DAS IMPLICAÇÕES JURÍDICAS
No estágio atual da reprodução humana assistida temos várias hipóteses concretas que podem gerar várias celeumas jurídicas, como, por exemplo, a doação e venda de gametas, a criopreservação de embriões já concebidos que permitem inseminações múltiplas e até post mortem, a implantação do embrião em mãe substituta, entre várias outras hipóteses.
Em relação a tais celeumas faremos algumas considerações :
a)DA FILIAÇÃO
Em relação à filiação devemos ter em mente que as novas técnicas artificiais de reprodução provocaram um desmoronamento completo nas bases, antes arraigadas, da filiação.
Nas inseminações artificiais é possível a fertilização homóloga, que é feita com gametas do casal; a fertilização heteróloga em que é utilizado óvulo e/ou espermatozóide pertencente a terceiros e a barriga de aluguel ou mãe de substituição que é a mulher utilizada como meio para gestar um embrião fertilizado com gametas de outras pessoas.
Mas, para definirmos o direito à filiação ou o dever da filiação deveremos lembrar que atualmente a doutrina e a jurisprudência consagram, além da filiação biológica, a filiação afetiva, também chamada de socioafetiva.
O pai ou a mãe, pela atual orientação doutrinária, não é definido apenas pelos laços biológicos que tenha com o menor e sim pelo querer externado de ser pai ou mãe, ou seja, de assumir, independentemente do vínculo biológico, as responsabilidades e deveres da filiação mediante a demonstração de afeto e de querer bem ao menor.
A falta de tais requisitos acarretará aos pais biológicos a perda do pátrio poder e possibilitará que a criança seja adotada por quem realmente lhe dê afeto, carinho e condições dignas de sobrevivência.
Partindo desta premissa poderemos definir a filiação do nascituro concebido por técnicas reprodutivas artificiais, tanto pelo aspecto biológico quanto pelo aspecto afetivo, levando-se em consideração sempre o melhor interesse da criança.
Estando casado ou em união estável o casal que se submeteu às técnicas artificiais de reprodução e que em conjunto externou seu consentimento informado acerca da inseminação, não resta dúvida de que, seja homóloga ou heteróloga, a filiação pertencerá ao casal que a consentiu; e se presumirá legítima, visto ser concebida na constância do casamento, daí descabendo qualquer contestação futura a seu respeito.
Se a mulher casada se submeter a uma fertilização com sêmen de doador (heteróloga) sem o consentimento do marido, a paternidade não poderá lhe ser imputada, legitimando até mesmo a dissolução do vínculo matrimonial e de ação negatória de paternidade cumulada com anulação do registro de nascimento, se houver sido feito mediante equívoco.
No direito comparado, em face da nossa lacuna legislativa, podemos ver algumas legislações neste sentido :
AUSTRÁLIA : O filho nascido pelas técnicas de RA será do casal que consentiu no procedimento.
EUA : Há um consenso, entre 28 estados Norte Americanos, de que o casal que consentir nas técnicas de RA serão os pais do concebido.
ESPANHA : Se houver consentimento do casal em relação às técnicas de RA, será impossível impugnar a filiação.
FRANÇA : As técnicas de RA somente são permitidas em casais casados e o consentimento veda qualquer impugnação acerca da filiação.
CANADÁ : Se houver fertilização heteróloga é necessário, antes, o consentimento do marido, que não poderá impugnar a filiação.
b) DA MATERNIDADE
Em relação apenas à maternidade temos que o princípio segundo o qual a mãe é sempre certa (mater semper certa est) ficou literalmente abalado pelas novas técnicas de RA.
Antigamente a mãe era sempre certa, por não haver como fecundar o óvulo fora do útero materno ou transplantá-lo em outra pessoa, tendo-se como certo que a mãe era aquela que estivesse gestando o nascituro.
Atualmente a certeza em relação à maternidade mostra-se abalada, tendo em vista que a mãe pode ser a que esteja gestando o filho, pode ser a que forneceu o óvulo para fecundação ou ainda a que recebeu o óvulo de uma terceira pessoa e que contratou a barriga de substituição para gestá-lo (mãe socioafetiva).
