Para melhor compreender a importância da biografia na construção da identidade, é preciso entender, primeiramente, o que é o indivíduo. Para fazê-lo, utilizaremos aqui as ideias de Alasdair MacIntyre, que traz o conceito de indivíduo narrativo, cuja característica principal é a unidade da vida humana, afastando-se conceito atomístico de indivíduo moderno.
De acordo com o autor, um dos grandes problemas da concepção moderna de indivíduo é o fato de ela dividir a vida humana em diferentes segmentos, aparentemente incomunicáveis, cada um com suas peculiaridades:
a modernidade divide a vida humana numa série de segmentos, cada um com suas próprias normas e modalidades de comportamento. Portanto, o trabalho fica afastado do lazer, a vida privada afastada da pública, a vida empresarial afastada da pessoal. (…) E todas essas separações foram criadas de tal forma que é a peculiaridade de cada uma delas, e não a unidade da vida do indivíduo, que se experimenta nessas partes, em cujos termos nos ensinam a pensar e sentir. (MACINTYRE, 2001, p. 343)
O indivíduo moderno pode ser entendido a partir de uma perspectiva atomista da atividade humana, analisando atos e transações complexas em termos de componentes simples. Por esse motivo, não é incomum considerar a ação humana como um ato puramente voluntário, deixando de lado a importância do contexto histórico para a sua significação, fazendo uma separação nítida entre o indivíduo e os papéis sociais que ele interpreta, de forma a tornar a vida nada além de uma série de episódios desconexos e incompreensíveis como unidade, liquidando o próprio eu (MACINTYRE, 2001).
Diante dessa constatação, MacIntyre diz que, para que o eu subsista, é preciso entender a vida humana como uma unidade narrativa, com começo, meio e fim, formada pelas ações humanas individuais, inseridas em cenários sociais, que se comunicam e são interdependentes:
não podemos caracterizar o comportamento independentemente das intenções, e não podemos caracterizar as intenções independentemente dos cenários que tornam essas intenções inteligíveis, tanto para os próprios agentes quanto para outras pessoas (MACINTYRE, 2001, p. 347).
MacIntyre reforça que a intenção por si só não é suficiente para caracterizar a ação propriamente humana, como pretendem alguns filósofos analíticos. É preciso que, além da intenção, haja um contexto que torne ação inteligível. Isso só é possível quando a ação encontra o seu lugar em uma narrativa, com início, meio e fim:
ao identificar e compreender com sucesso o que alguém está fazendo, sempre nos movemos no sentido de situar um episódio particular no contexto de um conjunto de histórias narrativas, histórias tanto dos indivíduos envolvidos quanto dos cenários nos quais atuam e sofrem. Agora está se tornando claro que tornamos inteligíveis os atos de outras pessoas dessa forma porque o ato em si tem um caráter fundamentalmente histórico. É porque todos vivenciamos narrativas nas nossas vidas e porque entendemos nossa própria vida nos termos das narrativas que vivenciamos, que a forma de narrativa é adequada para se entender os atos de outras pessoas. As histórias são vividas antes de serem contadas – a não ser em caso de ficção. (MACINTYRE, 2001, p. 355-356)
A característica narrativa da vida humana, como bem salienta MacIntyre, é o que nos diferencia dos demais seres vivos. Somos os únicos capazes de, ao mesmo tempo, ser personagens e autores de nossa própria narrativa, inventando o possível, de forma a não sucumbir à causalidade da natureza. Não vivemos, pois, uma narrativa pré-determinada, mas que é criada a todo momento. Por esse motivo, MacIntyre diz, fazendo uma adaptação da afirmação aristotélica, que o homem pode ser entendido como um animal contador de histórias.
É preciso salientar que, enquanto membros de uma mesma comunidade, as vidas das pessoas acabam se cruzando, de forma a correlacionar suas narrativas. Assim, uma pessoa pode ser personagem de várias narrativas ao mesmo tempo:
Cada um de nós, sendo o protagonista de seu próprio drama, tem papéis coadjuvantes nos dramas de outras pessoas, e cada drama restringe os outros. (…) Cada um dos nossos dramas aplica restrições aos outros, tornando o todo diferente das partes, porém ainda dramático. (MACINTYRE, 2001, p. 359).
Uma consequência importante dessa característica narrativa é que a identidade do sujeito passa a ser compreendida não a partir de situações isoladas, mas sim de sua história como um todo. Para a identidade é irrelevante, por si só, o fato de o sujeito hoje agir ou pensar de forma diferente da qual agia ou pensava em outras épocas. Com efeito, “não há como fundar minha identidade (…) sobre a continuidade ou descontinuidade psicológica do eu. O eu habita um personagem cuja unidade é dada como a unidade de um personagem [dentro de uma narrativa]” (MACINTYRE, 2001, p. 364).
