1-PREÂMBULO
Mikhail M. Bakhtin é um pensador russo que se destaca pela construção de teorias de amplo espectro, abrangendo, principalmente as áreas da linguística, da filosofia e da sociologia, inclusive de forma transdisciplinar.
Sua trajetória intelectual e editorial é marcada por uma série de contratempos e discussões acerca da autoria de textos produzidos, bem como por óbices na carreira acadêmica e mesmo na vida particular, provocados pelo sistema totalitário instalado na Rússia de seu tempo, o qual, inclusive acabou sendo motivo para a execução por fuzilamento de um de seus pares intelectuais, Pavel N. Medvedev.
É com um artigo da lavra de V.V. Ivanov em 1973 que a questão quanto à autoria de alguns textos assinados por componentes do grupo de intelectuais que compunha o depois denominado “Círculo de Bakhtin”, que toda a polêmica se instala. Ivanov aponta como sendo de autoria de Bakhtin as obras “O discurso na vida e o discurso na arte” (Voloshinov), “O Freudismo” (Voloshinov), “Marxismo e filosofia da linguagem”(Voloshinov) e “O método formal nos estudos literários”(Medvedev). Alega que embora assinadas por Voloshinov e Medvedev essas obras e ainda mais alguns artigos atribuídos a tais autores seriam produzidos verdadeiramente por Bakhtin e publicados em nome desses autores que apenas teriam colaborado com alguns enxertos para a adequação às ideias marxistas, a fim de que os trabalhos pudessem ser aprovados para publicação em meio à censura totalitária. Outras motivações também são apontadas para essa troca de autoria, tais como uma suposta modéstia acadêmica como traço da personalidade de Bakhtin, mas a verdade é que toda a discussão não aponta provas concretas sobre a efetiva autoria dos textos por ele. Muito ao reverso, como bem demonstram Bronckart e Bota, há muitos indícios de que o conteúdo e a forma dos textos não condiz com aqueles naturalmente assinados por Bakhtin. Dessa maneira, a menção a essa questão é meramente informativa e não tem maior interesse neste trabalho em que se explorará o conteúdo das ideias de Bakhtin e de seus parceiros intelectuais em uma interface com o discurso jurídico. Portanto, nos limites deste texto, toma-se por estabelecido que as obras são de autoria de quem as assinou na época, deixando a questão insolúvel da disputa dos textos de lado. [1]
Ademais, outra questão que merece esclarecimento prévio é exatamente a designação que se convencionou para fazer referência ao grupo de intelectuais de que Bakhtin fazia parte: “Círculo de Bakntin”, muitas vezes apontando os demais componentes como meros “discípulos” de um “mestre”. Os chamados “membros do Círculo de Bakhtin”, que inclusive é apresentado como dividido geograficamente por três pontos (Nevel, Vitebsk e Leningrado) podem ser indicados sumariamente como: N.A. Kliunev, K. K. Vaguinov, L. V. Pumpiânski, B. M. Zubiákin, Matvei I. Kagan, Ivan I. Kanaev, Maria V. Yudina, Valentin N. Voloshinov e Pavel N. Medvedev. É ponto razoavelmente estabelecido, não sem refutação por alguns adeptos do bakhtinismo, que, na verdade, não é apropriado falar de um suposto “Circulo de Bakhtin”, no seio do qual este apareceria como um “mestre”, um “orientador” ou “luminar” a cujas ideias todos os demais simplesmente aderiam e adoravam como simples “discípulos”. A realidade é que se tratava de um grupo de intelectuais, inclusive de origem multidisciplinar (filósofos, biólogos, músicos, literatos, pesquisadores de literatura) que trocava ideias e promovia debates, produzia textos próprios não sem, obviamente afetarem-se intelectualmente uns aos outros. [2] Assim sendo é neste sentido que se usa e usará a expressão “Círculo de Bakhtin” neste texto, ou seja, como um grupo heterônomo de intelectuais que participam de uma troca de ideias e informações e produzem trabalhos, bem como têm personalidades próprias, sem que haja uma espécie de liderança carismática por parte de quem quer que seja.
É ainda necessário destacar que todas essas polêmicas que surgem em torno da disputa sobre autoria de textos, bem como sobre eventuais proeminências dos componentes do grupo supracitado, somente acontecem porque sua história se desenvolve num ambiente contaminado por uma teoria totalizante, qual seja, o marxismo. Enquanto teoria que tem a pretensão ilusória e megalômana de explicar o todo, partindo da economia, da sociologia, do direito e da filosofia, mas pretendendo ingressar em toda e qualquer atividade humana ou natural, tais como áreas como a biologia, a física, a química etc., o resultado é sempre a imposição totalitária, derivada de uma teoria totalizante, que acaba construindo monstros e monstruosidades, assim como alimenta a hipocrisia no sentido de que toda produção intelectual é obrigada pela violência ou, no mínimo, o silenciamento, a se ajustar forçadamente a um esquema geral que não pode ser contraditado de forma alguma, nem mesmo por um trovão. Daí surgem oportunidades para o levantamento de hipóteses quanto não somente à real autoria de textos, mas também sobre a verdadeira intencionalidade de seus autores em certos pontos. Seriam suas assertivas frutos de uma reflexão própria ou meros ajustes a um modelo imposto pelo totalitarismo de uma teoria totalizante? Nesse clima realmente é possível o surgimento de uma série de indagações que ficam perdidas na escuridão das mentiras, hipocrisias, concessões à força, intimidações etc. Fato este que jamais ocorreria numa situação de liberdade expressiva. Nunca é demais lembrar o exemplo cômico – trágico do semi – analfabeto técnico do Centro Experimental de Reprodução Vegetal Ordzhonikidze, Trofim Denissovith Lissenko (1898 – 1976), cujas estapafúrdias teorias sobre hereditariedade foram aprovadas e vedadas quaisquer refutações simplesmente porque se adaptavam à visão marxista do sistema político. Como bem destaca Watson, “o lissenkoísmo constitui a incursão mais flagrante e ofensiva da política no âmbito da ciência desde a Inquisição”. [3] É o que ocorre com qualquer teoria totalizante que fatalmente se concretiza como um totalitarismo, pretendendo dominar não só as mentes, mas até as favas de feijão.
Esclarecidos esses pontos relevantes pode-se estabelecer que o presente trabalho tem o objetivo de promover uma análise da interface possível entre as formulações de Bakhtin e demais estudiosos sobre a linguagem e o discurso e as especificidades do discurso jurídico. O método adotado será o de descrição de alguns pontos das teorias bakntinianas e a exemplificação de sua aproximação e aplicação no âmbito do discurso jurídico em suas diversas manifestações. Tal empreitada se apresenta relevante para a compreensão da dinâmica por meio da qual se constroem os diálogos no âmbito jurídico do seio dos quais emanam decisões, leis e normas de toda natureza com repercussão na vida real de todo ser humano. Frise-se que os autores da área do Direito ou mesmo de outras searas que serão mencionados nos casos pontualmente analisados não necessariamente tiveram algum contato com as teorias de Bakhtin e seu círculo, nem se pretende advogar liames teóricos de influência. O que é demonstrável é a congruência de determinadas formulações de Bakhtin e seu grupo com a solução e a apresentação de alguns problemas do campo jurídico.
Obviamente este texto não tem o intuito de esgotar tão profícua pesquisa, mas apenas de iniciar um debate ou propor uma linha de investigação a ser inclusive melhor desenvolvida por outros estudiosos dotados de maiores luzes.
2-OS DISCURSOS JURÍDICOS SOB O PRISMA BAKHTINIANO [4]
Um primeiro ponto básico do pensamento de Bakhtin que apresenta uma ligação direta com o Direito é sua concepção distintiva entre o “mundo da teoria” e o “mundo da vida”. Conforme bem expõe Faraco:
“Bakhtin, em Para uma filosofia do ato, parte da asserção de que existe um dualismo entre o mundo da teoria (isto é, o mundo do juízo teórico, chamado, neste texto, de ‘mundo da cultura’, o mundo em que os atos concretos de nossa atividade são objetificados na elaboração teórica de caráter filosófico, científico, ético e estético) e o mundo da vida (isto é, o mundo da historicidade viva, o todo real da existência de seres históricos únicos que realizam atos únicos e irrepetíveis, o mundo da unicidade irrepetível da vida realmente vivida e experimentada).
Esses dois mundos, diz Bakhtin (p.2), não se comunicam porque o mundo da vida, na sua eventicidade e unicidade, é inapreensível pelo mundo da teoria como ele se apresenta hoje, na medida em que nele não há lugar para o ser e o evento únicos. O pensamento teórico se constitui exatamente pelo gesto de se afastar do singular, de fazer abstração da vida”. [5]
Esse distanciamento diagnosticado por Bakhtin entre os mundos da teoria e da vida é muitíssimo visível no campo jurídico, não somente em situações que beiram à comédia tal como a decisão de conceder “prisão domiciliar” para um “morador de rua” recentemente noticiada [6], mas de forma muito mais ampla e profunda no que diz respeito à produção legislativa, à interpretação doutrinária, às decisões judiciais e medidas ministeriais e policiais, ou seja, à produção e aplicação do Direito em geral.
Desde as primeiras lições sobre o Direito apresentadas a um acadêmico já se estabelece com acerto que a lei é geral e abstrata, nunca voltada a um caso concreto e, principalmente, a uma pessoa específica.
Neste sentido Montoro, valendo-se da máxima de Papiniano (“Lex est comune praeceptum”) afirma que toda lei “é uma regra estabelecida não em vista de um caso individual, mas de todos os casos da mesma espécie”. [7] E prossegue dissertando sobre sua abstratividade: “a lei disciplina uma situação jurídica ‘abstrata’, isto é, separada das circunstâncias variáveis em que ela se apresenta em cada caso concreto”. [8]
A importância da assertiva bakhtiniana está em trazer à luz o fato de que essa abstração da lei em relação do mundo da vida não é acidental ou passível de superação por alguma fórmula científica ou mágica. Trata-se de um dado da realidade do discurso, ou seja, a efetiva e inelutável existência de um abismo entre o mundo da teoria e o mundo da vida, mesmo porque têm pontos de referência díspares. O primeiro parte da abstração, do geral e tem uma característica estática. O segundo encontra-se no seio mesmo da vida dinâmica, dos casos concretos, dos fatos que são únicos e irredutíveis a uma fórmula básica ou comum. Essa diversidade entre o teórico estático e a vida dinâmica no campo do Direito também impede uma comunicação, conforme destaca Bakhtin. Não obstante, é necessário que se estabeleça uma interação no campo jurídico entre a teoria e a vida, a fim de que a excessiva abstração do Direito não o torne inútil ou até mesmo contraproducente.
O problema sob comento não passou despercebido por Reale:
“O juiz ou o advogado, que tem diante de si um sistema de Direito, não o pode perceber apenas como concatenação lógica de proposições. Deve sentir que nesse sistema existe algo de subjacente, que são os fatos sociais aos quais está ligado um sentido ou um significado que resulta dos valores, em um processo de integração dialética, que implica ir do fato à norma e da norma ao fato, como Carlos Cossio com razão assinala, embora nos quadros de diversa concepção.
Querer interpretar um sistema de normas como o Código Civil ou o Código Penal, tão somente naquilo que eles expressam no plano lógico – formal, é deixar de lado o próprio problema da vida ou da experiência jurídica, muito embora a Ciência do Direito seja prevalentemente ciência de normas, e desde que estas não sejam reduzidas a meras entidades lógico – ideais”. [9]
Poder-se-ia, sem um melhor conhecimento das ideias de Bakhtin e seu círculo, objetar que as leis e normas não dialogam face a face com seus destinatários, sejam eles os intérpretes e operadores do Direito, seja a população em geral. Neste ponto é preciso ter em mente que para Bakhtin o diálogo, embora tenha sua manifestação mais destacada no face a face, não se reduz a isso, mas a todas as formas de comunicação que permeiam as relações intersubjetivas e mesmo coletivas presentes na sociedade. Dessa maneira um ator no palco, embora não fale diretamente à plateia, estabelece com ela um diálogo. Uma escultura produzida pelo artista transmite uma mensagem que dialoga com o público que a contempla. Enfim, as leis, as normas, as decisões judiciais também estabelecem uma espécie dentre muitas outras de diálogo com seus interlocutores, sejam eles pessoas ligadas às atividades jurídicas, sejam leigos.
Com algo mais de sofisticação Telles Júnior procede a uma aproximação entre o Direito e a Física Quântica, dando destaque ao “indeterminismo operacional” subjacente ao mundo natural e que também, de alguma forma se manifesta no mundo jurídico. [10] Afinal, o objeto e, principalmente, o sujeito do Direito é o homem. O homem é um ser dotado de extrema complexidade e, portanto, imprevisível. Nessa senda o discurso estático do Direito (mundo da teoria) não encontra subsunção nas inúmeras possibilidades abertas pelo homem e suas interrelações complexas (mundo da vida). Assim como na Física Quântica (guardadas as devidas distinções) foi abalada a noção de um “cosmos” (ordem perfeita e imutável), também o Direito se apresenta sob um prisma cosmológico em teoria, em suas formulações ideais e formais, mas ao deparar-se com o mundo da vida, depara-se também com o caos, com a indeterminação. Nas palavras de Telles Júnior:
“A complexidade, como é óbvio, condiciona a variedade. Quanto mais complexo é um ser, mais variadas serão suas possibilidades de manifestação. A versatilidade é natural corolário da complexidade”. [11]
E um dos elementos fundadores desse caos do mundo da vida com que o Direito enquanto mundo da teoria se depara é certamente a liberdade do homem. Isso porque
“(...), não é possível prever, com absoluta segurança, a reação que vai ser executada, em cada caso, por um ser capaz de praticar atos de escolha.
Impossível, em verdade, tal previsão. Mas a prolongada observação do comportamento desses seres demonstra que suas reações têm índices de probabilidade. Umas são muito prováveis; outras, apenas prováveis, e outras improváveis.
Conclui-se, portanto, que, embora seja impossível prever, com absoluta segurança, o comportamento de um ser capaz de executar atos de escolha, é sempre possível revelar o grau de probabilidade de seu comportamento.
Isto nos leva à convicção de que não há uma diferença total entre o comportamento de uma micropartícula e o comportamento de um ser livre. (...). O comportamento da micropartícula depende da altíssima velocidade de seus movimentos, e o do ser livre depende da imensa complexidade de sua constituição.