O ordenamento pátrio consagra a idéia de que a mãe é a que gestou e deu à luz.
Se a mãe doadora do óvulo for inseminada com sêmen de seu marido ou de terceiro, e ela própria gestar o concebido, não restam dúvidas de que será declarada a mãe da criança, tendo em vista a coincidência dos atributos genético, socioafetivo e gestacional.
A questão de maior complexidade ocorre quando a "mãe gestante" for diferente da "mãe biológica" ou da "mãe socioafetiva".
Poderá, nestes casos, ocorrer o conflito negativo ou positivo da maternidade.
O conflito positivo ocorre quando várias mães reivindicam para si a maternidade da criança, e o conflito negativo ocorrerá quando nenhuma das mães assumir a maternidade da criança.
Diante dos conflitos apresentados, a solução que melhor se mostra e que melhor se coaduna com a tendência doutrinária e legislativa mundial é a de se atribuir maternidade à mãe que gestou a criança.
Esta solução poderá ser modificada quando ficar evidente que a mãe gestante, por não ser mãe biológica, não tiver condições de cuidar da criança (psicológicas e sociais), entregando-se a criança à mãe que melhor atender aos seus interesses (biológica ou socioafetiva).
Atualmente cresce na doutrina pátria um entendimento de que a mãe biológica é a que merece a maternidade da criança, pois entendem que a mãe de substituição é apenas a hospedeira daquele ser gerado sem a contribuição de suas células germinativas.
Outro ponto importante é levantado pelos adeptos da filiação afetiva, que pregam que, independentemente da origem biológica ou da gestação, a mãe será aquela que assumiu e levou adiante o sonho da maternidade ao recorrer até mesmo a estranhos para que sua vontade fosse satisfeita.
Em relação à substituição de útero, também chamada de barriga de aluguel, é certo que não há legislação que a regule ou que a proíba, sendo ela apenas tratada pela resolução 1358/92 do CFM.
Pelo ordenamento jurídico, veda-se qualquer contrato que envolva bem indisponível, como é o caso da vida humana, sendo que os contratos de "locação" ou substituição de útero não têm eficácia jurídica.
A solução dos impasses relativos à disputa ou imposição da maternidade deve variar em cada caso concreto diante das peculiaridades levantadas, mas a tendência é a de que o julgador deve sempre ter em mente quem primeiro externou a vontade relativa à inseminação e, também, o melhor interesse da criança.
Como o tema é complexo e necessita de uma legislação específica, recorreremos, mais uma vez, ao direito comparado :
FRANÇA, AUSTRÁLIA, ALEMANHA: Presume-se mãe quem deu à luz.
INGLATERRA : Permite a barriga de aluguel, devendo a criança ser entregue a quem pretendeu o nascimento.
CANADÁ, ALEMANHA, ESPANHA, AUSTRÁLIA : Veda-se a locação de útero.
EUA: Presume-se mãe quem deu à luz; mas se houve locação de útero, o casal contratante deverá adotar a criança logo após o nascimento.
c) DA PATERNIDADE
Na paternidade o brocardo latino segundo o qual o filho de mulher casada presume-se de seu marido, "pater is est, quem nuptiae demonstrat", também foi jogado por terra pelas novas técnicas reprodutivas.
Em face da omissão legislativa acerca da paternidade por técnicas de reprodução assistida, devemos dividi-la em paternidade homóloga e heteróloga.
Na inseminação homóloga descabem maiores análises jurídicas, tendo em vista que se concilia a filiação biológica com a filiação afetiva, ou seja, o pai será aquele que doou o espermatozóide para ser fecundado em sua esposa ou companheira.
Em relação à inseminação heteróloga devemos enfocar o tema sob três situações distintas :
1º) Se a técnica foi consentida dentro de um casamento ou união estável.
2º) Se a técnica não foi consentida dentro de um casamento ou união estável.
3º) Se a técnica foi realizada fora de casamento ou de união estável em mulheres solteiras, viúvas, separadas judicialmente ou divorciadas.