A identidade assim entendia implica duas coisas. A primeira delas é a responsabilidade dos indivíduos sobre os seus atos e experiência que compõem sua vida narrável. Nesse sentido, o indivíduo é o que outras pessoas possam, justificadamente, pensar que ele é com base no decorrer de sua narrativa. A segunda diz respeito à correlatividade: o indivíduo não é só responsável, mas também é alguém que pode pedir uma explicação aos outros, pois também faz parte das histórias dessas outras pessoas, da mesma forma que elas fazem parte da dele.
MacIntyre ressalta que essa possibilidade de pedir explicação têm papel importante na constituição de narrativas:
Perguntar o que você fez e por quê, dizer o que eu fiz e por quê, ponderar acerca das diferenças entre sua explicação do que eu fiz e a minha explicação do que fiz, e vice-versa, são constituintes essenciais de todas, menos das narrativas mais simples e resumidas. Assim, sem a responsabilidade do eu cujas sequências de eventos constituem tudo, menos nas narrativas mais simples e resumidas, isso não poderia ocorrer; e, sem essa mesma responsabilidade, faltaria às narrativas aquela continuidade necessária para que elas e as ações que as constituem se tornem inteligíveis. (MACINTYRE, 2001, p. 367)
Nesse sentido, Robert E. Frykenberg diz:
Toda vida humana, seja qual for o seu significado maior, tem uma história que pode ser contada. Toda vida humana pode servir de documento – de carne, sangue e espírito. Como tal, pode nos informar sobre o que aconteceu em uma, entre um número potencialmente infinito de diferentes instâncias da experiência e da existência humana. A história de cada vida humana, com todas as suas consequências, suas surpresas e reviravoltas, pode servir de lente através da qual se vê e compreende o mundo todo. (FRYKENBERG, 1996, p. 72, tradução nossa)1
Assim, a história, entendida como um conjunto de narrativas entrelaçadas, é fundamental para a formação da identidade do indivíduo, para a existência do eu. Para responder à pergunta “quem sou eu?” é preciso saber de qual história faço parte:
o que eu sou é, fundamentalmente, o que herdei, um passado específico que está presente até certo ponto no meu presente. Descubro que faço parte de uma história e isso é o mesmo que dizer, em geral, quer eu goste ou não, quer eu reconheça ou não, que sou um dos portadores de uma tradição. (MACINTYRE, 2001, p. 372)
Diante dessas considerações, fica evidente a importância da biografia para a formação da identidade, já que ela fornece informações relevantes sobre a história da qual os indivíduos participam. E a história é formada por narrativas que se correlacionam. Por esse motivo, não faz sentido dizer que a narrativa da vida de um cantor famoso (Roberto Carlos, para dizer um nome) é de sua propriedade exclusiva, já que ele assumiu papéis, ainda que coadjuvantes, nas narrativas de seus fãs, influenciando-as em menor ou maior proporção. Da mesma forma, a narrativa de vida de um estadista, como por exemplo, Getúlio Vargas, é importante para a formação da identidade dos brasileiros, já que suas ações influenciaram não só a sua própria narrativa, mas também as das pessoas que compartilham uma história comum com ele. Isso não significa, porém, dar azo a uma exposição irrestrita da vida das pessoas. Como bem disse Barbara Tuchman, “na medida em que a biografia é usada para iluminar a história, voyeurismo não tem lugar” (TUCHMAN, 1986, p. 147, tradução nossa).2
Além disso, torna-se claro também que, diante do caráter correlativo da vida narrativa, as histórias individuais não podem ser rigorosamente separadas, pois todas elas se limitam e se completam, reciprocamente. Assim, as biografias, enquanto obras literárias que contam narrativas, muitas vezes acabam tangenciando outras pessoas além do próprio biografado, as quais tiveram sua participação na narrativa deste. Afinal, no dizer do poeta John Donne, “nenhum homem é uma ilha, completa em si mesma”.
REFERÊNCIAS
FRYKENBERG, Robert Eric. History and Belief: The Foundations of Historical Understanding. Grand Rapids: Eerdmans, with the Institute for Advanced Christian Studies, 1996. 384. p.
GARCIA, Rebeca. Biografias não autorizadas: Liberdade de expressão e privacidade na história da vida privada. Revista de Direito Privado, São Paulo, v.13, n.52 , p.37-72, out. 2012.
MACINTYRE, Alasdair C. Depois da virtude. São Paulo: EDUSC, 2001. 477. p.
TUCHMAN, Barbara. Biography as a prism of history. In:PACHTER, Marc (Org.). Telling lives, the biographer's art. Philadelphia: University of Pensylvania Press, 1986. p. 132-147.
Notas
1 Every human life can serve as a document – of flesh and blood and spirit. As such, it can inform us of what happened in one out of a potentially infinite number of different instances of human experience and existence. The story of every human life, with all its sequences and its surprising and unexpected turns, can serve as a lens through which to see and understand the larger world.
2 (…) insofar as biography is used to illumine history, voyeurism has no place.