incidência do ônus estabelecido em decorrência do descumprimento da intimação da autoridade policial/judicial.
Entretanto, a solução aventada não é imune a críticas, mormente porque o Código de Processo Penal e de modo particular a previsão legal suscitada remontam à década de 40, tornando imperioso o exame de sua compatibilidade com tratados internacionais ou mesmo com o texto constitucional de 1988.
Nesse contexto, tecendo severas objeções às consequências legais pelo não comparecimento do réu ao interrogatório, particularmente a obrigatoriedade forçada da presença, Adauto Suannes assevera que: “o réu que, por força da Constituição Federal, tem o direito de ficar calado, deve deixar seus afazeres habituais (com perda do dia de serviço, por exemplo), para ir ao fórum dizer que nada tem a dizer, mesmo tendo defensor constituído, que o represente no processo e que, portanto, pode falar por ele. Positivamente, é muito amor a nossa lusitana herança burocratizante.”[5]
De fato, a imposição de condução coercitiva ao investigado/acusado com o objetivo de realizar o ato processual em análise é absolutamente inócua em cotejo com a garantia do direito de não produzir prova contra si mesmo, até porque eventuais informações atinentes à primeira parte do interrogatório (art. 187, §1º, CPP), na qual o direito ao silêncio é de discutível incidência[6], poderiam ser transmitidas pelo advogado mediante simples petição.[7]
Na mesma linha do raciocínio trazido acima, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 346.677, o Ministro Fernando Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça, assentou que o comparecimento aos atos processuais é um direito e não dever do réu, motivo pelo qual “nem mesmo ao interrogatório estará obrigado a comparecer, mesmo porque as respostas às perguntas formuladas fica ao seu alvedrio.”[8]
Com base nessas premissas, indaga-se: qual a finalidade de impor a condução coercitiva ao investigado/acusado para ser interrogado? Obviamente que resguardada a possibilidade do silêncio e inexistindo interesse em colaborar com as investigações, aludida obrigação somente se justificaria para coagir e intimidar[9] o investigado/acusado, ou ainda, para tolerar que os meios de comunicação achincalhem e humilhem o cidadão, exibindo imagens do comparecimento ao ato ou mesmo noticiando, com destaque, a ausência de colaboração com a persecução penal (como se esta circunstância fosse suficiente para fragilizar a presunção de inocência e as demais garantias processuais penais).
Não se pode perder de vista a antiga discussão em torno da natureza jurídica do interrogatório, classificado pela doutrina como meio de prova ou meio de defesa. Na realidade, nota-se que não são alternativas excludentes, isto porque, como bem assinala Aury Lopes Junior “se de um lado potencializamos o caráter de meio de defesa, não negamos que ele também acaba servindo como meio de prova, até porque, ingressa na complexidade do conjunto de fatores psicológicos que norteiam o ‘sentire’ judicial materializado na sentença.”[10]
De qualquer sorte, o caráter probatório do interrogatório é eventual e condicionado, dependendo necessariamente da estratégia defensiva em afastar a autodefesa negativa e prestar as declarações pertinentes ao esclarecimento da imputação deduzida em detrimento do acusado, realçando o caráter defensivo deste ato processual e a incompatibilidade da postura da legislação processual penal em obrigar o réu a produzir prova contra si mesmo.
Cumpre esclarecer, porém, que a condução coercitiva pode ser entendida como medida adequada na hipótese de inexistirem elementos suficientes e aptos para identificar e qualificar o investigado/acusado[11], no entanto, somente terá cabimento quando não se mostre possível ao defensor fazê-lo por meio de petição ou outro meio menos gravoso.
Finalmente, compreendido o direito ao silêncio como garantia fundamental do indivíduo, incoerente a imposição de qualquer ônus como consequência de seu exercício e consequentemente a paradoxal condução coercitiva do acusado que não atenda à intimação para o interrogatório, evidenciando que o art. 260 do Código de Processo Penal apenas terá aplicabilidade em caso excepcionalíssimo.
Referências
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 346.677/RJ, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, SEXTA TURMA, julgado em 10/09/2002, DJ 30/09/2002, p. 297.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 349703, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 99.289, rel. Min. Celso de Mello, 2.ª T., j. 23.06.2009.
