Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa: os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. — Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam (Pe. Antônio Vieira – O Sermão do Bom Ladrão – 1655).
RESUMO: Os últimos anos do século passado marcam a transição do modelo de gestão pública burocrática para a administração pública gerencial. Essa transição não significa negação aos princípios da burocracia clássica, mas a flexibilização de tais procedimentos e a adoção de novos instrumentos de controle do ato administrativo, destacando-se a transparência como mecanismo de acessibilidade às informações gerenciais dos governos ao mesmo tempo em que fortalece a democracia participativa em governos cooperativos e gestão compartilhada dos interesses coletivos.
Palavras-chave: Administração pública. Controle.
SUMÁRIO: 1. Introdução 2. A Burocracia como instrumento de Controle dos Atos Administrativos 3. Do Controle enquanto instrumento de consolidação da Democracia 4. Mecanismos de Controle da Gestão Pública Contemporânea 5. Das Formas de Controle 6. Do Controle Interno 7. Do autocontrole ou autotutela 8. Do Controle Externo 9. Controle Legislativo ou Parlamentar 10. Do Controle Judicial 11. Do Controle Social 12. Conclusão. Referências.
1. Introdução
Data de 1215 o primeiro documento formal com tendência a colocar freios nas atitudes daqueles que detêm o poder sobre a gestão dos interesses do povo. A Magna Charta, imposta ao rei João-Sem-Terra, esboçava instrumentos de controle sobre a vontade real, inibindo o absolutismo e liquidando de vez com o poder divino dos reis.
Há que se entender que o documento inglês aponta sua importância histórica não somente pela conquista do povo de uma fatia do poder, antes absoluto, do monarca. Define também o marco inicial do encerramento de uma etapa na história da administração pública, identificada pela doutrina como Administração Patrimonialista ou Patriarcal, em que o bem público e os bens do administrador público se confundiam.
Ao dispor, pela primeira vez em documento positivado, as liberdades públicas, o direito de propriedade e a subsunção da vontade real aos termos da lei, inaugura-se uma nova etapa na história política da humanidade. A Magna Charta é, pois, o estopim, como a criar o embrião de uma sequência de feitos e conquistas a se desenhar ao longo dos séculos futuros até nossos dias, no desejo do homem comum de exercer o controle sobre os atos das entidades que o governam.
Muitos e muitos discursos, postulados, regras, tratados e revoltas foram necessários até o limiar dos dias atuais, quando se consolidou, no elenco dos direitos fundamentais, o direito à administração pública eficiente, proba, eficaz, imparcial e transparente[2].
2. A Burocracia como instrumento de Controle dos Atos Administrativos
A palavra controle – do Latim contra mais rotulus - “rolo, escrito, registro”, descreve a “ação de verificar os escritos ou as contas dos rolos”, definindo-se como atividade administrativa de aferição, conferência, fiscalização, balizamento. Etimologicamente nos remete ao modelo de administração pública adotado pelos estados modernos, que teve o seu advento no iluminismo do século XVIII, mais precisamente após a Revolução Francesa.
A importância dos postulados defendidos pelos “lumières”, calcados sobre a racionalidade dos procedimentos administrativos enquanto instrumentos de controle do Estado, tem origem na disposição do artigo 15 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, no texto aprovado em 26 de agosto de 1789:
Art. 15. - La Société a le droit de demander compte à tout Agent public de son administration.[3]
Assentando-se como direito indisponível do cidadão e dever do Estado, o exercício e a submissão ao controle positivou-se na Declaração da França Revolucionária, inserido na gama de direitos políticos do cidadão. Surge, daí, a concepção e evolução dos métodos racionais e burocráticos de registro dos atos administrativos, ritualísticos e formais como pressupostos da ação do controle.
No dias subsequentes, a definição de métodos e reformulação das práticas administrativas de então evoluíram de modo a externar certa desconfiança do administrado para com o delegatário do poder, a ponto de o excesso de racionalismo e o exagero da formalidade se tornarem empecilhos para o desenvolvimento seguro, célere e eficaz da ação governamental.