A imensa velocidade está para o indeterminismo, no mundo das micropartículas, como a imensa complexidade está para a liberdade, no mundo dos homens e das mulheres”. [12]
É destacável que embora haja certo dualismo que aproxima as concepções de Bakhtin do discurso jurídico que se conforma entre um mundo teórico e um mundo da vida incomunicáveis em princípio, também ocorre uma aproximação na medida em que esse distanciamento, esse relativo abismo entre os dois mundos não impossibilita que a teoria tenha por objeto o mundo da vida e que o mundo da vida atue sobre a teoria, seja em sua formulação inicial, seja em sua aplicação no momento exato em que ambos os mundos se tocam de alguma forma. Apenas se deve ter o cuidado de perceber que o mundo da teoria é incapaz de determinar exatamente o mundo da vida, de fazer previsões ou descrições perfeitas, mas sim meras aproximações estatísticas ou probabilísticas, eventualmente apenas sopesar possibilidades.
Fato é que entre as chamadas “leis físicas” ou “leis da natureza” e as “leis éticas” ou “leis jurídicas” há elementos comuns. O principal é que em ambos os casos são criações do intelecto humano, já que não existem na natureza como realidades objetivas. No caso das chamadas “leis físicas”, o homem observa, experimenta e deduz as leis do ser. No caso das “leis jurídicas ou éticas” o homem formula regras sobre o dever – ser. Mas, novamente, em nenhum dos dois casos, as formulações teóricas encontram exata subsunção no mundo da vida. Vale transcrever o ensinamento de Telles Júnior mais especificamente sobre as leis éticas que interessam mais de perto a este texto:
“A lei ética não é descritiva de um comportamento efetivamente mantido, mas, sim, a fórmula do comportamento que deve ser mantido, em determinada circunstância. Ela é uma indicação de caminho, e não o relato do caminho percorrido. Ela não descreve o que é, mas o que deve ser”. [13]
Resta claro que o discurso jurídico se move no campo da abstração em busca do “universal” em meio a um mundo de diversidade. Ele é basicamente de natureza hipotética, já que qualquer norma “somente vigora na hipótese de se verificar a circunstância para a qual a mesma foi enunciada”. E essa hipótese de ocorrência é indeterminada devido à liberdade e consequente variedade do gênero humano. [14] Eis novamente clara e evidente a aproximação com o pensamento de Bakntin que separa o mundo teórico do mundo da vida, ressaltando suas divergências.
Numa derradeira citação do pensamento de Telles Júnior pode-se entrever a utilidade da consciência quanto a essas divergências entre o mundo da teoria e o mundo da vida expostas por Bakhtin. Mais que isso, é possível entrever nas frestas dessas divergências a absoluta necessidade de consideração dessa realidade na seara jurídica sob pena de torná-la uma espécie de adorno inútil e um tanto quanto brega e piegas:
“Tal é a razão pela qual uma verdadeira compreensão do comportamento humano e da liberdade – assim como a correta interpretação das LEIS que regem comportamento e liberdade – exige clara consciência da interação natural das predisposições genéticas e dos fatores circunstanciais do meio em que transcorre a existência dos seres”. [15]
Em Bakhtin e em teóricos do Direito de escol encontra-se uma visão crítica em relação à exacerbação de um racionalismo idealista que despreza o indivíduo e o individual, a vida concreta e o caso concreto. Nas palavras de Faraco:
“Bakhtin, desde este seu primeiro texto, será um crítico contumaz do racionalismo (p. 29 – 30), isto é, de um pensamento em que interessa o universal e jamais o singular; a lei geral e jamais o evento; o sistema e jamais o ato individual; um pensamento que contrapõe o objetivo (entendido como o único espaço da racionalidade, da compreensão lógica) ao subjetivo, ao individual, ao singular (entendido como espaço do fortuito, do irredutível à compreensão lógica). Incomoda-o a ideia de sistema em que não há espaço para o individual, o singular, o irrepetível, o evêntico”. [16]
Dessa raiz emerge uma reflexão existencial sobre o “ser humano concreto” em sua unicidade e irrepetibilidade. Sua condição de ocupar um espaço e constituir-se de uma consciência individual totalmente diversa de qualquer outro. Sendo único o ser humano individualizado não pode ser indiferente deve se posicionar e responder de acordo com sua unicidade de forma que não há como fugir da própria existência. Isso significa que há uma responsabilidade decorrente da unicidade. Quando não se é apenas uma espécie de gota diluída num oceano indiferenciado, essa individualidade impõe uma responsabilidade por seus atos e por seu ser. A conduta humana então se torna plenamente responsável por si mesma na medida que aquilo que podemos fazer ou deixar de fazer, somente a nós cabe, nenhum outro pode tomar nosso lugar. Essa responsabilidade não é solipsista, mas totalmente relacional, intersubjetiva de maneira que viver é sinônimo de agir e agir em relação ao outro. [17] Afirma Bakhtin:
“A vida conhece dois centros de valores que são fundamentalmente e essencialmente diferentes, e ainda assim correlacionados um com o outro: eu mesmo e o outro; e é em torno desses centros que todos os momentos concretos do Ser são distribuídos e dispostos (p. 74)”. [18]
Também percebeu essa característica do humano o psiquiatra Viktor E. Frankl ao afirmar que
“Esse fato de cada indivíduo não poder ser substituído nem representado por outro é, no entanto, aquilo que, levado ao nível da consciência, ilumina em toda a sua grandeza a responsabilidade do ser humano por sua vida e pela continuidade da vida”. [19]
Novamente as implicações do pensamento de Bakhtin assumem relevância no campo jurídico e mesmo na área da Filosofia e da Sociologia do Direito. Essa visão do ser humano como um centro de ação e responsabilidade individual e irrepetível é importante para a conformação de um pensamento que perscruta os mecanismos de atribuição de responsabilidade moral e legal em meio a determinados fluxos de divisão de tarefas e compartimentações burocráticas de poder.
Arendt é uma das autoras que explorou mais profundamente essa problemática, ressaltando por referência a um mecanismo em que cada um de nós não passa de um “dente de engrenagem” numa máquina, a mistura quase indiscernível das linhas da conduta responsável e irresponsável. [20] A autora destaca que o poder exercido não por leis ou homens, mas por “escritórios ou computadores anônimos” despersonalizados é uma terrível ameaça à liberdade e à civilidade que jamais foi sequer imaginada por qualquer tirano da história. [21] É de se observar que nessa toada é possível identificar em Bakhtin um virtuoso conceito de comunicação que se dá sempre entre eu e outro; eu e tu; jamais entre eu e algo. Nesta última circunstância não há comunicação possível, mas mera relação entre sujeito e objeto. O homem é um ser relacional, mas não de forma indistinta. Tratam-se de relações bem específicas de homem a homem, de um “eu” com um “tu”, com um “outro” que é “outro ser humano”. Isso não é meramente uma qualidade contingente do homem, mas algo constitutivo da humanidade do homem. É claro que o ser humano estabelece relações também com as coisas (objetos, animais etc.), mas é preciso lembrar com Buber que “o homem não pode viver sem o isso, mas aquele que vive somente com o isso não é homem”. [22]
Retornando a Arendt, constata-se que a diluição da responsabilidade e do próprio exercício do poder em compartimentos e divisões de tarefas como que secciona a comunicação entre os homens, repartindo entre todos a culpa relativa a determinada conduta, de forma que “quando todos são culpados ninguém o é”. [23] Isso porque “não existem coisas como a culpa coletiva ou a inocência coletiva. A culpa e a inocência só fazem sentido se aplicadas aos indivíduos”. [24] Sem essa noção básica em muitas circunstâncias como, por exemplo, nos crimes de guerra abordados por Arendt, os criminosos se desculpariam, como fizeram efetivamente alegando: “se eu não tivesse feito isso, outra pessoa poderia ter feito e faria”. [25]
E nem só de exemplos de um passado assustador se pode utilizar, mas a questão da responsabilidade pessoal entra em jogo num dos mais intrincados problemas da contemporaneidade, qual seja, a questão do chamado “Crime Organizado”, no seio do qual também se opera essa diluição de poderes e divisão de tarefas em meio às quais o indivíduo é engolido e a comunicação é simplesmente cortada. [26]
Desde logo se percebe claramente como o pensamento de Bakhtin destoava e não era bem vindo no contexto da Rússia revolucionária em que viveu, sendo facilmente compreensíveis os óbices impostos à sua carreira acadêmica naquelas circunstâncias. O totalitarismo é avesso ao indivíduo e tem adoração pelo coletivo indistinto, pela burocracia, pela despersonalização, mesmo porque tudo isso torna genocídios e expurgos bem mais digeríveis.
No desenvolvimento da “Teoria da Imputação Objetiva”, Roxin também se vale desse conceito de responsabilidade individual em que a conduta concreta deve ser objeto de valoração, não podendo o julgamento desta se sustentar tão somente nas abstrações. O autor traz à baila o tema dos chamados “cursos causais hipotéticos” para afirmar que
“existe consenso ao menos a respeito do caso mais importante: a imputação de uma realização antijurídica de um tipo não pode ser excluída por existir um autor substituto que, na inexistência do primeiro autor, teria assumido a prática do fato (princípio da assunção – Übernahmeprinzip)”. [27]
No seguimento Roxin apresenta exatamente o mesmo exemplo explorado por Arendt em sua obra anteriormente abordada:
“Nas hipóteses de fuzilamentos ilegais em época de guerra o autor não poderá eximir-se da imputação (quanto à causalidade) sob o fundamento de que, se tivesse ele recusado, um outro teria realizado o fuzilamento. Aquele que furta uma coisa não pode alegar que, doutro modo, alguém a teria indubitavelmente subtraído, e que ela estaria de qualquer maneira perdida para o proprietário. Isto decorre da ideia teleologicamente inquestionável de que o ordenamento jurídico não pode recuar em suas proibições unicamente porque outra pessoa está pronta para violá-las. Haveria isenção de pena unicamente porque, no lugar de uma pessoa decidida a praticar o fato, existiriam várias – uma conclusão claramente insensata”. [28]
É importante salientar que para Bakhtin “viver significa tomar uma posição axiológica em cada momento, significa posicionar-se em relação a valores”. E é através desse posicionamento ativo que se pode promover, segundo o autor, alguma aproximação desejável entre o mundo da teoria e o mundo da vida. [29]
Mais especificamente com relação à comunicação Bakhtin aponta para o fato de que a palavra dita não se compõe somente de um significado pré – determinado como ocorre num dicionário, mas é carregada de valores e posições de acordo com quem fala e ouve, de acordo com a entonação, os gestos e o contexto em que se exprime. Essa é a manifestação da língua viva que ultrapassa o formalismo semântico para acolher um posicionamento valorativo do falante ou daquele que escreve. Como afirma o autor em destaque:
“(...) eis por que a palavra não apenas designa um objeto como uma entidade pronta, mas também expressa por uma entonação minha atitude valorativa em relação ao objeto, em relação àquilo que é desejável ou indesejável nele, e, desse modo, movimenta-o em direção do que ainda está por ser determinado nele, transforma-o num momento constituinte do evento vivo, em processo (p. 32 – 33)”. [30]
A palavra pode até ser neutra, uma sentença pode ser neutra, mas jamais um enunciado, pois que este, segundo Bakhtin “emerge sempre e necessariamente num contexto cultural saturado de significados e valores e é sempre um ato responsivo, isto é, uma tomada de posição neste contexto”. [31] Ou seja, a palavra incrustada no dicionário ou uma sentença usada somente para exemplificar uma figura de linguagem não são a língua viva, não constituem enunciados. O enunciado somente surge do encontro entre eu e o outro, da comunicação, a qual jamais será neutra, estará sempre impregnada de valores e condicionada por um contexto.
Usando um exemplo bem simples da área do Direito Penal:
Nos Crimes contra a Honra, a mera dicção da palavra ou da narrativa ofensiva não é suficiente para a configuração dos tipos penais de Calúnia, Difamação ou Injúria (artigos 138 a 140, CP). Faz-se necessário, para além da palavra ou narrativa, a análise do contexto e do elemento subjetivo que norteia o agente. Exige-se o chamado “elemento subjetivo do injusto: o animus injuriandi vel diffamandi”, imprescindível “como elemento integrante da conduta”, implícito na figura típica como “a vontade e o intuito de atingir a honra alheia”. [32] A mera palavra ou sentença é neutra, mas o enunciado que se conforma com o ingresso do elemento subjetivo, da entonação empregada pelo autor e de seus fins e valores ali expostos, se revela como uma tomada de posição ofensiva, o que, aí sim, é capaz de dar forma ao tipo penal. Também, de outra banda, pode ser que uma palavra ou expressão que teria, em tese, uma significação ofensiva, possa tornar-se uma forma carinhosa ou até mesmo elogiosa de referência à pessoa visada. Com o perdão da grosseria, a palavra “puta” (sic) pode ser dirigida a alguém com valores de vetores opostos. Por exemplo:
a)Em uma discussão o indivíduo irritado diz a uma mulher: “Você não passa de uma puta” (sic)!
b)Após ler um texto de um indivíduo o outro lhe diz: “Você é um puta de um escritor” (sic)!
Note-se que a linguagem recebe um afluxo de vida quando se converte em enunciado numa comunicação eu – tu. No primeiro caso temos uma ofensa (um crime de injúria), no segundo um elogio.
Muito embora a linguagem viva presente no diálogo face a face ou mesmo na escrita e em outras manifestações comunicativas prenhes de significação e valores seja capaz de descrever os fatos da vida, isso não implica concluir que a mera retirada das palavras e expressões de seu mundo semântico formal empreste à linguagem uma capacidade de descrever o mundo de forma perfeita e completa.