DOTTI, René Ariel. Garantia do direito ao silêncio e a dispensa do interrogatório. In: Doutrinas essenciais de processo penal. v. III. Org. NUCCI, Guilherme de Souza; MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. São Paulo: RT, 2012, p. 1199/1207.
GRINOVER, Ada Pellegrini. O interrogatório como meio de defesa. In: Doutrinas essenciais de processo penal. v. III. Org. NUCCI, Guilherme de Souza; MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. São Paulo: RT, 2012, p.81/93.
LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal e Sua Conformidade Constitucional. 3ª.ed. v.I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis; MORAES, Maurício Zanoide de. Direito ao silêncio no interrogatório. v. III. Org. NUCCI, Guilherme de Souza; MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. São Paulo: RT, 2012, 1087/1908.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado. 8ª.ed. São Paulo: RT, 2008, p. 258.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal 13ª.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
___. Breves notas sobre a não autoincriminação. São Paulo: Boletim IBBCRIM, ano 19, n. 222, p.4-5, maio 2011.
RAPOSO, Vera Lucia; MACHADO, Jónatas E. M. Machado. O direito à não auto-incriminação e as pessoas colectivas empresariais. In: Direitos fundamentais e justiça, v. 3, n. 8, jul./set. 2009.
SUANNES, Adauto. Os fundamentos éticos do devido processo penal. 2ª.ed. São Paulo: RT, 2004.
QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio do nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal. 2ª.ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
[1] O Brasil aderiu a ambos no ano de 1992 e segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal gozam de status normativo supralegal no ordenamento jurídico pátrio, afastando a aplicação da legislação infraconstitucional que com eles conflite (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 349703, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008).
[2] Breves notas sobre a não autoincriminação. São Paulo: Boletim IBBCRIM, ano 19, n. 222, p.4-5, maio 2011.
[3] O direito à não auto-incriminação e as pessoas colectivas empresariais. In: Direitos fundamentais e justiça, v. 3, n. 8, jul./set. 2009, p. 15.
[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 99.289, rel. Min. Celso de Mello, 2.ª T., j. 23.06.2009.
[5] SUANNES, Adauto. Os fundamentos éticos do devido processo penal. 2ª.ed. São Paulo: RT, 2004, p. 335. Em sentido semelhante: OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal 13ª.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 44.
[6] No sentido de que o direito ao silêncio aplica-se apenas à primeira fase do interrogatório, cf. MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis; MORAES, Maurício Zanoide de. Direito ao silêncio no interrogatório. v. III. Org. NUCCI, Guilherme de Souza; MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. 2012, p. 1095. Sustentando posição divergente, cf. GRINOVER, Ada Pellegrini. O interrogatório como meio de defesa. In: Doutrinas essenciais de processo penal. v. III. Org. NUCCI, Guilherme de Souza; MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. São Paulo: RT, 2012, p. 84.
[7] Segundo René Ariel Dotti o interrogatório em sua totalidade poderia ser realizado por intermédio do advogado: “Se, por um lado, o interrogatório é um ato de defesa, o advogado constituído poderá praticá-lo através das razões escritas, na defesa prévia ou nas alegações finais; se, por outro, é (também) um meio de prova, da mesma forma poderá ele ser dispensado posto que prevalece em nosso sistema o princípio segundo o qual ninguém é obrigado a depor contra si.” (Garantia do direito ao silêncio e a dispensa do interrogatório. In: Doutrinas essenciais de processo penal. v. III. Org. NUCCI, Guilherme de Souza; MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. São Paulo: RT, 2012, p. 1202).
[8] REsp 346.677/RJ, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, SEXTA TURMA, julgado em 10/09/2002, DJ 30/09/2002, p. 297. Não se admite como coerente o entendimento explanado no acórdão quanto ao cabimento da condução coercitiva com o fim de determinar o comparecimento do réu a audiência de reconhecimento, por se tratar de medida que não respeito o direito não colaborar com a investigação.
[9] QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio do nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal. 2ª.ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 423.
[10] Direito Processual Penal e Sua Conformidade Constitucional. 3ª.ed. v.I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 585.
[11] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado. 8ª.ed. São Paulo: RT, 2008, p, 558.