Para definir a burocracia, a Doutrina tem-se firmado nos conceitos do sociólogo alemão Max Weber (1864-1920), considerado o pai da Sociologia da Burocracia por seus escritos, em especial “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” (1905) e “Ensaios Reunidos de Sociologia da Religião” (1917/1920).
Entende o pensador, em linhas gerais e absolutamente superficiais de nossa parte, que o êxito das organizações capitalistas se deu, e se dá, exatamente pela adoção de regramentos rígidos e padrões de conduta que podem ser repetidos, calculados, retificados e, a qualquer tempo, avaliados. A este conjunto de regras que pressupõe divisão do trabalho e qualificação para a atribuição, impessoalidade, supervisão e conferência permanentes e que, pelos avessos, predispõe a aferição da etapa anterior pelo realizador da etapa seguinte, deu-se o nome de burocracia. Grosso modo, burocracia é controle sistemático das etapas do processo visando ao resultado pretendido.
Não se colhe em Weber o pensamento axiológico acerca da adoção do sistema burocrático. A noção que se tem, diversa da forma vexatória que hoje conferimos ao termo, é de um padrão de atitudes pré-definido, de rigoroso controle do processo, das etapas de consecução do objeto que leva a êxito as organizações. Vendo por este ângulo, a burocracia é essencial ao resultado. Controla as várias fases e etapas do processo, permitindo a intervenção retificadora no exato ponto da irregularidade, evitando danos maiores ou irreparáveis.
Transportando tal conceito para a administração pública, longe de se traduzir em instrumento de mora e pouca produtividade como hoje definimos, o modelo burocrático instalou a era do controle rigoroso, formal e, dentro do pretendido, satisfatório, em tese, dos atos de governo, realizando-se como forma de obtenção de melhores resultados e exercício de permanente vigilância sobre o patrimônio coletivo.
Para fixarmos um juízo de valor, se a burocracia é benéfica ou não aos interesses do Estado e do administrado, é necessário estabelecer um marco conceitual sobre os estados modernos concebidos no século XVIII e as estruturas de governo que hoje dispomos. Mais amplas e ágeis, as atuais relações de governo tornaram obsoletos os métodos da burocracia tradicional, embora não podemos dispensá-la completamente quando o assunto versa sobre o controle da gestão pública. Há que se modernizar o controle, à medida que o Estado avança sobre outras áreas do social e econômico e torna mais complexas as suas relações usuais, sem, contudo, dispensar ou minimizar sua atuação.
3. Do Controle enquanto instrumento de consolidação da Democracia
A palavra administrar, nos ensinamentos de Chiavenato (1987), tem sua origem no latim, e seu significado original implica subordinação e serviço: ad, direção para, tendência; minister, comparativo de inferioridade; e sufixo ter, que serve como termo de comparação, significando subordinação ou obediência, isto é, aquele que realiza uma função abaixo do comando de outro, aquele que presta serviço a outro.
Isso, no âmbito da gestão pública, consolida e reafirma o conceito de que o gestor imbuído neste mister “tange alheio gado” cuida de interesses coletivos e não próprios. Assim, a definição etimológica de Administração sepulta, definitivamente, o conceito patrimonialista do absolutismo, em que a pessoa do governante se confundia com o Estado.
Quando se tem a dimensão do parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal de 1988, percebe-se que o administrador público age, ou deveria agir, sob o comando do poder originário do povo, em nome de quem exerce a atribuição de gerenciamento:
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Por óbvio, a evolução das relações dos governos e sua abrangência em outras áreas das ciências sociais e econômica ao longo dos anos, como já dissemos, tornaram obsoletas algumas ferramentas da gestão burocrática que se mostram dispendiosas ou morosas em suas respostas à população. A mudança de paradigmas ocorrida no último quarto do século passado, a que se chamou administração gerencial do Estado, por certo não vem abolir os métodos e rituais do modelo burocrático, mas flexibilizar alguns procedimentos, evitando o excesso de formalismo e, consequentemente, instituir novos mecanismos de controle.