Conforme bem lembra Faraco, para Bakhtin, “se transcrito em termos teóricos o evento perde precisamente seu sentido de evento”. Ou seja, um fato só é um fato em si, já se torna outra coisa quando narrado verbalmente ou por meio da escrita. Entretanto, Bakhtin não se desvia por uma espécie de esoterismo do evento, designando-o como “algo inefável, algo que só poderia ser vivenciado, mas não verbalizado” à semelhança de uma experiência de iluminação das práticas de meditação orientais e ocidentais. Não, Bakhtin afirma a possibilidade de compreender o evento e transmitir essa compreensão por meio de um enunciado verbal claro e nítido. Em sua concepção, a língua surge inicialmente como instrumento de vivência e convivência no seio exclusivo do “mundo da vida”. Só num momento posterior é que passa a ser utilizada para a conformação do “pensamento teórico”. Entretanto, o autor em destaque é cauteloso quanto aos poderes descritivos da linguagem em relação aos eventos. Descrever os eventos reais por meio da linguagem é possível, mas difícil, eis que “a verbalização total é inalcançável e permanecerá sempre como algo a ser atingido”. Ou seja,
“Bakhtin materializa aqui sua crença nas possibilidades de verbalizarmos nossas experiências vividas a partir de seu interior, mas alerta para o fato de que nunca conseguiremos expressá-las em sua totalidade. Ou seja, dar sentido ao vivido verbalmente é um processo possível, mas sempre aberto, sua completude é sempre postergada (‘está sempre presente como aquilo que está por ser alcançado’ – p. 31)”. [33]
Em suma, a verbalização do mundo da vida é viável, mas sempre como um projeto inacabado, incompleto e imperfeito. O Ser não se presta completamente à verbalização, a linguagem não abarca todo o Ser. Afirmar que a linguagem pode abarcar todo o Ser seria o mesmo que trocar o significado pelo signo, ou melhor, identificar o significado com o signo, o que equivale a uma espécie de retorno às crenças primitivas em palavras mágicas que se confundem com o objeto verbalizado.
Bronowski já havia detectado esse limite descritivo em sua afirmação de que “a Ciência é uma descrição do mundo, ou melhor, uma linguagem para descrever o mundo”. [34] E todos sabemos o quão aquém do mundo está a ciência e, portanto, essa linguagem descritiva acima mencionada. É o mesmo autor que, citando o “Princípio da Incerteza” de Heisenberg, consigna que toda “descrição da Natureza contém determinada incerteza essencial e irremovível”. [35]
A linguagem é a via de acesso à humanidade do homem como ser pensante e relacional, mas também, paradoxalmente, é um limite para a expressão das idéias. Freqüentemente ela é insuficiente, independentemente da habilidade do escritor ou do orador, para exprimir aquilo se pretende. Sempre vale a pena citar a agudeza do espírito de Saramago ao sentenciar:
“Todos os dicionários juntos não contêm nem metade dos termos de que precisamos para nos entendermos uns aos outros”.[36]
Também na clássica obra “As mil e uma noites” encontra-se exemplo dessa constatação na literatura:
“Até então não havia Aladim visto outras mulheres de rosto descoberto, a não ser sua mãe, mulher já idosa e que nunca fora realmente bela. Ouvira dizer que havia criaturas lindíssimas, mas por mais que sejam as palavras que se empregam numa descrição, não causam nunca a mesma impressão que a realidade”. [37]
Nunca é demais lembrar a antológica passagem de Machado de Assis:
“A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando”. [38]
Certamente no campo jurídico essa limitação da linguagem para a descrição do mundo da vida está muito bem representada na tentativa de reprodução histórica dos fatos no processo. Tentativa sempre falha porque jamais a linguagem jurídica poderá realmente trazer para o presente, no bojo dos autos, a realidade daquilo que aconteceu enquanto evento. Por isso já se abandonou modernamente a velha dicotomia entre “verdade real e verdade formal”, considerando o fato de que a primeira é inatingível. Hoje essa distinção não tem mais cabimento, segundo a moderna processualística. Citando Ada Pellegrini Grinover, Flávio Martins Alves Nunes Júnior, destaca que “a verdade almejada pelo processo é uma ‘verdade processual’”, nem real, nem formal, mas “ ‘uma verdade judicial, obtida por um método processualmente legítimo’ e que ‘nada mais é do que o estágio mais próximo possível da certeza’”. [39] Ademais, nunca é despiciendo lembrar a manifestação jocosa de José Carlos Barbosa Moreira ao afirmar que “dizer que o processo penal persegue a chamada ‘verdade real’, ao passo que o processo civil se satisfaz com a denominada ‘verdade formal’, é repetir qual papagaio tolices mil vezes desmentidas”. [40]
Não por outra razão Carnelutti, ao estudar o que chamou com propriedade de “As Misérias do Processo Penal” (as quais podem perfeitamente ser transplantadas para os demais ramos processuais), destacou o fato de que no processo se faz história, não a grande história dos povos, mas a “pequena história, a história dos indivíduos” sem a qual, aliás, não haveria a grande história, assim “como não haveria a corda sem os fios, que estão torcidos entre si”. O processualista italiano chama a atenção para as ingentes dificuldades que se impõem para a reconstituição do passado, com especial destaque para o Processo Penal onde esse refazer de um percurso é o refazer de um caminho “cujos rastros quem percorreu procura destruir”. [41]
O ramo processual do Direito pode ser um indicativo de que o projeto de Bakhtin no sentido de aproximar o mundo da vida do mundo da teoria é prenhe de obstáculos pela própria natureza das coisas, pelos limites da linguagem e inclusive pela miséria de certas concepções que permeiam a poiética processual e que intensificam esses óbices naturais. Apenas para encerrar essa abordagem, um exemplo típico de dificuldade que a comunicação processual tem com o mundo da vida é materializada no conhecido brocardo de que “o que não está nos autos não está no mundo” (“quod non est in actis non est in mundo”). Ora, admitida essa regra, estamos diante de uma barreira intransponível entre o mundo da vida e o mundo da teoria, este último representado pelo processo.
Outro aspecto do pensamento de Bakhtin é interessante e tem grande proximidade com o Direito, eis que este é uma ciência humana aplicada. O autor entende que o labor científico das ciências humanas se concretiza por atos de interpretação e atribuição de sentido e não por uma atividade matemático – quantitativa de medida. Isso deixa bem claro que Bakhtin parte do pressuposto de uma nítida distinção entre ciências naturais e ciências humanas. Segundo Faraco esse pensamento advém dos estudos do alemão Wilhelm Dilthey (1833 – 1911) que foi um dos protagonistas do debate ocorrido em fins do século XIX e começo do XX acerca das características das ciências sociais e humanas. Dilthey soma-se àqueles que rechaçavam o positivismo de matriz comteana, segundo o qual todas as ciências deveriam se adaptar aos métodos e caracteres das ciências naturais. Para Dilthey e outros críticos há uma oposição entre as “Ciências do Espírito” e as “Ciências da Natureza”, simplesmente pelo fato óbvio de que têm “objetos ontologicamente diferentes e, por consequência, métodos diferentes”. Um dos argumentos centrais é que o objeto das Ciências Naturais é diverso do sujeito que conhece. Não pode o homem conhecer “por dentro” (não fisicamente, mas ontologicamente) um inseto, uma árvore etc. Não pode o homem, nas Ciências Naturais, partir de seu interior para o conhecimento. Por outro lado, nas Ciências do Espírito o objeto não é diverso do sujeito. Isso porque nessas ciências o objeto de estudo é o mundo cultural que nada mais é do que “expressão de uma vivência humana que o sujeito cognoscente pode aqui conhecer de dentro”. Como estamos imersos e temos diante de nós um mundo de cultura autopoiético (que se constroi a si mesmo a partir de nós mesmos) não nos é vedada uma percepção interior, íntima no reviver ou reconstruir o caminho das experiências, da conduta, dos sentimentos de outros homens e mulheres e desvendar seus significados. Dessa maneira temos que o ideal metodológico das Ciências Naturais é a ex – plicação, buscando “do exterior as relações necessárias entre os fenômenos”, enquanto que o ideal das Ciências do Espírito é a com – preensão, ou seja, “captar do interior, por uma experienciação psíquica, por um sentir em conjunto com os outros, os significados das ações humanas”. Abrindo um parêntesis é bom acrescer que se pode afirmar que enquanto nas Ciências do Espírito podemos entrever uma tendência à simpatia (no sentido etimológico de sym – união + pathos – sentimento, emoção) ou até de empatia (também no sentido etimológico de in – para dentro + pathos – sentimento, emoção), nas Ciências Naturais se entrevê uma tendência à antipatia (no sentido etimológico de anti – contrário, oposto + pathos – sentimento, emoção). Em suma, nas Ciências do Espírito o homem é sujeito e concomitantemente objeto, estuda a si mesmo, há certa identidade entre ele e seu objeto de estudo. Nas Ciências Naturais, o homem é constitutivamente “outro” em relação a seu objeto de pesquisa, por isso eventualmente até mesmo hostil a ele, movido por um sentimento de embate e um desejo de dominação. Bakhtin acata praticamente “in totum” o pensamento de Dilthey, somente apontando para um excesso de “psicologismo” onde “o psiquismo tem primazia sobre o universo da cultura”. De acordo com Bakhtin, o que ocorre é o reverso, “a consciência individual se constroi na interação, e o universo da cultura tem primazia sobre a consciência individual”. [42]
Já foi mencionado neste texto que a individualidade do humano, sua irrepetibilidade é abordada com destaque também na obra do psiquiatra Viktor Frankl. E aqui também, quando se fala em Ciências do Espírito no bojo das quais se busca um sentido, para além do mero quantificar e medir próprio das Ciências Naturais, a formulação de Dilthey também se aproxima da de Frankl, o qual, por seu turno, afirma que “a busca do indivíduo por um sentido é a motivação primária em sua vida”. [43] Em assim sendo, novamente temos um ponto de contato também entre Frankl e Bakhtin, muito embora certamente este segundo fizesse a mesma objeção que fez a Dilthey quanto ao “psicologismo” e a falta de uma visão de sobrepõe a influência da cultura e da interação na formação da “consciência individual”. Pode ser que Bakhtin tenha razão quanto à regra dessa primazia da cultura e da interação na conformação da “consciência individual”. No entanto, é preciso reconhecer que tanto a teorização de Dilthey como a de Frankl são também descritivas de uma característica tipicamente humana, a qual o segundo mencionado resume com maestria na seguinte assertiva: “se pode privar uma pessoa de tudo, menos da liberdade última de assumir uma atitude alternativa frente às condições dadas”. [44] Em suma, o homem é condicionado por seu ambiente cultural e suas vivências intersubjetivas, suas interações sociais, mas não é determinado por elas. Na verdade, em uma análise mais conglobante do pensamento de Bakhtin, levando em conta suas formulações quanto à individualidade em sua interação com o meio sócio – cultural, pode-se entrever a noção de uma mútua influência e não de uma sobreposição propriamente dita, o que vai ao encontro do acima afirmado.
Como sustenta Faraco, um dos componentes do círculo de intelectuais do qual Bakhtin fazia parte, Medvedev, deixa consignado claramente que toda “criação ideológica” [45] tem origem e desenvolvimento social e histórico, não podendo ser encarada como um fenômeno isolado, nem também reduzida a “uma consciência individual” ou a um “reino das ‘puras ideias’”. [46] É comum a todo o chamado “Círculo de Bakhtin” a convicção de que
“os signos são intrinsecamente sociais, isto é, são criados e interpretados nos interior dos complexos e variados processos que caracterizam o intercâmbio social. Os signos emergem e significam no interior de relações sociais, estão entre seres socialmente organizados; não podem assim, ser concebidos como resultantes de processos apenas fisiológicos e psicológicos de um indivíduo isolado; ou determinados apenas por um sistema formal abstrato. Para estudá-los, é indispensável situá-los nos processos sociais globais que lhes dão significado. Por outro lado, Medvedev expõe outra premissa fundamental para seu raciocínio (e para o pensamento do Círculo como um todo): nós, seres humanos, não temos relações diretas, não mediadas com a realidade. Todas as nossas relações com nossas condições de existência – com nosso ambiente natural e contextos sociais – só ocorrem semioticamente mediadas. Vivemos, de fato, num mundo de linguagens, signos e significações”. [47]
É perceptível que isso, longe de excluir a individualidade, a pressupõe de modo que é exatamente da interação das individualidades, de sua relação intersubjetiva que brotam os significados e os mais diversos discursos. É, em suma, da interrelação e da afetação mútua das individualidades contextualizadas que emergem os signos e as significações. Sem os indivíduos não há relação, porque para que haja uma relação é preciso do “eu” e do “outro”. E sem as relações não há que se falar em linguagem, discurso, mas talvez somente em um pensamento isolado, um solilóquio desimportante.
Mesmo quando mais adiante se verá que Bakhtin fala sobre a composição do “eu” como um conjunto de “vozes sociais”, isso não significa que o indivíduo seja uma espécie de “tabula rasa” sobre a qual as vivências e aprendizados se depositam para conformá-lo. Pinker demonstra que a tese da “tabula rasa” já vem sendo desmentida pela ciência há tempos, de modo que há várias estruturas inatas que inclusive permitem a comunicação com o mundo, a absorção de informações, o aprendizado etc. Em suas palavras:
“A lógica simples diz que não pode haver aprendizado sem mecanismos inatos para aprender. Esses mecanismos têm de ser poderosos o suficiente para alicerçar todos os tipos de aprendizado de que os humanos são capazes. A teoria da apreensibilidade – a análise matemática de como o aprendizado pode funcionar em princípio - nos diz que há sempre um número infinito de generalizações que um aprendiz pode extrair de um conjunto finito de ‘imputs’. As sentenças que uma criança ouve, por exemplo, podem ser a base para que ela as repita textualmente, produza qualquer combinação de palavras com a mesma razão entre substantivos e verbos ou analise a gramática subjacente e produza sentenças que se amoldem a ela”. [48]
O pensamento do Círculo de Bakhtin não perde de vista essa dimensão individual e sua importância:
“Se eles buscaram um entendimento da pessoa humana na perspectiva de suas relações sociais e como um ente interiormente múltiplo e heterogêneo, procuraram também manter um espaço teórico significativo para a singularidade, recusando qualquer determinismo absoluto”. [49]
É bem nítida a defesa da necessidade de não conceder primazia ao indivíduo com relação aos “outros generalizados e sobre as relações sociais, o que não significa (e aqui mora o grande desafio) deixar a singularidade desaparecer num caldo integralmente determinista”.
“Nesse sentido, é bastante engenhosa (e heuristicamente poderosa) a formulação que Bakhtin e seu Círculo deram a essa questão. Eles propuseram – com base em sua concepção de linguagem como interação social e em sua concepção sociossemiótica da consciência – uma articulação entre o individual e o social de natureza não dicotômica e, ao mesmo tempo, não determinista e não idealista. (...).