A primeira situação é a que oferece menos preocupação, pois já é consenso entre os doutrinadores e legislações estrangeiras que o homem, ao consentir na inseminação heteróloga de sua esposa ou companheira, assume a paternidade da criança e em nenhum momento poderá contestá-la.
Na segunda situação a mulher, ao se inseminar com sêmen de terceiros e com o desconhecimento de seu marido ou companheiro, comete um ato atentatório ao casamento (injúria grave, violação dos deveres do casamento, insuportabilidade da vida em comum, violação ao dever de lealdade, etc.). Já dissemos que, em tais hipóteses, o marido poderá contestar a paternidade do filho, se já o houver registrado, tendo em vista que foi levado a erro ao registrá-lo.
A terceira doação é aquela em que a mulher recorre a um banco de sêmen e se fertiliza com o intuito de formar uma família monoparental. Nestes casos não é possível atribuir-se ao doador qualquer vínculo de filiação. Ainda que não exista lei específica, por analogia usamos o instituto da adoção em relação à doação do sêmen. A criança somente será registrada em nome da mãe, mas poderá no futuro requerer o reconhecimento de seu vínculo de filiação biológica, sem que isto acarrete ao doador quaisquer obrigações ou direitos relativos à criança, uma vez que, ao doar seu sêmen, ele abdica voluntariamente de sua paternidade, da mesma forma que o faz quem entrega uma criança para adoção.
No direito estrangeiro temos as seguintes soluções :
INGLATERRA : O doador de esperma não tem qualquer direito ou dever em relação à criança, sendo-lhe preservado o anonimato.
EUA, AUSTRÁLIA : O marido que consentir na inseminação será considerado o pai da criança.
CANADÁ : Se a inseminação for heteróloga, o marido ou o companheiro somente será o pai se houver consentido.
ALEMANHA : Na fertilização heteróloga é necessário o consentimento escrito e por instrumento público, e o pai que o fizer não poderá impugnar a filiação.
ESPANHA : O consentimento vincula a filiação.
d) DO DIREITO SUCESSÓRIO
Não há dúvidas de que o filho de uma pessoa, nascido por meio de qualquer das técnicas de reprodução assistida, terá os mesmos direitos e deveres dos demais filhos de tal pessoa. Para que possa herdar, basta que tenha sido concebido ao tempo da abertura da sucessão, que venha a nascer com vida e que seja filho do de cujus.
Ocorre que uma questão vem à tona, no direito sucessório, quando tratamos do embrião concebido e criopreservado.
Dissemos que, para nós, o embrião conservado fora do útero não é considerado nascituro e sua condição jurídica é ainda indefinida e temerosa, ainda que merecedora de proteção.
Para receber bens por sucessão legítima, tal embrião deverá estar implantado no útero feminino, pois só assim terá capacidade sucessória para herdar os bens do falecido.
Portanto, se com a morte do de cujus o embrião, em cuja fertilização consentiu, já estiver implantado no útero feminino, não há dúvidas de que a filiação lhe será assegurada, bem como o direito à herança.
Quanto ao embrião fecundado, mas não implantado, poderemos definir-lhe duas conseqüências jurídicas :
A primeira é a de que nunca poderá herdar por sucessão legítima, por não se achar inserido no conceito de nascituro e pelo fato de o direito não poder ficar à mercê da vontade da mãe em implantá-lo quando bem entender.
A segunda conseqüência será a da possibilidade de vir a herdar, desde que o de cujus assim disponha em seu testamento, por analogia ao conceito de prole eventual, e desde que indique quem será a mãe do beneficiário. Deve-se buscar, aí, a vontade expressa do testador em deferir-lhe a herança.
Quanto à inseminação post mortem, temos que atualmente ela se faz quando o sêmen ou o óvulo do de cujus é fertilizado após a sua morte. Em tal caso por ter sido a concepção efetivada após a morte do de cujus, não há que se falar em direitos sucessórios a ele.
Existem tendências doutrinárias admitindo que tanto o não concebido quanto o não nidado possam ter direitos sucessórios e o reconhecimento de sua filiação, desde que a pessoa assim lhe assegure por meio de testamento.