Mais que isso, à medida que se exerce efetivo controle sobre as ações de governo, compartilha-se o poder com quem de fato o detém: o povo, aprimorando as relações democráticas. Longe de constituir um olhar desconfiado sobre aqueles que nos governam, o controle mostra-se como aperfeiçoamento da administração cooperativa que consolida o processo democrático.
4. Mecanismos de Controle da Gestão Pública Contemporânea
Seguindo as tendências da administração gerencial do Estado, tem-se como o primeiro embrião da modernização do Estado Brasileiro a Reforma do Estado de 1967, que positiva o controle como ferramenta de gerenciamento com a edição do Decreto Lei 200/67, de 25 de fevereiro de 1967. Tal instrumento ordenou procedimentos de descentralização e desburocratização, sem declinar da necessidade de controle interno dos atos de gestão (art. 13, a), e do controle externo (art. 13, b), excluindo, em parte, as ferramentas de controle do processo (art. 14) que é tendência marcante do modelo burocrático:
Art. 13. O contrôle das atividades da Administração Federal deverá exercer-se em todos os níveis e em todos os órgãos, compreendendo, particularmente:
a) o contrôle, pela chefia competente, da execução dos programas e da observância das normas que governam a atividade específica do órgão controlado;
b) o contrôle, pelos órgãos próprios de cada sistema, da observância das normas gerais que regulam o exercício das atividades auxiliares;
c) o contrôle da aplicação dos dinheiros públicos e da guarda dos bens da União pelos órgãos próprios do sistema de contabilidade e auditoria.
Art. 14. O trabalho administrativo será racionalizado mediante simplificação de processos e supressão de contrôles que se evidenciarem como puramente formais ou cujo custo seja evidentemente superior ao risco[4].
Outras ferramentas de transparência fiscal foram concebidas além daquela gama restrita prevista no artigo 13 do Decreto Lei 200/67, quando da revisão constitucional de 1967. Retomou-se o tímido controle interno como um sistema de autotutela, e o controle externo como evolução do modelo criado[5] pela Carta da República de 1891, através dos tribunais de contas, conforme previsto no artigo 71 da Carta de 1967:
Art.71 - A fiscalização financeira e orçamentária da União será exercida pelo Congresso Nacional através de controle externo, e dos sistemas de controle interno do Poder Executivo, instituídos por lei.
§ 1º - O controle externo do Congresso Nacional será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas e compreenderá a apreciação das contas do Presidente da República, o desempenho das funções de auditoria financeira e orçamentária, e o julgamento das contas dos administradores e demais responsáveis por bens e valores públicos.
A crise do Estado no final dos anos 80 provocou a redefinição do papel dos governos. Recrudescida, em grande parte, pela queda dos Estados Sociais, inclusive o soviético, a globalização e as novas tendências advindas do modelo neoliberal, edificadas nas cinzas do pensamento Hayek[6], decididamente afetou o modelo de gestão da coisa pública. A redemocratização dos governos, sobretudo no Brasil, nas duas últimas décadas do século passado, passou a exigir dos mandatários, por um lado, maior eficiência e, por outro, maior transparência, inovando no controle efetuado pelo cidadão.
A adoção de um Estado Garantidor erigido na Carta Política de 1988, em detrimento de um Estado Provedor, que se findava no fracasso do modelo social keynesiano, modificou in totum as relações com o cidadão-contribuinte. Por definição do novo modelo, o cidadão deixa de ser um apaniguado pelo Estado e passa a travar com este uma relação de negócio. O cidadão deixou de ser o assistido passando a ser o cliente, e o gestor público se transformou em um delegatário de poderes, prestador de serviços, e não mais um chefe absoluto de governo. Merecidamente, este novo modelo de gestão passou a se denominar Administração Gerencial.