Por isso tudo, pode-se dizer que, para o Círculo de Bakhtin, a consciência é social de ponta a ponta (a origem do seu alimento e da sua lógica é externa – a heteroglossia dialogizada) e singular de ponta a ponta (os modos como cada consciência responde às suas condições objetivas são sempre singulares, porque cada um é um evento único do Ser)”. [50]
Voltando ao núcleo linguístico – comunicativo de Bakhtin é interessante sua afirmação de que as Ciências Naturais são de caráter “monológico”, porque ali “o intelecto contempla uma coisa muda e se pronuncia sobre ela”. Doutra banda, as Ciências Humanas têm caráter “dialógico” porque nelas “o intelecto está diante de textos que não são coisas mudas, mas a expressão de um sujeito”. É claro que Bakhtin sabe muito bem que as Ciências Naturais também produzem textos e ensejam o diálogo. Na verdade o que o autor sublinha é que há um aspecto distintivo entre as Ciências Naturais e as Humanas quanto à relação sujeito – objeto no exato momento do estudo ou pesquisa. O que ocorre é que nas Ciências Naturais há realmente uma inicial relação entre sujeito e objeto, enquanto nas Ciências Humanas desde o início a relação é entre sujeito e sujeito, já que o “objeto” é na verdade o texto, a conduta ou a fala de alguém. Há em Bakhtin uma recusa à “reificação do texto”, pois sempre subjaz a ele um sujeito com sua “visão de mundo” e todo um “universo de valores” com os quais se interage. [51] Ele confirma a assertiva de Dilthey de que
“as ciências humanas se debruçam sobre a significação, por isso trabalham com a compreensão e não com a explicação. Esta, segundo ele, implica uma só consciência, um só sujeito; aquela, duas consciências, dois sujeitos. Enquanto a explicação aponta para o necessário (i.e. , o intelecto contempla as coisas mudas em busca de relações necessárias), a compreensão aponta para o possível, porque é uma operação sobre o significado que, sendo em grande parte efeito da interação, do encontro de cosmovisões e orientações axiológicas, envolve sempre uma dimensão de pluralidade”. [52]
Essa visão bakhtiniana das ciências humanas como um campo do possível e variável pode ser conectada com, por exemplo, o pensamento de um sociólogo do Direito como Niklas Luhmann. Este traz à baila os conceitos de “expectativas normativas e expectativas cognitivas”. Nas expectativas cognitivas o sujeito antevê determinadas condutas ou fatos da vida social que podem ou não ocorrer de acordo com essa sua antevisão. Neste caso, a frustração de uma expectativa levará o indivíduo a se adaptar às circunstâncias, de modo que será inexigível uma coerção do autor da frustração à realização das expectativas do sujeito. Já nas chamadas expectativas normativas, sua frustração não indica que o expectante estava errado e sim que o autor da frustração discrepou de uma norma que devia ter sido cumprida. Isso enseja a coerção inclusive. Dessa forma, as normas são designadas por Luhmann como “expectativas de comportamento estabilizadas em termos contrafáticos”. [53] Ou seja, o Direito e suas normas se perfazem como regras que não são dotadas da ilusão de serem sempre e invariavelmente obedecidas. Muito ao contrário, pressupõem sua frustração e, exatamente por isso, preveem mecanismos de sanção e coerção. Em suma, o Direito é pensado a partir de “desapontamentos”. [54] As normas de Direito constituem expectativas normativas, as normas morais, por exemplo, constituem expectativas cognitivas. As primeiras, como se sabe são dotadas de força coerciva e sancionatória, enquanto as segundas não o são, mas podem gerar reprovação pelo desapontamento também. Esse pensamento se coaduna com a formulação de Bakhtin quanto às características das Ciências Humanas na exata medida em que estas trabalham com o possível e variável e não com o necessário, ainda quando se trate de uma ciência normativa como o Direito. Mesmo nessa seara, onde regras são impostas, já se sabe muito bem que essas regras são criadas exatamente porque podem ser violadas e sua violação não importa na sua invalidade.
Essa distinção entre as Ciências Humanas ou do Espírito e as Ciências Naturais também será importante para afastar ou ao menos abrandar a influência comteana do Positivismo que acabou gerando no campo do Direito o chamado “Positivismo Jurídico”, no bojo do qual a norma legal, enquanto elemento palpável e material mais passível de aproximação com os objetos das Ciências Naturais assume um relevo praticamente exclusivo, pouco menos radical do que na sua versão exegética (Escola da Exegese). Certamente a obra mais reveladora desse esforço em acrisolar o Direito é aquela de Kelsen onde apregoa um afastamento de elementos valorativos, metafísicos, sociais ou quaisquer outros estranhos à norma em si. [55]
Recuperando a noção da distinção entre as Ciências Humanas e as Ciências Naturais, bem como a característica da indeterminação inerente às primeiras, Bakhtin e toda uma tradição dicotômica restituem ao Direito sua dinâmica, sua vida.
Nessa linha a própria norma posta não apresenta um “ser” ou significado definido desde logo e desde sempre ou para sempre pela linguagem. Ricoueur expõe a questão da interpretação versus argumentação. Interpretar é “encontrar ou descobrir sentido”; argumentar é “construir sentido”. Muito embora a interpretação esteja mais ligada ao modelo de Direito Romano – Germânico caracterizado pela lei escrita e a argumentação seja característica do modelo Anglo – Saxão da “Common Law”, baseado principalmente nos “cases” ou precedentes, fato é que em ambos os modelos estão presentes tanto a técnica da interpretação como a da argumentação, de forma que há uma falsa oposição entre elas, quando, em verdade, são complementares, formando um par indissociável. Ricoueur menciona a situação estudada por Ronald Dworkin a respeito dos chamados “hard cases”, ou “casos difíceis – quando nenhuma das disposições legais extraídas das leis existentes parece constituir a norma sob a qual referido caso poderia ser situado”. Aquilo que autor (Dworkin) denomina de “no answer” (sem resposta). Não somente nestas situações, mas em geral, Ricoueur afirma que: em sua opinião “o silogismo jurídico não é passível de redução à via direta da subsunção de um caso a uma regra, mas deve, além disso, satisfazer ao reconhecimento do caráter apropriado da aplicação de certa norma a certos casos”. Eis o campo da possibilidade em oposição ao campo da segurança absoluta, da certeza, da exatidão matematizável. O caráter vago da linguagem jurídica, eventuais conflitos de normas ou até o silêncio provisório da lei, ensejam os chamados “casos difíceis” ou “hard cases” de Dworkin. Nessas ocasiões é necessário e oportuno “escolher entre a letra e o espírito da lei”. Enfim o texto legal é concomitantemente objeto de interpretação e argumentação, de descoberta e construção de seu sentido em sua constante adequação a casos concretos. [56] Note-se que não somente está aqui presente a distinção bakhtiniana entre as Ciências Humanas e as Ciências Naturais, mas também a distinção e a necessária integração entre o mundo da teoria e o mundo da vida, anteriormente expostas.
Seguindo no estudo chega-se à “Doutrina da Refração”. De acordo com essa tese, os signos não somente refletem, mas também refratam mundo. Enfim, os signos não simplesmente descrevem um mundo constatado, eles implicam interpretações ou talvez melhor, usando a terminologia de Ricoueur acima mencionada, produzem uma descrição argumentativa do mundo. Ou seja, não apenas descobrem sentidos, mas constroem sentidos. Medvedev destaca que em uma mesma época ou em um mesmo grupo social não está presente apenas uma impressão sobre o mundo, mas várias que inclusive podem ser contraditórias. [57] Se essa era desde sempre uma afirmação verdadeira, mesmo em sociedades aparentemente homogêneas do passado, torna-se por demais atual e visível nas sociedades heterogêneas do presente.
De acordo com o pensamento do Círculo:
“não é possível significar sem refratar. Isso porque as significações não estão dadas no signo em si, nem estão garantidas por um sistema semântico abstrato, único e atemporal, nem pela referência a um mundo dado uniforme e transparentemente, mas são construídas na dinâmica da história e estão marcadas pela diversidade de experiências dos grupos humanos, com inúmeras contradições e confrontos de valorações e interesses sociais. Em outras palavras, a refração é o modo como se inscrevem nos signos a diversidade e as contradições das experiências históricas dos grupos humanos. Sendo essas experiências múltiplas e heterogêneas, os signos não podem ser unívocos (monossêmicos); só podem ser plurívocos (multissêmicos). A plurivocidade (o caráter multissêmico) é a condição de funcionamento dos signos nas sociedades humanas”. [58]
Com isso obviamente não se quer dizer que se pretenda promover um retorno a um estágio mágico das sociedades humanas, no seio do qual a palavra dita teria força de transformar a realidade posta. Aqui se está tratando especificamente do fenômeno da linguagem em si, de sua relação com as coisas e os acontecimentos, de sua capacidade de transmiti-los, narrá-los como são. Já foi visto que a linguagem tem limites para isso.
Trazendo para o mundo jurídico a questão dessa plurivocidade dos signos é visível que o jargão ou a linguagem técnica do Direito constitui uma espécie de barreira comunicativa entre os demais membros de uma dada sociedade e aqueles versados nas ciências jurídicas. É claro que esse fenômeno também ocorre com outras áreas que igualmente ou até mais densamente são dotadas de um vocabulário técnico hermético (v.g. biologia, medicina, informática etc.). A consciência da plurivocidade nos convoca a compreender que a comunicação somente se dará de forma aceitável e eficaz se formos capazes de ajustar nossa linguagem ao público interlocutor. Caso contrário, o que ocorrerá será uma conversa de surdos que não sabem sequer libras.
No mundo criminal e mesmo fora dele não é somente a questão da tecnicidade da linguagem que deve ser considerada, mas também a linguagem popular e as gírias. Um exemplo pitoresco da vivência prática me vem à mente:
Certa feita, na presença de uma estagiária, inquiria um detento em um Inquérito Policial sobre Tráfico de Drogas. Esse detento já estava preso por outros processos. Em meio à nossa conversa, indaguei-lhe sobre o destino de um outro procedimento em que fora preso em flagrante por mim há tempos. Sua resposta foi a seguinte: “Ah! Aquele lá eu já ganhei Doutor”! Ao que redargui, já ciente da terminologia dos detentos nesse campo: “Ganhou como”? E ele respondeu: “Fui condenado a 8 anos no fechado”. Após a dispensa do interrogado, a estagiária estava perplexa porque não compreendia a linguagem carcerária. Como ele teria “ganhado” o processo se foi condenado a 8 anos de reclusão em regime fechado? Tive de explicar que para o indivíduo preso, o fim de um processo, seja com condenação ou absolvição é considerado um “ganho”, uma definição de sua situação, pois é melhor saber que tem 8 anos a cumprir do que estar preso sem saber o tempo da eventual pena. Note que não era o preso que tinha dificuldades de comunicação, mas uma pessoa versada na área jurídica (uma estagiária, estudante de 5º. Ano de Direito).
Em meio a uma audiência, por exemplo, o Delegado de Polícia, o Magistrado, o Promotor e o Defensor devem ter ciência dessa plurivocidade ao comunicarem-se entre si e, especialmente, ao dirigirem-se ao público não especializado na linguagem jurídica (v.g. réus, vítimas, testemunhas).
Nesse mesmo diapasão pode-se aludir à questão da ignorância do Direito, tendo em consideração não somente a questão do linguajar técnico, das especificidades da linguagem jurídica herméticas ao leigo, mas, principalmente, dos mecanismos de divulgação e publicização (comunicação) utilizados para dar conhecimento público às leis. Nesse passo, a fim de dar concretude ao Direito posto, impedindo a alegação de desconhecimento como excludente da responsabilidade, se erigiu uma verdadeira ficção jurídica consistente na afirmação de que o desconhecimento da lei não exime a pessoa de sua responsabilização por suas condutas comissivas ou omissivas.
A percepção de que há uma plurivocidade inerente às sociedades humanas, seja terminologicamente, seja com relação aos significados cambiantes, seja, por fim, com referência aos meios de comunicação utilizados, temos a base para a ereção de uma crítica a essa ficção e para a indicação da necessidade de aprimoramento dos instrumentos comunicativos que possibilitam o conhecimento efetivo das leis pela população.
Tomo a liberdade de transcrever trecho da obra clássica de Joaquín Costa sobre o tema enfocado:
“Sabe-se que um dos mais fortes pilares das sociedades civilizadas vem sendo, faz mais de dois mil anos, uma presunção juris et de jure que constitui uma verdadeira chalaça e ao mesmo tempo a maior tirania que se tem exercido na história. Esse fundamento, esse cimento das sociedades humanas, encontra-se nesses dois conhecidos aforismos herdados dos antigos romanistas: 1º. A ninguém é concedido ignorar as leis (nemini licet ignorare jus); 2º. Por consequência, presume-se que todos as conhecem; de modo que, mesmo evidenciado alguém que as ignorava, ele sujeitar-se-á às normas como se as conhecesse (Nemo jus ignorare censetur; ignorantia legis neminem excusat). Esta presunção é mantida apesar de se saber que contraria a realidade das coisas; apesar de se saber que é uma ficção; apesar de se saber que se trata de uma falsidade; apesar de saber-se: Primeiro, que ninguém conhece todo o direito, mas apenas uma pequena parcela de homens sabe uma parte – que não é grande – das leis vigentes num dado momento; Segundo, que é impossível à maioria – e ainda essa mesma minoria - conhecer todas; e Terceiro, que a presunção conforme à verdade dos fatos, conforme, portanto, à razão, à justiça e à lógica, seguramente seria uma contraposição ao que se tem admitido, isto é, que ninguém conhece as leis. Há escritores que reconhecem o caráter falso e convencional daquela presunção, continuamente desmentida pela realidade; no entanto, alguns, como Ambrosoli ou o nosso Vicente y Caravantes, pensam que uma tal ficção é absolutamente necessária para a conservação da ordem social. De forma que nas nações modernas, a ordem social se não pode assentar sobre a verdade; necessita ela de uma abstração, necessita de um artifício gigante, monstruoso, condenando todos os homens a caminhar às cegas pelo mundo; condenando-os a presidir sua vida por critérios que lhes são, e fatalmente continuarão a ser, ignorados”. [59]
Fato é que a disputa das significações e dos discursos será componente inseparável sempre do “jogo dos poderes sociais” porque as forças sociais tenderão a monologizar e monopolizar o discurso, numa atuação “centrípeta”, ou seja, centralizadora e unificadora, impondo uma verdade e um significado únicos em detrimento das várias vozes sociais paralelas ou contraditórias. A tendência é que uma voz social procure se sobrepor às demais, encerrando o diálogo. [60]
O Direito certamente é um dos campos onde esse desejo de poder mais se destaca, já que é de sua natureza ser impositivo, sobrepondo-se aos demais discursos e centralizando a ordem social de acordo com seus ditames. É claro que quanto mais instrumentos democráticos de discussão existem à disposição da sociedade civil, mais se consegue abrandar essa tendência centralizadora do discurso jurídico. Entretanto, trata-se de missão efetivamente hercúlea. O Direito, porém, não é o único campo em que a centralização se destaca com grande eloqüência, esse problema é também muito visível em áreas como as orientações políticas, a ciência e a religião, dentre outras.