O direito sucessório, portanto, decorre da filiação e, a partir da determinação do vínculo de paternidade, será resolvido. Destaca-se que o consentimento dado em vida é essencial para determinar os direitos do nascituro e para formação do vínculo de filiação.
Em relação à possibilidade da inseminação post mortem, a legislação estrangeira assim se manifesta :
ALEMANHA, SUÉCIA : Veda-se a inseminação post mortem.
FRANÇA : Veda-se inseminação post mortem e dispõe que o consentimento externado em vida perde o efeito.
ESPANHA : Veda-se a inseminação post mortem, mas garante direitos ao nascituro quando houver declaração escrita por escritura pública ou testamento.
INGLATERRA : Permite-se a inseminação post mortem, mas não garante direitos sucessórios, a não ser que haja documento expresso neste sentido.
DO PROJETO DE LEI DO CÓDIGO CIVIL
O atual Projeto do Código Civil em nada mudou e em nada aclarou as controvérsias acerca dos efeitos da reprodução assistida e muito menos se posicionou de forma clara quanto à doutrina que adota, ou seja, se natalista ou concepcionista.
A única mudança feita no artigo 4º, que agora passa a ser artigo 2º, foi a de trocar a expressão homem por ser humano, ficando assim redigida :
Art. 2º - A personalidade civil do ser humano começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro."
Ocorre que uma importante mudança se fez com a introdução dos direitos da personalidade nos artigos 11a 21 do Projeto do Código Civil e, também, com a inserção da presunção de filiação aos filhos havidos por inseminação artificial, nos termos do artigo 1.597, incisos III, IV e V do novo Código Civil.
Quanto à reprodução assistida, o parecer do ilustre relator, citando a nobre deputada Sandra Starling, foi o seguinte :
"O Professor Miguel Reale, quando compareceu à primeira das muitas audiências públicas realizadas pela nossa Comissão Especial, respondeu a algumas dessas questões, afirmando que "novidades, como o filho de proveta, só podem ser objeto de leis especiais. Mesmo porque transcendem o campo do Direito Civil.
Efetivamente, é plenamente justificável a diretriz adotada pela douta comissão que elaborou o anteprojeto no sentido de " não dar guarida no Código senão aos institutos e soluções normativas já dotados de certa sedimentação e estabilidade, deixando à legislação aditiva a disciplina de questões ainda objeto de fortes dúvidas e contrastes, em virtude de mutações sociais em curso, ou na dependência de mais claras colocações doutrinárias, ou ainda quando fossem previsíveis alterações sucessivas para adaptações da lei à experiência social e econômica ".
CONCLUSÃO
Vê-se que toda a celeuma causada com as técnicas reprodutivas leva em conta o fato de o ser concebido ser ou não pessoa.
Tendo em vista as novas técnicas reprodutivas, a possibilidade de se congelar a vida do pré-embrião, a definição biológica do início da vida viável e a necessária proteção aos seres submetidos a estas novas técnicas, a solução viável seria dar personalidade civil ao ser humano a partir da nidação, ou seja, da implantação do óvulo fecundado no útero materno, condicionando os efeitos de alguns direitos ao nascimento com vida e assegurar, desde a concepção, os direitos do pré-embrião, a fim de evitar manipulação genética indevida e o seu descarte.
Por fim, acreditamos que nova teoria acerca da personalidade deverá levar em conta que o início da personalidade do ser humano começará a partir do momento de sua nidação. Somente desta forma estaremos atendendo ao espírito do legislador e também defendendo os interesses sociais, na medida em que o embrião criopreservado pode ficar nesta situação indefinidamente, ensejando grande instabilidade no ordenamento jurídico.
Notas
1.Palestra proferida no Seminário de Direito Civil promovido pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Unidade Contagem, em 25/09/01.
2.art. 877 e 878 do CPC.
3.Art. 1169 do CC.
4.Art. 1718 do CC.
5.Art. 338, 353 e 458 do CC.
6.Art. 462 do CC.
7.Art. 372 do CC.
8.Art. 124 a 126 do CP.