No mesmo vértice, a minimalização do Estado proposta pelo Consenso de Washington e a delegação de atribuições e compartilhamento de responsabilidades (accountability), em decorrência da proposta neoliberal de Estado Necessário, exigiu a reformulação dos instrumentos de controle.
5. Das Formas de Controle
Segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro (2007),
[a] finalidade do controle é a de assegurar que a Administração atue em consonância com os princípios que lhe são impostos pelo ordenamento jurídico, como os da legalidade, moralidade, finalidade pública, publicidade, motivação, impessoalidade; em determinadas circunstâncias, abrange também o controle chamado de mérito e que diz respeito aos aspectos discricionários da atuação administrativa (DI PIETRO, 2007, p.670).
Em estudo preliminar, entendemos que o exercício do controle se vincula aos freios da própria estrutura de Estado enquanto mecanismos criados pelo sistema político-administrativo para se autogerenciar. Obviamente, este sistema constitucional de limitação da ação governamental se infere como modalidade de Controle Interno enquanto sistema organizado de supervisão administrativa. E define-se como modalidade de Controle Externo quando, por delegação, o exercício é entregue a entidades do próprio estado com missão de fiscalização.
Ab initio, definiremos como Controle Objetivo, abstrato e genérico aquele que deriva da forma normativa da Lei, impondo regras e limites ao gestor, direcionando sua atuação de maneira direta. Citamos, como exemplo, a definição dos índices constitucionais de investimentos em educação (art. 212) e em saúde (art.198 com a regulamentação da Emenda 29); os limites máximos de despesas com pessoal (art. 169 c/c art. 19 da LC 101/2000); as limitações do poder de tributar (art. 150/152); a definição dos percentuais de investimentos do Fundeb (art. 60 do ADCT c/c Lei 11.494 de 20/06/2007), entre outros.
Noutro gume, temos o Controle Subjetivo, concreto, direcionado, é aquele que se impõe por disposições normativas inferiores e se efetivam como sistemas operacionais de atividade estatal, como corolário na aferição dos ditames constitucionais. Especificamente temos, por exemplo, os sistemas de informação da saúde (DATASUS); o sistema de informação de obras públicas (SISOBRAS); o controle de licitações e contratos administrativos (SICOP) e de movimentação de pessoal (FISCAP), estes três últimos mantidos pelo Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais nos moldes de outras cortes de contas do País, que se somam a outras modalidades de prestação de contas da gestão administrativa.
É neste último que se expõe a fragilidade técnica dos governos, que resulta em dezenas de ações judiciais de improbidade administrativa contra os gestores e representa uma barreira instransponível da burocracia para outros tantos. O critério de isonomia com que são tratados os diferentes entes de Estado perante os organismos de controle muitas vezes supera a capacidade técnica dos governos. Os efeitos são danosos.
Didaticamente, os doutrinadores do Direito Administrativo têm dividido o controle dos atos de governo quanto à forma e quanto ao órgão que o exerce e quanto ao tempo do exercício, havendo outras maneiras de estudo distintas da que aqui adotaremos. Seguindo corrente doutrinária majoritária, para este trabalho, dividiremos assim o estudo do Controle da Administração Pública:
I - quanto à sua localização:
a) Interno - quando exercido por ferramentas de gestão do próprio órgão administrativo (aqui incluído o sistema de controle objetivo que já tratamos), e
b) Externo, quando emanado de terceira entidade, do próprio Estado (parlamentar) ou fora dele (sociedade).
II - Quanto ao órgão que exerce:
- Autocontrole ou autotutela, quando emana da própria administração, advindo dos mecanismos herdados da administração burocrática, como ferramenta de aferição interna ou por força de lei em procedimentos previamente definidos.
- Legislativo ou parlamentar, quando exercido pelo Poder Legislativo, através de seus órgãos próprios (Plenário, Comissões permanentes ou especiais) ou Auxiliares (Tribunais de Contas).
- Judicial, quando exercido exclusivamente pelo Poder Judiciário, mediante provocação, detendo-se principalmente à análise da legalidade dos atos administrativos, embora se tenha entendimento mais extensivo de tal alcance, como veremos oportunamente.