Não obstante, como demonstra Faraco, Bakhtin assim observa:
“Não há palavra que seja a primeira ou a última e não há limites para o contexto dialógico (ele se estira para um passado ilimitado e para um futuro ilimitado). Mesmo os sentidos passados, isto é, aqueles que nasceram no diálogo dos séculos passados, não podem nunca ser estabilizados (finalizados, encerrados de uma vez por todas) – eles sempre se modificarão (serão renovados) no desenrolar subsequente e futuro do diálogo. Em qualquer momento do desenvolvimento do diálogo, existem quantidades imensas, ilimitadas de sentidos contextuais esquecidos, mas em determinados momentos do desenrolar posterior do diálogo eles são relembrados e receberão vigor numa forma renovada (num contexto novo). Nada está morto de maneira absoluta: todo sentido terá seu festivo retorno. O problema da grande temporalidade”. [61]
Essa conformação ideal de diálogo apresentada por Bakhtin afasta efetivamente a oportunidade da centralização ou monologização. Em construção semelhante, Nagel aduz que:
“Na maioria dos casos, concluiremos então que razão e objetividade não se baseiam em consenso, mas, ao contrário, que o consenso, onde este é possível, brota da convergência entre diferentes indivíduos, todos raciocinando para chegar à verdade. Existe consenso quanto à inumerabilidade dos números reais porque a sua demonstração é conclusiva, e não vice versa”. [62]
Destaque-se que em consonância com o trecho de Nagel acima transcrito, o chamado “Círculo de Bakhtin” não identifica diálogo com consenso, embora seja comum o uso da primeira palavra como indicadora de busca de entendimento, paz, tolerância ou mesmo consenso. Para o Círculo o diálogo não aponta apenas para o acordo, a consonância, mas também para as “multissonâncias e dissonâncias”. Essa diversidade é muito mais relevante do que qualquer consenso e “dela pode resultar tanto a convergência, o acordo, a adesão, o mútuo complemento, a fusão, quanto a divergência, o desacordo, o embate, o questionamento, a recusa”. Longe de serem as relações dialógicas espaços de harmonização, constituem-se muito mais em “espaços de tensão entre enunciados”. Mesmo quando há concordância total com o dizer de outrem, isso ainda se opera num “ponto de tensão” diante de outras vozes sociais na medida em que a aceitação de um enunciado implica, explícita ou implicitamente, na recusa outros tantos enunciados ou vozes sociais que têm o potencial de oposição dialógica àquele enunciado acatado. [63]
Aquilo que no Círculo de Bakhtin é chamado de “simpósio universal” é apresentado “como um vasto espaço de luta entre as vozes sociais” num tipo de “guerra dos discursos”, marcada por “forças centrípetas” (que procuram centralizar e monologizar o discurso pela sobreposição ou domínio) e “forças centrífugas” (que atuam de modo a corroer as tendências de centralização e monologização). [64]
No microcosmo de um processo tanto a tendência à centralização ou monologização, como a impropriedade disso ficam bastante claras. Não é por outra razão que o sistema processual evoluiu do inquisitório para o acusatório, ou seja, da centralização de funções e voz em um só sujeito, para uma divisão equânime de tarefas e de vozes dissonantes. Mas, mesmo com a adoção do Sistema Acusatório, as vozes em debate no processo estarão sempre procurando se sobreporem umas às outras, produzirem uma força centrípeta que concentre a razão em suas argumentações e, ao final, lhe conceda a primazia. Acontece que, diversamente do Sistema Inquisitório, esse embate se dá numa arena apropriada para a natural dialética processual, já que se sabe que não é possível e nem desejável impedir ou estancar o conflito dos diversos discursos.
No pensamento bakhtiniano fala-se de uma “multidão de vozes sociais”, compreendidas estas como “complexos semiótico – axiológicos com os quais determinado grupo humano diz o mundo”. [65] Isso é chamado tecnicamente de “heteroglossia” ou “plurilinguismo”. Importa mais do que a existência dessa diversidade de vozes, a sua dimensão relacional na forma do diálogo, donde surge a terminologia da “heteroglossia dialogizada ou plurilinguismo dialogizado”.
Daí Bakhtin conclui pela dialogicidade de toda fala ou comunicação. E essa dialogicidade pode ser exposta em três dimensões: [66]
a)“todo dizer não pode deixar de se orientar para o ‘já dito’” – portanto, todo enunciado, prenhe de valores e posicionamentos do falante ou comunicante, é uma réplica, de modo que não surge “ex nihilo”, mas faz parte de uma chamada “memória discursiva” que empreende uma ligação entre o agora dito com o passado. Toda palavra, toda expressão, toda narrativa, já traz em si, já vem carregada de significados que apenas são renovados e adaptados pelo falante. Em outros termos, nã
b)
c)
“A orientação dialógica é, bem entendido, um fenômeno característico de todo discurso. É a intenção natural de todo discurso vivo. O discurso encontra o discurso de outrem em todos os caminhos que percorre rumo a seu objeto, e não pode deixar de entrar em interação viva e intensa com ele. Apenas o Adão mítico, ao abordar com o primeiro discurso um mundo virgem e ainda não dito, o solitário Adão, podia realmente evitar absolutamente essa reorientação mútua com relação ao discurso dos outros, que se produz a caminho do objeto”. [68]
Enfim, como esclarece Barros Filho, nosso pensamento se forma pela relação entre as pessoas, relações intersubjetivas materiais que nos moldam e transformam. [69]
Na medida em que nossos discursos são formados por conteúdos que adquirimos ao longo do tempo, frutos de vivências de alguma forma dialogadas, a concepção apresentada por Telles Júnior e derivada das teorizações de Joseph Maréchal e Aristóteles não se distancia muito. Senão vejamos:
“Conhecer é possuir em si, além de sua própria forma, a forma da coisa que o conhecedor conhece. Logo, se existe, no conhecedor, a forma de uma coisa, além de sua própria forma, conhecer, para o conhecedor, é, de certa maneira, tornar-se outro, sem que ele deixe de ser o ser que ele é.
Ora, toda transformação pode ser considerada como um nascimento numa nova forma de ser. Tais são os motivos pelos quais todo conhecimento é um conascimento. De fato, todo conhecimento é o renascimento do objeto conhecido no sujeito conhecedor e, concomitantemente, o renascimento do sujeito conhecedor numa nova forma de ser”. [70]
Neste ponto pode-se constatar o quão ilusório era o projeto da Escola da Exegese na época do Código Napoleônico em considerar o Juiz como uma mera “boca da lei” e impedir qualquer espécie de interpretação na aplicação dos textos legais que não fosse reduzida à busca pela “intenção do legislador”. [71] A lei escrita no papel não passa de uma sentença (no sentido gramatical do termo), somente a decisão judicial, enquanto exercício legítimo da jurisdição (“juris” – direito; “dictio” – dizer – dizer o Direito) constitui um enunciado complexo, repleto de valores, interpretações, argumentos, conhecimentos, avaliações etc. Nesse único e verdadeiro enunciado o julgador dialoga interna e externamente e apresenta na sua sentença (no sentido jurídico do termo) tudo aquilo que tem impregnado em seu “ser” ao longo de sua convivência como humano, passando pelas três fases da “heteroglossia dialogizada”.
Para Bakhtin não há vida propriamente humana sem diálogo:
“Viver significa tomar parte no diálogo: fazer perguntas, dar respostas, dar atenção, responder, estar de acordo e assim por diante. Desse diálogo, uma pessoa participa integralmente e no correr de toda a sua vida: com seus olhos, lábios, mãos, alma, espírito, com seu corpo todo e com todos os seus feitos. Ela investe seu eu interno no discurso e penetra no tecido dialógico da vida humana, o simpósio universal”. [72]
A não comunicação significa para Bakhtin a “morte absoluta” (“o não ser”) porque a pessoa então não é ouvida, lembrada ou reconhecida. Consequentemente “ser significa se comunicar”, na medida em que somos para os outros, sendo concomitantemente para nós mesmos. Alteridade, intersubjetividade e individualidade formam a quintessência do “simpósio universal”. Como diz Bakhtin, “eu não posso me arranjar sem um outro, eu não posso me tornar eu mesmo sem um outro; eu tenho de me encontrar num outro para encontrar um outro em mim”. O autor é frontalmente contrário à monologização do discurso ou da existência humana, negando a existência do outro dotado de direitos e responsabilidades iguais. Quando a monologização se opera o mundo se torna “autocentrado e insensível às respostas do outro”. Aquele que monopoliza e centraliza o discurso dá a “última palavra”, na verdade a única palavra. Dessa forma, para evitar esse monologismo totalitário a única via é a do “discurso sem fim” como “forma de preservar a liberdade do ser humano e de seu inacabamento”. Isso é o que impede a reificação do humano e mantém o diálogo que se processa entre eu e outro, entre eu e tu e não eu e algo.
Um tema que chama a atenção na seara jurídico – penal quando se fala em um “não – ser”, uma negação do ser para uma pessoa ou sua reificação por meio do alijamento do diálogo, é o problema da posição da vítima no Processo Penal. Como bem demonstra Oliveira, a vítima no Processo e no Direito Penal passa por fases históricas razoavelmente definidas: um primeiro momento conhecido como sua “Idade de Ouro”, marcado pela “vingança privada”, onde os interesses vitimais tinham prevalência total. Depois, com a apropriação pelo Estado do “Jus Puniendi”, a vítima cai em uma ladeira rumo ao “ostracismo” e se converte em mero meio de prova oral ou mesmo corpo de delito para o Processo Penal. Seus interesses são alijados desse espaço e remetidos ao Processo e ao Direito Civil. Finalmente há um fenômeno de “redescobrimento da vítima no Processo Penal”, onde seus interesses são objeto novamente de atenção e se faz uma reflexão crítica quanto ao seu tratamento emudecido, reificado. [73] Essa reflexão, embora não se tenha notícia de citações da linguística ou da filosofia bakhtianiana em seu bojo, certamente pode encontrar na noção de silenciamento como morte social um bom argumento para voltar a atenção e dar palavra à vítima no Processo Penal. Afinal, caso contrário, não haveria pena de morte para o infrator, mas haveria esta espécie de pena, ao menos simbólica ou semioticamente para a vítima. É que quando o Processo Penal enuncia o emudecimento da vítima em seu bojo, a converte em uma espécie de cadáver comunicativo, algo e não alguém que está ligado ao Processo. Portanto, no seio dessa fase de redescoberta, a palavra é dada à vítima, sua atuação é mais intensa no Processo Penal, são levados em consideração seus interesses, inclusive de reparação patrimonial, de modo que vão surgindo sistemas de “Justiça Consensual” com participação ativa do ofendido pelo delito e várias “iniciativas de proteção à vítima” tanto no Brasil como no estrangeiro [74] (Exemplos típicos são as Leis 9.099/95 e 11.340/06, dentre outros).
A insistência de Bakhtin no “discurso infinito” e na negativa de reificação do humano torna-se tanto mais atual quanto um funcionalismo alemão à moda de Günther Jakobs passa a apregoar em tom legitimador um discurso centrípeto e monologizador de “Direito Penal do Inimigo”, mediante o qual se pretende reificar pessoas, despersonalizando-as e permitindo seu afastamento do “simpósio universal” na qualidade de “não – pessoas”. O âmbito do discurso resta então centralizado na figura dos “cidadãos” que satisfazem razoavelmente expectativas normativas numa concepção luhmanniana. Essa negação de voz jamais seria acatada nas teorizações de Bakhtin e seu Círculo. [75]
Em verdade, muito ao contrário, Bakhtin defende como ideal algo mais do que uma simples “heteroglossia dialogizada”. Ele apresenta uma visão utópica de
“um mundo polifônico, no qual a multiplicidade de vozes plenivalentes e de consciências independentes e não fundíveis têm direito de cidadania – vozes e consciências que circulam e interagem num diálogo infinito”. [76]
A polifonia suplanta em muito as possibilidades de um universo de múltiplas vozes, ela pretende atingir o ideal de um universo no qual “todas as vozes são equipolentes”, um mundo “de vozes plenivalentes em relações dialógicas infindas”. [77]
É neste aspecto que a polifonia proposta por Bakhtin supera em muito o modelo real da “heteroglossia dialogizada”, isso porque nesta segunda há uma batalha, uma luta por sobreposição de discursos, um conflito de forças centrípetas e forças centrífugas. Na situação ideal da polifonia, as diferentes vozes sociais se intercomunicam aberta e livremente sem pretensões de sobreposição, monologização ou centralização. E o pensador produz essas ideias em meio a um contexto altamente centralizador e até totalitário (Rússia Revolucionária).
Como bem descreve Faraco:
“Vivendo num mundo pesadamente monológico, Bakhtin foi, portanto, muito além da filosofia das relações dialógicas criada por ele e por seu Círculo e se pôs a sonhar também com a possibilidade de um mundo polifônico, de um mundo radicalmente democrático, pluralista, de vozes equipolentes, em que, dizendo de modo simples, nenhum ser humano é reificado; nenhuma consciência é convertida em objeto de outra; nenhuma voz social se impõe como última e definitiva palavra. Um mundo em que qualquer gesto centrípeto será logo corroído pelas forças vivas do riso, da carnavalização, da polêmica, da paródia, da ironia”. [78]
A utopia bakhtiniana da polifonia pode encontrar nas condições ideais de discurso para a conformação do chamado “agir comunicativo” de Habermas uma aproximação. Para Habermas a validade de todo Direito e o próprio conceito de Justiça devem derivar de uma discussão plural, onde todas as ideias, ainda que antagônicas, possam ser livremente expostas dentro das regras de um jogo democrático. O autor se baseia na superação de uma chamada “razão prática” que, de certo modo, impõe regras pré – determinadas socialmente, para chegar a uma “razão comunicativa” por meio da qual se objetiva uma “força social integradora de processos de entendimento não violentos, racionalmente motivadores, capazes de salvaguardar distâncias e diferenças reconhecidas, na base da manutenção de uma comunhão de convicções”. [79] Na sua abordagem do problema linguístico, Habermas toma como pressuposto que as expressões e palavras usadas pelos participantes do debate tenham “significados idênticos” mesmo quando utilizadas por pessoas diferentes. Afirma que “na prática, os membros de uma determinada comunidade de linguagem têm que supor que falantes e ouvintes podem compreender uma expressão gramatical de modo idêntico”. [80] Nesse aspecto a polifonia bakhtiniana pode parecer distanciar-se, já que pressupõe, ao reverso, linguagens diferentes em um ambiente livre de imposições. Mas, a distância é apenas aparente, pois que essa polifonia ou mesmo a heteroglossia dizem respeito aos enunciados e não às palavras, expressões e sentenças. Neste aspecto também se parte obviamente de um acordo de sentidos formal que é pressuposto para o início de qualquer comunicação, de qualquer diálogo. O que variará será o enunciado, já que este sim virá carregado de intenções, entonações, valores etc. comumente divergentes. Portanto, a base gramatical e vocabular como pré – requisito para o diálogo é obviamente comum a Bakhtin e a Habermas, como não poderia deixar de ser, sob pena de impedir qualquer entendimento como na alegoria bíblica da Torre de Babel. Só assim pode, conforme afirma Habermas, passar a linguagem “a ser explorada como fonte primária da integração social”. [81]
Parece que outro traço de semelhança entre a polifonia Bakhtin e o agir comunicativo em uma condição ideal de discurso preconizado por Habermas é seu caráter utópico. Nem uma condição nem outra podem ser encontradas ao longo da história, de modo que a descrição da chamada heteroglossia dialogizada é muito mais próxima da realidade circundante do mundo da vida, mesmo assim quando se está diante de uma sociedade e de um Estado não totalitários ou mesmo ditatoriais, já que nesses casos as chamadas forças centrípetas praticamente anulam as forças centrífugas e a tendência é para a monologização e centralização do discurso que se torna único, não por um suposto consenso, mas pelo emprego da força e da intimidação, senão da eliminação ou neutralização de dissidências.
As sociedades reais não se parecem praticamente em nada com as idealizações polifônicas ou de um agir comunicativo marcado por uma razão comunicativa alicerçada numa “ética do discurso”. O mais próximo factivelmente dessas utopias é a situação de uma heteroglossia dialogizada, descrita como um “campo de batalha” entre as diversas vozes sociais que, por meio de movimentos centrípetos e centrífugos, mantém uma relação razoavelmente civilizada, mas sempre determinada por um desejo de poder, de imposição ou sobreposição de discursos.
Pierre Bourdieu com seu conceito de “campos sociais” traz alguma luz a essa dinâmica. Segundo o autor, os campos sociais seriam espaços de relações sociais relativamente autônomos ocupados por agentes que, dentro desses espaços, jogam uma espécie de jogo. Neste aspecto o campo é uma arena de agentes em conflito, mas há entre eles certa coincidência de convicções, pensamentos, regras, valores etc. Somente dessa forma o campo também se torna um espaço de concordância. Há regras para o jogo, para o conflito, o embate, mas isso não muda sua natureza conflituosa. [82]
Bourdieu de forma um pouco diversa ou por outras palavras, acaba fazendo também referência às forças centrípetas e centrífugas do vocabulário de Bakhtin. Em sua expressão:
“Sabe-se que em cada campo se encontrará uma luta, da qual se deve, cada vez, procurar as formas específicas, entre o novo que está entrando e que tenta forçar o direito de entrada e o dominante que tenta defender o monopólio e excluir a concorrência”. [83]
O que une as pessoas em cada campo de disputa social não é propriamente a nobreza dos interesses em torno da liberdade do outro ou da construção de uma comunicação ideal (Bakhtin/Habermas), mas um jogo de interesses comuns que os integra em sua diversidade:
“Outra propriedade, já menos visível, de um campo: todas as pessoas que estão engajadas num campo têm um certo número de interesses fundamentais em comum, a saber, tudo aquilo que está ligado à própria existência do campo: daí a cumplicidade objetiva subjacente a todos os antagonismos”. [84]
Note-se, portanto, que além de inexistirem as condições ideais da polifonia de Bakhtin e do agir comunicativo de Habermas, também não se há falar em um único campo, um único espaço ou arena de encontro das diversas e divergentes vozes sociais, mas sim de muitos e variados “campos sociais”, conforme bem descrito por Pierre Bourdieu. Resta claro que tais campos podem se influenciar mutuamente, já que sua independência é relativa. No entanto, isso não desmente o fato de que são campos diversos, com regras e interesses diferentes e até conflitantes.
Telles Júnior trata das interações humanas que para ele (com acerto) são o objeto por excelência do estudo e da atuação do Direito. Nesse passo apresenta também um conceito de campo, só que mais voltado para o indivíduo, no que tange ao poder de influência que as pessoas exercem umas sobre as outras em uma aproximação com o conceito físico. Para ele
“Uma pessoa em sociedade não é um simples ser, delimitado por seu corpo. É esse ser mais seu campo de influência. A pessoa e seu campo constituem uma só realidade, uma realidade incindível. Como se manifesta o campo de uma pessoa? Manifesta-se pela alteração que ela causa no comportamento de qualquer outra pessoa, que, dentro desse campo, se venha situar. Os campos, na vida social, são tão verdadeiros e universais quanto o corpo humano. Os espaços entre as pessoas não são espaços separando as pessoas, porque não são espaços vazios. Os vazios, na sociedade, não são vazios: são campos”. [85]
Na descrição da heteroglossia dialogizada Bakhtin admite que esses conflitos e relações não são apenas existentes no exterior, mas também estão presentes endogenamente em cada um de nós. Usa o autor uma figura em que afirma “que não tomamos nossas palavras do dicionário, mas dos lábios dos outros”. Assim:
“Como a realidade linguístico – social é heterogênea, nenhum sujeito absorve uma só voz social, mas sempre muitas vozes. Assim ele não é entendido como um ente verbalmente uno, mas como um agitado balaio de vozes sociais e seus inúmeros encontros e entrechoques. O mundo interior é, então, uma espécie de microcosmo heteroglóssico, constituído a partir da internalização dinâmica e ininterrupta da heteroglossia social. Em outros termos, o mundo interior é uma arena povoada de vozes sociais em suas múltiplas relações de consonâncias e dissonâncias; e em permanente movimento, já que a interação socioideológica é um contínuo devir”. [86]
É interessante notar que não se trata de uma confusão ou ignorância a provocar uma indeterminação da personalidade do sujeito. Ao contrário, quanto mais o indivíduo mantiver contatos sociais, procurar informações, apreender conhecimentos, ler, conversar, discutir, ouvir, falar, pensar, mais e mais absorverá em seu universo interno uma heteroglossia que estará em constante diálogo e quanto mais esse diálogo se estenda, mais o indivíduo buscará novas perspectivas, pontos de vista, vozes divergentes etc. Por isso o diálogo interno também, tal qual o externo, é infinito.
No seguimento outro tema que chama a atenção é a abordagem de Bakhtin quanto à autobiografia e a autocontemplação. O autor esclarece que a autobiografia não é e não pode ser um mero “discurso direto do escritor sobre si mesmo”, tomando este uma posição interna à própria vida. Numa autobiografia o escritor deve se manifestar valorativamente diante de sua própria história. E para que isso seja possível, mister se faz um distanciamento de si mesmo e dos fatos componentes de sua própria vida. Necessário olhar-se de fora, como um “outro em relação a si mesmo”. O escritor autobiográfico, segundo Bakhtin precisa fazer-se objeto de si mesmo, sujeito do discurso cujo objeto é ele mesmo. [87]
Ora, Bakhtin fala na literatura autobiográfica, mas seus apontamentos podem ser muito bem adequados na seara do Processo Penal aos depoimentos de testemunhas, declarações de vítimas e interrogatórios de indiciados ou réus. Também essas pessoas refazem um caminho histórico que foi por elas vivido pessoalmente, em situação similar à do autobiógrafo. As diferenças estão no fato de que no processo não se trata de produzir uma obra literária ou histórica no sentido científico do termo. Também não se trata de descrever toda uma trajetória de vida de um indivíduo com detalhes, mas apenas de um “flash”, um momento, um episódio isolado consistente no evento criminoso em que as pessoas estão envolvidas. Finalmente, considerando o império do “Princípio da Oralidade” no Processo Penal e no Processo em geral, as narrativas de testemunhas, vítimas, indiciados ou réus não se perfazem por escrito, mas oralmente. Também não são verbalizadas de forma totalmente espontânea, pode-se dizer que estão mais para o voluntário, [88] na medida em que respondem às indagações do Delegado de Polícia (na fase pré – processual) e das partes (Acusação e Defesa) e do Juiz (na fase processual).
Também esses atores processuais, em suas manifestações orais no Processo Penal, para que venham a expor os fatos com isenção e veracidade devem se distanciar de si mesmos e colocarem-se na condição de expectadores da própria vivência. E este é um dos motivos pelos quais os depoimentos e, principalmente as declarações de vítimas, são passíveis de descrédito. O envolvimento emocional, a vivência direta dos fatos, influi muitas vezes no conteúdo do depoimento ou da declaração. [89] Quando se chega então ao interrogatório do indiciado ou acusado, a situação toma proporções ainda maiores, eis que está em jogo o interesse na própria liberdade, o que efetivamente e em regra, impossibilita o acusado ou indicado de se distanciar e objetificar. Aliás, essa eventualidade é tão remota e inexigível que se erige no campo processual penal um direito ao silêncio e a não – autoincriminação. [90]
Mas, não é somente nos discursos de atores do drama processual que se podem encontrar pontos de contato entre a análise bakhtiniana da autobiografia e da autocontemplação e o mundo jurídico.
Atualmente uma das mais visitadas “Teorias da Justiça” é aquela formulada por John Rawls. O citado autor trabalha com a Justiça como equidade e apresenta como caminho para a formulação de normas equânimes exatamente um distanciamento de si mesmo e dos próprios interesses quando da formulação dessas normas por meio do que denomina de “posição original” qualificada pela presença de um “véu de ignorância”. Em seus termos:
“A ideia da posição original é estabelecer um processo equitativo, de modo que quaisquer princípios aceitos sejam justos. O objetivo é usar a noção de justiça procedimental pura como fundamento da teoria. De algum modo, devemos anular os efeitos das contingências específicas que colocam os homens em posições de disputa, tentando-os a explorar as circunstâncias naturais e sociais em seu próprio benefício. Com esse propósito, assumo que as partes se situam atrás de um véu de ignorância. Elas não sabem como as várias alternativas irão afetar o seu caso particular e são obrigadas a avaliar os princípios unicamente com base nas considerações gerais.
Supõe-se, então, que as partes não conhecem certos tipos de fatos particulares. Em primeiro lugar, ninguém sabe qual é o seu lugar na sociedade, a sua posição de classe ou seu status social; além disso, ninguém conhece a sua sorte na distribuição dos dotes naturais e habilidades, sua inteligência e força e assim por diante”. [91]
A diferença aqui é que o distanciamento proposto por Rawls não se destina à formulação de uma narrativa sobre uma vivência antecedente, mas tem em vista a elaboração de princípios de justiça para reger a sociedade. O ponto de contato está em que tanto o autobiógrafo somente pode valorar sua vida de forma adequada ao afastar-se de si, quanto o homem em geral somente pode trabalhar com princípios de justiça de forma isenta e imparcial mediante esse afastamento. Em suma, nas duas construções teóricas o afastamento de si é que pode produzir uma manifestação razoavelmente sincera e imparcial.
Novamente Bakhtin converge com um pensamento utópico. Tanto o autobiógrafo e a pessoa que se autocontempla não consegue, por mais que tente com a maior boa vontade do mundo, se distanciar de si e se avaliar imparcialmente, como também a posição original e o véu de ignorância de Rawls são hipóteses meramente teóricas jamais encontráveis na vida real e sequer passíveis de serem aplicadas mediante um esforço mental e psíquico por quem quer que seja. Ainda assim pode-se dizer que pensadores que miram a utopia vão sempre defender suas idealizações com base no fato de que “a maneira como as coisas são não determina a maneira como elas deveriam ser”. [92]
Em outro ponto do pensamento bakhtiniano é possível uma interface com o mundo jurídico. Isso ocorre quando, com acerto, o autor estabelece uma ligação orgânica entre a linguagem utilizada pela pessoa e a atividade por ela desenvolvida. Para ele, cada atividade humana está relacionada com uma espécie de utilização da linguagem, a qual provém de pessoas pertencentes a uma ou outra seara. O estudo do “dizer”, do “falar”, do “escrever” necessariamente deve conectar-se com a área da atividade humana afeta ao indivíduo ou grupo, uma vez que as vozes não reverberam no vazio, mas são sempre contextualizadas e, neste contexto, a atividade exercida pelos indivíduos é deveras importante. Como bem explica Faraco
“Nossos enunciados (orais ou escritos) têm, ao contrário, conteúdo temático, organização composicional e estilo próprios correlacionados às condições específicas e às finalidades de cada esfera de atividade”. [93]
Dessa forma há um vínculo inquebrantável e recíproco entre as atividades humanas e o respectivo discurso em que as pessoas estão implicadas. Ou seja, é impossível estudar a fundo uma atividade humana qualquer, sem perquirir sobre seus discursos, bem como é inviável perquirir sobre os respectivos discursos de um grupo sem fazer a correlação destes com a atividade em questão. Novamente chamando à baila as esclarecedoras lições de Faraco:
“Fica, assim, claro que, para Bakhtin, gêneros do discurso e atividades são mutuamente constitutivos. Em outras palavras, o pressuposto básico da elaboração de Bakhtin é que o agir humano não se dá independentemente da interação; nem o dizer fora do agir. Numa síntese, podemos afirmar que, nesta teoria, estipula-se que falamos por meio de gêneros no interior de determinada esfera da atividade humana. Falar não é, portanto, apenas atualizar um código gramatical num vazio, mas moldar o nosso dizer às formas de um gênero no interior de uma atividade”. [94]
A verdade é que a atividade humana exercida por uma pessoa não somente é capaz de moldar seu discurso, assim como seu discurso molda sua atividade, mas tem também essa atividade e esse estilo de discurso o condão de conformar traços da personalidade a tal ponto que o indivíduo, quando separado de sua condição advinda de tal atividade, pode cair num vazio existencial. Exemplo magistral disso na literatura pode ser encontrado no conto “O Espelho”, de Machado de Assis. Em dado momento do texto o personagem central afirma que o homem tem “duas almas”, uma “interior” e outra “exterior”, essa “alma exterior” pode ser ligada, como no conto e no caso específico do personagem, exatamente à atividade ou posição social ocupada. Ele acabara de galgar um cargo público e isso se tornou sua “alma exterior”, passou a ser parte constitutiva de si, não meramente contingente, ou seja, ele era ele mesmo e também era “ele – funcionário”. Ficando certo tempo sozinho, isolado num sítio, essa “alma exterior” foi-se desfazendo e com ela o próprio equilíbrio psíquico do personagem que, como ele mesmo diz, “perde metade da existência”. [95]
De outra banda é preciso anotar que embora a atividade humana molde o discurso e vice – versa isso não significa que devido a uma pessoa ser afeta a determinada profissão ou grupo, se torne refém de um gênero único de expressão discursiva. Ninguém é o mesmo 24 horas nem se relaciona com um mesmo público e num mesmo ambiente. Obviamente, como destaca o próprio Bakhtin em outros trechos e também os grandes teóricos contemporâneos da retórica, todo discurso deve adequar-se ao seu contexto, seu público, seu ambiente sob pena de sequer ser compreendido. Neste diapasão se manifestam Perelman e Olbrechts – Tyteca, dando ênfase à necessária conexão entre o orador e seu auditório. [96]
Dessa maneira, por exemplo, o namorado economista não vai fazer o pedido de casamento, expondo uma planilha de custos e benefícios, sob pena de total fracasso. Também o marido jurista não vai convidar sua esposa para terem relações sexuais, dizendo em linguagem jurídica: “Querida, vamos manter um intercurso sexual, mediante conjunção carnal e demais atos libidinosos de forma a satisfazer nossa concupiscência”? “Aliás, ressalto que isso implicaria, desde logo, no cumprimento estrito dos deveres conjugais recíprocos entre os cônjuges de acordo com a ordem civil”. Poderia faltar compreensão e, se não faltasse, faltaria certamente qualquer motivação para o referido ato. Na realidade, ao invés das relações sexuais, o caminho seria mesmo jurídico: Divórcio.