- Social, quando exercido pela Sociedade, através do cidadão comum, nos termos previstos na Constituição (art. 5º, XXXIII e XXXIV), por meio dos conselhos comunitários e entidades semelhantes enquanto mecanismos de agregação e organização social ou por atuação do Ministério Publico em sua função institucional de defesa de interesses coletivos e difusos à luz do art. 129 da CF/88.
III - Quanto ao momento em que se efetiva (art. 77 da Lei 4.320/64)[7]:
- prévio (antes da prática do ato);
- concomitante (em todas as etapas do ato e durante a sua vigência);
- posterior ou subsequente (realizado após a emanação do ato, aferindo resultados ou consequências).
Temos consciência de que a distribuição aqui proposta é meramente didática, haja vista superposição de atuação dos instrumentos de controle, um não dispensando o outro, da mesma forma que não se limita pelo espaço, pelo tempo ou pelo objeto.
6. Do Controle Interno
Instituído pela Lei 4.320/64, com propósito meramente contábil-financeiro, o controle interno se propôs a ordenar o registro dos atos de governo, limitando sua extensão e atividade ao que a lei discorre:
Art. 75. O controle da execução orçamentária compreenderá:
I - a legalidade dos atos de que resultem a arrecadação da receita ou a realização da despesa, o nascimento ou a extinção de direitos e obrigações;
II – a fidelidade funcional dos agentes da administração responsáveis por bens e valores públicos;
III – o cumprimento do programa de trabalho expresso em termos monetários e em termos de realização de obras e prestação de serviços.
Deduz-se a sua instituição na modalidade de controle interno, embora a norma não seja expressa pela continuidade da leitura do texto legal, em que se mantém o exercício do controle externo pela entidade estatal criada com tal propósito:
Art. 76. O poder executivo exercerá os três tipos de controle a que se refere o artigo 75, sem prejuízo das atribuições do Tribunal de Contas ou órgão equivalente.
Equivocadamente, a lei pressupõe o controle apenas como ação ou atividade restrita ao Poder Executivo, omitindo-se quanto aos atos de gerência que, embora atípicos, possam vir a ser praticados por outros Poderes ou personalidades derivadas na modalidade de Administração Indireta.
Inicialmente, poder-se-ia considerar que a unicidade orçamentária e sua gestão concentradas no Poder Executivo conferem a este primazia sobre a arrecadação e as despesas. No entanto, a ingerência do Executivo na gestão financeira de outro Poder, especificamente na modalidade de controle sobre a execução orçamentária, ainda que se defenda a unicidade do orçamento, fere dispositivos constitucionais de independência dos Poderes.
É bom que se diga que a lei 4.320/64 foi recepcionada pela Carta Constitucional de 1967 e também pela Constituição de 1988.
Por sua vez, o Decreto-Lei 200/67, igualmente recepcionado pela Carta Constitucional de 1967 e em parte pela Constituição de 1988, deu ao Controle Interno novas dimensões, como já citamos, além de procedimentos meramente contábeis-financeiros, estendendo sua atuação à racionalização de atividades (art. 13/14 do DL 200/67) e busca de maior eficiência no serviço.
Entretanto, a Carta Política de 1988, recuperando a dimensão do texto constitucional de 1967 (art. 71)[8], redefiniu o chamado “sistema de controle interno” (art. 31 e 70), prevendo não apenas uma ferramenta de controle, mas um conjunto articulado de ações com finalidades próprias de auditoria permanente, orientação e normatização, em parte reacendendo ferramentas da antiga burocracia estatal para cumprir o seu mister, extensiva a todos os Poderes da República, em todos os níveis de gestão.
De certa forma, corrigindo a distorção apresentada pela Lei 4.320/64, a Constituição de 1988 estendeu o chamado “sistema de controle interno” a todas as pessoas de Estado, por força do artigo 70, transcrito abaixo com nossos grifos:
Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder.
Enfatizando a proposta, o artigo 74 da mesma Carta dispõe sobre o sistema de controle interno, definindo seu alcance e atuação, sem perder de vista a unicidade orçamentária, da seguinte forma:
Art. 74. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma integrada, sistema de controle interno com a finalidade de:
I - avaliar o cumprimento das metas previstas no plano plurianual, a execução dos programas de governo e dos orçamentos da União;
II - comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e entidades da administração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por entidades de direito privado;
III - exercer o controle das operações de crédito, avais e garantias, bem como dos direitos e haveres da União;
IV - apoiar o controle externo no exercício de sua missão institucional;
§ 1º - Os responsáveis pelo controle interno, ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegalidade, dela darão ciência ao Tribunal de Contas da União, sob pena de responsabilidade solidária.
Depois da entrada em vigor da Lei 101/2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal, o Controle Interno, enquanto procedimento sistêmico da administração, ganhou corpo e importância, convertendo em rotina atividades de auditoria permanente, normatização e avaliação periódica de resultados.
A esse “sistema”, conferiu à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) o dever legal de endossar os atos de gestão financeira e execução orçamentária (at. 54 parágrafo único da LC 101/2000), o que lhe atribui status de órgão permanente e essencial da administração pública:
Art. 54. Ao final de cada quadrimestre será emitido pelos titulares dos Poderes e órgãos referidos no art. 20, Relatório de Gestão Fiscal, assinado pelo:
I - Chefe do Poder Executivo;
II - Presidente e demais membros da Mesa Diretora ou órgão decisório equivalente, conforme regimentos internos dos órgãos do Poder Legislativo;
III - Presidente de Tribunal e demais membros de Conselho de Administração ou órgão decisório equivalente, conforme regimentos internos dos órgãos do Poder Judiciário;
IV - Chefe do Ministério Público, da União e dos Estados.
Parágrafo único. O relatório também será assinado pelas autoridades responsáveis pela administração financeira e pelo controle interno, bem como por outras definidas por ato próprio de cada Poder ou órgão referido no art. 20 (grifo nosso).
Por sua vez, a LRF dotou o controle interno de atribuições outras, que incluem a fiscalização das metas e alcance das ações de governo, recuperando os ditames do art. 75, III da Lei 4.320/64, e ampliando o alcance do artigo 74, I da CF/88, não se limitando ao controle contábil/financeiro propriamente dito:
Art. 59. O Poder Legislativo, diretamente ou com o auxílio dos Tribunais de Contas, e o sistema de controle interno de cada Poder e do Ministério Público fiscalizarão o cumprimento das normas desta Lei Complementar, com ênfase no que se refere a:
I - atingimento das metas estabelecidas na lei de diretrizes orçamentárias;
II - limites e condições para realização de operações de crédito e inscrição em Restos a Pagar;
III - medidas adotadas para o retorno da despesa total com pessoal ao respectivo limite, nos termos dos arts. 22 e 23;
IV - providências tomadas, conforme o disposto no art. 31, para recondução dos montantes das dívidas consolidada e mobiliária aos respectivos limites;
V - destinação de recursos obtidos com a alienação de ativos, tendo em vista as restrições constitucionais e as desta Lei Complementar;
VI - cumprimento do limite de gastos totais dos legislativos municipais, quando houver.
É o próprio texto legal que não nos permite reduzir o Sistema de Controle Interno às rotinas de auditoria. Valendo dos propósitos de administração por resultados, que emprestamos à iniciativa privada, o sistema de Controle Interno torna-se um canal permanente de autoavaliação da qualidade do serviço público, algo mais abrangente que um simples órgão de estrutura burocrática. Aproximamos dos SAC (Serviço de Atendimento ao Consumidor), mantidos pelas empresas privadas, ou do conceito de ombudsman, trazendo para a estrutura do Controle Interno procedimentos de ouvidoria e manifesta intenção de constante melhoria na qualidade da prestação dos serviços.