Nada disso entra em contradição com a afirmação de Bakhtin quanto à conformação discursiva das atividades humanas. Trata-se tão somente de bom senso e inclusive de coerência com as concepções bakhtinianas de pluralidade discursiva, seja intersubjetiva, seja subjetiva. Não falamos a sós, não falamos uma só voz, nem também pensamos por meio de um único modelo, estamos sempre emprenhados de diversas vozes sociais que nos conformam e, consequentemente, nossos discursos nas variadas situações.
Segundo Faraco, “Bakhtin conceitua gêneros do discurso como os tipos relativamente estáveis de enunciados que se elaboram no interior de cada esfera da atividade humana”. Esses tipos são “relativamente estáveis” porque marcados por uma “historicidade”, bem como por certa indeterminação entre seus caracteres e limites. Conforme o autor em destaque:
“Dar relevo à historicidade significa chamar a atenção para o fato de os tipos não serem definidos de uma vez para sempre. Eles não são apenas agregados de propriedades sincrônicas fixas, mas comportam contínuas transformações, são maleáveis e plásticos, precisamente porque as atividades humanas são dinâmicas, e estão em contínua mutação.
Nesse sentido, as formas relativamente estáveis do dizer no interior de uma atividade qualquer têm de ser abertas à contínua remodelagem; têm de ser capazes de responder ao novo e à mudança. O repertório de gêneros de cada esfera da atividade humana vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa”. [97]
Bakhtin não olvida que há gêneros muito formalistas, modelares, tais como cumprimentos na vida em sociedade, redação de documentos oficiais (ex. um memorando administrativo, um ofício etc.), determinações militares. Mas mesmo estes permanecem sempre abertos às mudanças, tendo em vista sua historicidade. [98]
Seguindo a proposta deste trabalho, que consiste em aproximar a visão bakhtiniana do discurso do mundo jurídico, pode-se apresentar alguns exemplos:
Um primeiro e importantíssimo aspecto a ser lembrado é que no mundo jurídico as características do discurso tendem a serem ainda mais intensamente determinadas do que em outras áreas. Também, devido à natural característica formal e tradicionalista do Direito a consolidação dessas modalidades de discurso tendem a fixar-se com maior resistência a mudanças. Na área jurídica inclusive o processo de formulação desse discurso nem sempre ou muito excepcionalmente se dá de maneira natural. Geralmente é imposta por normas. Um exemplo claro é a existência no Brasil de uma lei que regula a redação das próprias leis. Essa é a Lei Complementar n. 95/98. Essa característica autopoiética (autopoiesis, do grego auto "próprio", poiesis "criação") do Direito e das leis consolida ainda mais que em outros campos a idiossincrasia discursiva destacada por Bakhtin.
Mas, nessa questão as exemplificações do mundo jurídico são muito abundantes:
Embora seja bem assentado, tanto no Brasil como no restante do mundo, que o Processo não pode se apegar demasiadamente às formas em detrimento de seus objetivos finais, naquilo que se tem denominado de fase de evolução “instrumentalista” do Processo, [99] ainda há uma série de fórmulas fixas e, obviamente, não se pode escapar de uma terminologia específica. Não obstante, essa “instrumentalidade” que acaba gerando o chamado “Princípio da Instrumentalidade das Formas” a orientar o Processo moderno, é claramente uma manifestação daquela abertura à plasticidade do discurso preconizada por Bakhtin e adaptada ao mundo jurídico. Conforme explica Bedaque:
“O tratamento dos institutos fundamentais de nossa ciência deve perder a conotação excessivamente processualista. A abordagem precisa levar em consideração critérios de racionalidade material, não apenas formal”. [100]
Por outro lado subsistem as formalidades como, por exemplo, no procedimento do Júri a exortação feita ao corpo de jurados com palavras praticamente ritualizadas de acordo como o artigo 472, CPP:
“Art. 472. Formado o Conselho de Sentença, o presidente, levantando-se, e, com ele, todos os presentes, fará aos jurados a seguinte exortação:
Em nome da lei, concito-vos a examinar esta causa com imparcialidade e a proferir a vossa decisão de acordo com a vossa consciência e os ditames da justiça.
Os jurados, nominalmente chamados pelo presidente, responderão:
Assim o prometo”.
Perceba-se a fórmula cristalizada do discurso nesse aspecto pontual do mundo jurídico, mas que é apenas um dos muitos exemplos de uma linguagem específica dessa atividade humana. Linguagem essa que, de acordo pleno com a orientação bakhtiniana abrangente, não se reduz às palavras rituais, mas também se exterioriza em expressões corporais, como o ato de o Presidente, Jurados e todos os presentes proferirem a exortação e o juramento em pé. Tudo é carregado de um simbolismo e valor nos moldes preconizados por Bakhtin e de acordo com uma especificidade do mundo jurídico.
Nesse aspecto abrangente do conceito de discurso já se tem apontado que a própria posição topográfica dos atores processuais é carregada de uma mensagem semiótica. A posição central do Juiz em sua imparcialidade com as partes em lados opostos e, especialmente no Processo Penal, o réu numa situação muitas vezes depreciativa. Em outras ocasiões, o posicionamento do representante do Ministério Público ao lado do Juiz, enquanto a defesa fica num plano topográfico abaixo e distanciado em certas salas de audiência, dão o tom de uma mensagem que gera violação à isonomia processual.
Outra mensagem simbólica do mundo jurídico – penal são as algemas. Como destaca Carnelutti:
“As algemas, também as algemas são um símbolo do direito; quiçá, a pensar-se, o mais autêntico de seus símbolos, ainda mais expressivo que a balança e a espada. É necessário que o direito ate as mãos. E justamente as algemas servem para descobrir o valor do homem, que é, segundo um grande filósofo italiano, a razão e a função do direito”. [101]
E este símbolo (as algemas) é também objeto de normatização seja por dispositivo do Código de Processo Penal, onde se excepciona seu uso (artigo 474, § 3º., CPP), seja pela Súmula Vinculante n. 11 do STF que dipõe:
“Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.
Certamente a área processual é uma das mais ricas no mundo jurídico para a exemplificação de características específicas do discurso no Direito. Uma Petição Inicial não pode ser elaborada a esmo, tem seus requisitos e até mesmo uma espécie de “modelo” com pouca variância, sustentado pela reiteração da forma e pela praxe forense. Mas, o mais importante é o primeiro aspecto sobredito, qual seja, os requisitos legais estabelecidos, cuja falta pode interromper a comunicação, mediante a sua rejeição. Veja-se o disposto nos artigos 282 a 284, CPC. O mesmo se diga das iniciais acusatórias no Processo Penal (Denúncia ou Queixa – Crime) – artigo 41, CPP, assim como da sentença judicial nos âmbitos penal e civil – artigos 318, I a VI, CPP e 458, I a III, CPC.
Na comunicação escrita e verbal no âmbito do Processo há inclusive formas adequadas para o tratamento pronominal (Vossa Excelência, Vossa Senhoria, Meritíssimo etc.). E novamente Bakhtin tem razão ao asseverar que há certa maleabilidade nessa linguagem em sua historicidade. Um exemplo típico, vinculado à questão pronominal de tratamento pode ser encontrado em nossa legislação processual penal na Lei de Investigação Criminal conduzida pelo Delegado de Polícia (Lei 12.830/13) que, em seu artigo 3º., determina que se adote o mesmo tratamento protocolar que recebem os magistrados e membros do Ministério Público para os Delegados de Polícia. Ora, isso deixa claro que um tratamento pronominal que ao longo de muitos anos era de “Vossa Senhoria” passa a ser de “Vossa Excelência”. Essa a conclusão do “I Seminário Integrado da Polícia Judiciária da União e do Estado de São Paulo: Repercussões da Lei 12.830/13 na Investigação Criminal”, de acordo com a sua Súmula n. 12 de seguinte teor:
“O correto pronome de tratamento exigível nas comunicações oficiais endereçadas ao Delegado de Polícia deverá ser o de ‘Vossa Excelência’”.
E novamente é preciso estar atento para o fato de que a especificidade da linguagem não significa nem unicidade, nem rigidez ou imutabilidade, conforme preconiza Bakhtin. O exemplo do tratamento pronominal dado aos Delegados de Polícia por força da Lei 12.830/13 é perfeito, especialmente quando se abordam as insurreições desastradas à normativa em questão. Chegaram alguns a alegar que seria rematado absurdo ter de se dirigir a um Delegado de Polícia em todo e qualquer ambiente com o tratamento pronominal de “Vossa Excelência” (o que, diga-se de passagem, se correspondesse à verdade, seja para Delegados, para Juízes, Promotores, Prefeitos, Vereadores, Deputados, Senadores etc. seria mesmo ridículo). Ora, isso ou revela cinismo ou então uma ignorância profunda e aterradora quanto à linguística. Quem levanta uma objeção dessa espécie está fora de sintonia com o mundo da vida e certamente nem sabe da existência dos estudos linguísticos. Bakhtin lhe parecerá um nome de antibiótico e outros lingüistas talvez jogadores de futebol! Nada é mais óbvio, aliás, como bem demonstra a Súmula 12 acima transcrita, do que o fato de que o pronome de tratamento formal somente tem âmbito de abrangência nas “comunicações oficiais”. Fora disso, estar-se-á em outro contexto, o que leva a uma necessária revisão e alteração do gênero discursivo a fim de evitar o absurdo, o ridículo e até mesmo, em certos casos, a incompreensão da mensagem transmitida.
A linguagem técnico – jurídica que conforma um gênero específico de discurso dessa atividade humana, comporta alterações ao longo do tempo (historicidade). Outro exemplo destacável diz respeito à antiga referência genérica que se fazia a “menores”, transformada em um gênero do qual emergem duas espécies (crianças – de zero a 12 anos incompletos; e adolescentes – de 12 anos completos a 18 anos incompletos), de acordo com o disposto atualmente no artigo 2º., da Lei 8.069/90 (ECA). Doravante para o falante ou aquele que escreve uma peça jurídica ou um texto técnico – jurídico a expressão “menor” deverá ser devidamente qualificada, sob pena de tornar-se indeterminada, o que antes não ocorria.
Por fim é também interessante verificar que a linguagem de certas atividades humanas, inclusa a jurídica, muitas vezes não apresenta uma fronteira tão nítida com outras linguagens, sejam elas oriundas do senso comum ou de outras áreas da atuação científica ou técnica humana. É comum que a legislação, por exemplo, se utilize de vocabulário com significação socialmente estabelecida para designar alguma conduta ou determinação. Assim também, é corrente o emprego de termos técnicos e/ou científicos de outras áreas para a redação de legislações. Normalmente essas situações ensejam o surgimento dos denominados “elementos normativos do tipo” na específica seara do Direito Penal.
“Elementos normativos são aqueles que só podem ser representados e pensados sob a lógica pressuposição de uma norma ou de um valor, sejam especificamente jurídicos ou simplesmente culturais, legais ou supralegais, determinados ou a determinar; elementos que assim não são sensorialmente perceptíveis, mas só podem ser espiritualmente compreensíveis ou avaliáveis” (grifo do autor). [102]
Exemplo de elemento normativo que se utilizava de um conceito social do senso comum era a expressão “mulher honesta” presente nos antigos “crimes contra os costumes”, hoje convertidos em “crimes contra a dignidade sexual”. O que era então uma “mulher honesta”? Os juristas, em seu discurso próprio se contorciam para definir o termo de acordo com o transbordo da linguagem jurídico – legal para o senso comum social. Esse termo (“mulher honesta”) foi em boa hora extirpado do vocabulário jurídico – penal pátrio, mais uma vez dando mostras de que a linguagem jurídica, como em outras áreas, se apresenta maleável à historicidade, ao contexto e às exigências deste. A própria alteração da nomenclatura de “crimes contra os costumes” para “crimes contra a dignidade sexual” é exemplar de uma guinada axiológica do discurso. Mudar a nomenclatura desses crimes não é meramente um ato de formalidade, mas um enunciado com forte carga valorativa, que demonstra uma evolução social quanto à compreensão do bem jurídico tutelado (liberdade e dignidade sexual das pessoas como parcela da dignidade humana geral e não mera defesa dos “costumes” sociais tradicionais).
A questão já foi explorada nestes termos em trabalho especializado:
“Em data de 07 de agosto de 2009 veio a lume a Lei 12.015/09, promovendo ampla reforma no Código Penal no que tange ao tema dos crimes sexuais. As alterações já se iniciam na denominação do próprio título que trata do tema, outrora designado como ‘Dos crimes contra os costumes’ e agora denominado ‘Dos crimes contra a dignidade sexual’.
Essa modificação inicial não é meramente terminológica, mas reflete uma mudança paradigmática social e política no trato das condutas criminosas que atentam contra a livre determinação sexual das pessoas. Doravante o objeto de tutela não são normas morais e costumes socialmente constituídos, senão a liberdade de determinação sexual do homem e da mulher, sua dignidade humana naquilo que se refere à conduta sexual. Com a alteração da nomenclatura cessa uma indevida referência machista e patriarcal que impregnava a legislação na temática dos crimes sexuais. Trata-se de uma evolução no trato da matéria, tal qual já ocorreu em legislações estrangeiras, conforme destaca Roxin com relação ao Código Penal Alemão que também alterou o capítulo correspondente denominado ‘Delitos e contravenções contra a moralidade’ para ‘Fatos puníveis contra a autodeterminação sexual’”. [103]
Frise-se que não é somente a existência de uma linguagem típica da atividade jurídica que se demonstra aqui, nem mesmo apenas sua maleabilidade histórico – social, mas também outra assertiva bakhtiniana anteriormente abordada neste texto, qual seja, a de que todo enunciado é carregado e marcado por valores, por uma tomada de posição frente a algo ou alguém.
Os elementos normativos dos tipos penais são uma fonte praticamente inesgotável de indeterminação de fronteiras ou mesmo de interdisciplinaridade ou transdisciplinaridade entre o jurídico e outras áreas da atividade e do conhecimento humanos. Não somente isso, também, dentro do próprio campo jurídico, podem ser encontrados exemplos de pontos de contato de linguagens específicas ou especializadas de uma área do saber jurídico com outra desse mesmo saber. Isso porque não há, na seara jurídica, somente uma linguagem, mas várias, cada qual com suas nuances, suas terminologias, seus procedimentos de fala, escrita e atuação. Uma audiência cível é bem diversa de uma criminal, seja em seu linguajar, seja com respeito às atitudes dos atores. E o mesmo ocorre se é feita uma comparação com área trabalhista, castrense ou administrativa e assim por diante. Há uma variedade e riqueza de discursos e formas de manifestação que inclusive muitas vezes tornam um profissional incapaz de atuar adequadamente em uma área na qual não é especializado. Mais que isso, dentro e um mesmo ramo pode haver diferenças enormes em termos de comunicação, de postura, de linguagem em um sentido amplo. Certamente um bom exemplo são os procedimentos comuns (ordinário e sumário), o procedimento sumaríssimo da Lei 9099/95 e o procedimento do Tribunal do Júri. Os comportamentos das partes, do Juiz e até mesmo do réu e da vítima são muito diversos. No Júri há uma teatralização muito maior; nos procedimentos ordinário e sumário, uma formalidade mais intensa e, finalmente, nos Juizados Especiais Criminais, uma informalidade e uma abordagem consensual que não está presente em nenhum dos outros dois antecedentes, embora todos tratem da matéria criminal.
Retomando os exemplos dos “elementos normativos do tipo” e da indeterminação das fronteiras entre as diversas linguagens pode-se acenar com os conceitos de “grupo de extermínio” e “milícia privada”, hoje previstos em crime específico no artigo 288 – A, CP e como causas de aumento de pena no homicídio e na lesão corporal (respectivamente artigos 121, § 6º. e 129, § 7º., CP). Esses grupamentos criminosos não são definidos na lei e dependem de um cruzamento entre a linguagem jurídica e o conhecimento do senso comum para a devida interpretação e aplicação da norma. [104] Seria por demais exaustivo esmiuçar as diversas tipificações penais administrativizadas onde o jurista, estudioso ou operador do Direito têm de se valer de conceitos administrativos ou técnicos de áreas científicas diversas para poder expressar-se e compreender os enunciados legais. Apenas em rol exemplificativo podem ser citados vários crimes ambientais (Lei 9.605/98), crimes do estatuto do desarmamento (Lei 10.826/03), crimes contra a ordem tributária e as relações de consumo (Lei 8.137/90), Lei de Drogas (Lei 12.343/06), entre outros. No bojo do próprio Código Penal essa promiscuidade entre o discurso jurídico e aquele atinente a outras áreas ou mesmo a outros ramos do Direito é visível em vários casos: conceito de “estado puerperal” no crime de Infanticídio (artigo 123, CP); conceito de abortamento nos crimes de Aborto (artigos 124 a 126, CP); conceitos de condômino, coerdeiro e sócio no crime de Furto de Coisa Comum (artigo 156, CP); conceito de “coisa móvel” nos crimes de Furto e Roubo (artigos 155 e 157, CP); conceitos de cônjuge na constância da sociedade conjugal, ascendente e descendente nas imunidades dos crimes patrimoniais (artigo 181, CP); conceito de “Direito Autoral” no crime de Violação de Direito Autoral (artigo 184, CP); conceito de impedimento para o casamento no artigo 236, CP, dentre muitos outros casos.
Um caso marcante e importante sob o ponto de vista histórico é o da escravidão. Na linguagem jurídica a escravidão se converteu de uma posição inicial que a apresentava como um instituto para algo que atualmente não tem existência concreta e sequer pode ser aventado hipoteticamente no mundo jurídico. Tanto isso é fato que o crime de “Redução à Condição Análoga à de Escravo”, previsto no artigo 149, CP não tem o “nomen juris” de “Crime de Escravidão”. Por quê? Porque a escravidão é algo juridicamente inexistente na atualidade, embora já tenha sido um dia um instituto jurídico. Uma pessoa simplesmente não pode, na linguagem jurídica contemporânea, ser reduzida à condição de escravo, no máximo pode ser reduzida a uma condição análoga à de escravo. Isso novamente vem confirmar a tese de Bakhtin de que os enunciados são sempre designativos de um valor, de uma tomada de posição frente a algo ou alguém. Neste caso, trata-se do absoluto repúdio à escravidão no mundo contemporâneo, que se traduz semioticamente na abolição da instituição da escravidão, sua expulsão do vocabulário jurídico e a nova expressão de “Redução à condição análoga à de escravo”, que traz consigo a mensagem axiológica de apreciação intensamente negativa da escravidão.
Tratando ainda dos gêneros de discurso, Bakhtin propõe uma grande classificação entre “primários e secundários”. Os primários constituem as manifestações comunicativas do dia a dia, orais, escritas, gestuais etc. São mais espontâneos e estão ligados às conversas familiares, entre amigos e conhecidos nas mais diversas atividades comuns da vida cotidiana. Os secundários dizem respeito a atividades culturais mais sofisticadas, normalmente transmitidas por via escrita, mas também oral ou por outros meios comunicativos (artes plásticas, performances etc.). Os gêneros secundários estão ligados diretamente às atividades “científicas, artísticas, políticas, filosóficas, jurídicas, religiosas, de educação formal e assim por diante”. Não obstante, como já visto e revisto, Bakhtin não empreende uma separação hermética entre esses gêneros. Muito ao contrário, indica sua integração e interação na conduta dialógica. Além disso, é possível, segundo Bakhtin, que haja uma espécie de movimento de ida e volta de um gênero secundário para um primário e vice – versa, como quando um professor na atividade acadêmica conta uma piada ligada ao tema desenvolvido para descontrair o público e em seguida retoma o discurso formal. [105]
Mais uma vez a dinâmica do Processo no mundo jurídico é exemplar. Numa audiência essa saída do gênero secundário para o primário e vice – versa é constante. Isso porque estão num mesmo ambiente e em relação dialógica atores diversos, alguns que dominam e utilizam todo um arcabouço técnico – jurídico em sua linguagem, gestual e atitudes; outros que não são afetos a essa linguagem e formalidades. O Juiz se comunica com a testemunha leiga, com o réu, com a vítima, assim como o defensor, o querelante ou o Promotor. Uns perguntam outros respondem, uns falam outros ouvem, uns falam e suas falas são reduzidas a termo num vocabulário muitas vezes diverso daquele em que se expressaram, mas que no mais das vezes traduz suas manifestações numa forma mais adequada à atividade jurídica. Ou seja, uma audiência num processo de qualquer espécie é uma dinâmica constante de vai e vem entre gêneros de discursos primários e secundários.
Também na esfera do ensino jurídico essa movimentação do primário para o secundário e vice – versa é comum e necessária, especialmente quando se trata com alunos iniciantes. O aprendiz tem uma bagagem de conhecimentos, símbolos, modos de expressão e compreensão e sua entrada no mundo jurídico, sua adaptação à linguagem específica dessa atividade humana com suas terminologias e regras especiais, só pode ocorrer de forma paulatina. Assim sendo, o bom professor de Direito deve saber transitar entre o discurso primário e o secundário, conduzindo o aluno a penetrar aos poucos no segundo, inclusive por meio de linguagem metafórica e analógica. Esse quadro pode se alterar numa conferência apresentada somente para indivíduos já iniciados e inclusive com aprofundamento intelectual na área. Mesmo assim, nada impedirá que, em meio ao discurso secundário, o locutor faça uso de fontes de discurso primário, especialmente a fim de amenizar a aridez de um tema intrincado, por exemplo. A verdade é que o isolamento dos gêneros discursivos os torna pouco atrativos e cansativos, quando não, em certas circunstâncias, impeditivos de uma comunicação adequada. Já sua interação equilibrada pode resultar numa otimização dessa mesma comunicação, tornando-a mais palatável e agradável.
Caminhando para outra temática, já foi visto neste trabalho que Bakhtin concebe o indivíduo como produto de um conjunto de “vozes sociais” que conformam seu dizer, suas expressões, sua escrita, ou seja, nossas manifestações não derivam unicamente de um “eu” insular, mas de toda uma convivência social em que conversas, aulas, leituras, assistências, experiências etc., são absorvidas e acabam compondo o sujeito. O autor chega a dizer que muitas vezes nosso discurso deveria ser, mas não é, “aspeado”, ou seja, feito na forma de uma citação ao dizer de outrem. Entende-se que isso não assume grande relevância e também não significa que todos nós sejamos plagiadores natos porque se eu sou formado de um conjunto de “vozes sociais” que me compõem e muito ou tudo do que digo é resultado desse conjunto, também cada uma dessas vozes que em mim estão não são independentes, mas também produto de outro conjunto de “vozes sociais”. Nesse processo, bem compreendido, não há plagiadores e plagiados, mas uma integração natural das “vozes sociais” no chamado “diálogo infinito”.
Importa neste ponto chamar a atenção para um aspecto estudado mais de perto tanto por Bakhtin como por seu companheiro de Círculo, Voloshinov. Esse aspecto é o do chamado “discurso reportado”, ou seja, “a presença explícita da palavra de outrem nos enunciados”. [106] Se muitas vezes nosso discurso embora não “aspeado” é produto de outras “vozes sociais” que nos habitam, há casos em que sabemos e indicamos diretamente a fonte de nossas manifestações. No trabalho científico, como se pode ver neste próprio texto, é comum a indicação das citações de acordo com a metodologia científica. Mas, não é somente nessa situação que surge o “discurso reportado”.
No campo jurídico o “discurso reportado” é por demais comum, mediante citações de legislação, doutrina, de decisões jurisprudenciais precedentes, de Súmulas e agora até mesmo de Súmulas Vinculantes. O locutor (por escrito ou oralmente) vai às chamadas fontes materiais ou formais do Direito [107] e as “reporta” em seu discurso como elemento argumentativo para provar sua tese.
Releva destacar que nem sempre essa composição pessoal por “vozes sociais” tomadas de emprestado retrata a íntima e sincera convicção do agente do diálogo. Os Sofistas já sabiam muito bem disso quando indicavam como objetivo da existência humana a felicidade, a qual poderia ser obtida mediante o exercício de um poder ilimitado sobre os outros, poder este obtido mediante a “arte do convencimento” que poderia ser obtido por todo meio disponível sem entraves morais. A única moralidade estaria na busca da felicidade, tendo como meio a conquista do poder pelo convencimento. [108] É claro que nesse quadro não se pode esperar que o uso dos recursos dados por “vozes sociais” distintas seja sempre sincero e honesto. Mais adiante o precursor do pensamento moderno, Maquiavel, também intuiu essa insinceridade que pode habitar o homem em busca de convencimento e que, para ele, deve ser sempre que necessário, utilizada. [109] Ele mesmo, segundo narra Strauss, teria confessado a Francesco Vettori o seguinte:
“Não creio em nada do que digo e não digo nada que creio – e, quando descubro algum miúdo fragmento de verdade, trato de escondê-lo sob tamanha montanha de mentiras que se torna impossível encontrá-lo”. [110]
Sem pretender ser exauriente, também é possível citar mais proximamente o pensamento exposto por Schopenhauer em “A arte de ter razão”, onde conclui que no debate geralmente não há preocupação com a busca da verdade, mas sim com a argumentação por meio da qual se possa chegar à vitória. O autor descreve nesse contexto a chamada “dialética erística”, consistente na “arte de disputar, mais precisamente a arte de disputar de maneira tal que se fique com a razão, portanto, per faz e nefas (com meios lícitos e ilícitos)”. [111] Ademais, toda a tradição do Pragmatismo mais moderno com sua filosofia “egoica” e consequencialista vem em confirmação a essa orientação. [112]
Na literatura tudo isso é magnificamente traduzido por Dostoiévski que se remete ao mundo jurídico, mais especificamente à atividade humana do advogado constituído para afirmar que:
“Sabe-se o que é um advogado: um advogado é uma consciência de aluguel”. [113]
Essa visão proporcionável pela transdisciplinaridade com as teorias de Bakhtin e seu Círculo, especialmente sobre o “discurso reportado” no campo jurídico, pode ser um veículo para uma visão crítica da arena de debate em que todo Processo se desenvolve, supostamente em busca da “verdade” e da “justiça”. Não é difícil entrever que muitas vezes essa disputa no campo jurídico se perverterá facilmente num embate de egos em que “discursos reportados” não necessariamente são produzidos com sinceridade ou pureza de intenções, mas apenas e tão somente com o intuito de “vencer” uma disputa, de impor um discurso, onde na “heteroglossia dialogizada” prevalecerá uma “força centrípeta”. Nesse quadro, as questões que geralmente, numa abordagem idealista do Direito, são postas como básicas, tais como a “verdade” e a “justiça”, ficam num segundo plano, senão absolutamente desprezadas. E frise-se, por fim, que não se está falando somente do defensor, do advogado constituído, como se poderia erroneamente supor devido à citação acima da obra de Dostoiévski. Essa vontade de ter razão que suplanta a própria razão e pode levar mesmo à irracionalidade, tem perfeitamente o potencial de contaminar qualquer ator processual, seja ele um Delegado de Polícia (na fase inquisitiva), seja um Promotor de “Justiça” ou mesmo o Juiz. Na realidade ocorre, nessas circunstâncias, o fato de que o indivíduo saí à cata de argumentos, ainda que sabidamente indevidos, para satisfazer seu desejo. É aquilo que Cordero chama de “primado das hipóteses sobre os fatos”. [114]