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Responsabilidade civil do Estado por omissão da função administrativa em casos de acidentes de trânsito provocados pela má conservação das rodovias

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Agenda 12/05/2014 às 10:36

Análise da responsabilidade do Estado por acidentes em rodovias, observando a aplicação das teorias objetiva e subjetiva aos casos de omissão estatal e discorrendo pelas correntes civilistas e publicistas de sua responsabilização.

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo a análise da questão da responsabilidade do Estado por acidentes em rodovias que não foram por ele bem conservadas, observando o estudo da legislação e dos argumentos doutrinários sobre aplicação das teorias objetiva e subjetiva aos casos de omissão estatal, discorrendo pelas correntes civilistas e publicistas e observando, também, o posicionamento do Judiciário sobre o tema em questão. Para tanto, serão examinados os aspectos da responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, com exame de seus fundamentos e verificação de suas excludentes, e abarcando, inclusive, os pontos relevantes da evolução histórica a que se submeteu. Finalmente, serão apresentados os argumentos das posições doutrinárias defensoras das teorias objetiva e subjetiva quanto à responsabilização estatal em casos de omissão e, por fim, a verificação jurisprudencial dos tribunais superiores quanto aos determinantes da responsabilidade do Poder Público em acidentes decorrentes de sua inação na conservação das rodovias para que, desta forma, seja feita aferição dos fatores decisivos na aplicação dos entendimentos doutrinários.

Palavras-chave: Responsabilidade Civil do Estado. Acidente de Trânsito. Conservação das Rodovias. Responsabilidade Objetiva. Responsabilidade Subjetiva. Corrente Civilista. Corrente Publicista.


INTRODUÇÃO

Dentre as inúmeras situações em que condutas estatais imputam danos a um particular, pode-se destacar a questão da responsabilização do Estado por acidentes em rodovias que não foram por ele bem conservadas. Nesse contexto, surgem com frequência ocasiões em que pessoas se lesionam em decorrência da existência de buracos nas vias de transporte terrestres e, também, se tornam constantes as circunstâncias em que carros se danificam por problemas na camada asfáltica ou pela ausência de devida sinalização. É nesta situação que deve haver consideração acerca da reparação àquele que teve que suportar os danos decorrentes da omissão estatal.

Regulando tal contexto, o ordenamento jurídico brasileiro, através do §6º do art. 37 da Constituição Federal de 1988 e do art. 43 do Código Civil de 2002, tem determinado que as entidades estatais e seus desmembramentos administrativos devem indenizar pelas lesões ocasionadas a terceiros. Ademais, o art. 82, IV, da Lei nº 10.233, de 05 de junho de 2001, também expõe a responsabilidade do Poder Público, quando este atua através do DNIT (Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes) na obrigação de fiscalizar e conservar pista de rodovia em boas condições de tráfego.

Entretanto, apesar de ser patente a assertiva de que a Administração Pública tem responsabilidade pelas conseqüências de seus atos, surgem questionamentos que causam perplexidade. Afinal, quais são os limites da responsabilidade estatal no que tange aos acidentes nas rodovias? O que é relevante para a definição de tais contornos? Qual é a resposta dada pelo Poder Judiciário quando se depara diante de debates acerca da responsabilidade do Estado por acidentes em rodovias?

Não obstante a ausência de definição satisfatória das determinações de exatos parâmetros, o princípio da responsabilidade civil do Estado é claramente aceito no direito brasileiro. Mas ainda é de se considerar que a doutrina e a jurisprudência de nosso país ainda não se pacificaram acerca da natureza da responsabilidade civil estatal por conduta omissiva.

O cerne da divergência se encontra na necessidade ou não de se comprovar a culpa do ente Estatal em casos de danos decorrentes de sua omissão. Desta forma, mesmo sendo pacífico o entendimento de que pode haver responsabilidade diante da inação do órgão público, não são todos os doutrinadores e julgados que se posicionam da mesma maneira quando se trata de classificar a responsabilização da conduta omissiva estatal em subjetiva ou objetiva.

Diante do exposto, para se esclarecer as determinantes da responsabilidade do Estado por acidentes em rodovias decorrentes de sua omissão na conservação das estradas e responder à questão formulada por meio da hipótese desse estudo, este trabalho estará organizado em três capítulos para melhor avaliar os dados pertinentes ao tema.

O primeiro capítulo abordará sobre as noções essenciais acerca da questão da responsabilidade civil do Estado, tratando do conceito, da evolução histórica, dos fundamentos das teorias civilista e publicista e da configuração dos pressupostos para sua aplicação.

O capítulo seguinte tratará das considerações sobre a responsabilidade subjetiva e sobre a responsabilidade objetiva do Estado por omissão, buscando compreender qual a real obrigação do Estado sobre a conservação das rodovias e sobre a necessidade de se manter a incolumidade de seus usuários, analisando, também, os principais pontos sobre divergência doutrinária no que se refere à aplicação da responsabilização objetiva ou objetiva pela conduta danosa que o ente público ensejou.

No último capítulo, por sua vez, será feita uma análise de julgados do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal para compreensão aplicação das teorias estudadas e para entendimento sobre os níveis de oscilações entre o posicionamento doutrinário e as instâncias do judiciário.

Portanto, haja vista a questão ser emergente, rotineira e insistente, os casos de acidentes provocados pela má conservação da malha viária pelo país, aliado à grande discussão doutrinária e jurisprudencial quanto a qual teoria se aplicar ante a danos provenientes de omissões estatais justificam a pesquisa sobre o referido tema a fim de analisar a forma justa, legal e célere suficientes a garantir a indenização devida no caso concreto.


1. A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

Ao se examinar a questão da responsabilização da Administração Pública por acidentes em rodovias que não foram por ela bem conservadas, faz-se necessário, antecipadamente, buscar a total compreensão acerca do conceito de responsabilidade do Estado.

Deve ser observado que o Estado, da mesma forma que qualquer outro sujeito de direito, pode vir a estar na situação de quem causou um dano a alguém, e, desta forma, sujeito à obrigação de reparar danos causados a terceiros, de caráter comissivo ou omissivo, de seus agentes públicos.

Assim, a responsabilidade civil do Estado pode ser entendida como a obrigação legal, imposta à Administração, de ressarcir os danos causados a terceiros por suas atividades.

Utilizando-se da expressão responsabilidade civil da Administração, Meirelles define-a como sendo “a que impõe a Fazenda Pública a obrigação de compor o dano causado a terceiros por agentes públicos, no desempenho de suas atribuições ou a pretexto de exercê-las”.

Da mesma forma que Meirelles, Di Pietro prefere usar o termo responsabilidade civil da Administração Pública ao invés da designação responsabilidade civil do Estado, justificando que os atos que geram responsabilização não decorrem do Estado como entidade política, mas surge de atos da Administração. Sendo assim, relaciona a esta responsabilidade três tipos de funções em que se reparte o poder estatal: a administrativa, a legislativa e a jurisdicional, dando mais ênfase à responsabilidade decorrente de comportamentos da Administração Pública.

De forma delimitada e precisa, conceitua sobre o tema, Mello:

Entende-se por responsabilidade extracontratual do Estado a obrigação que lhe incumbe de reparar economicamente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem e que lhe sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos.

A responsabilidade pode decorrer, então, de atos jurídicos, de atos ilícitos ou lícitos, de atos materiais ou de omissão do Poder Público. Essencial, para a responsabilidade, é que um agente a serviço do Estado haja causado um dano a terceiro, inclusive por atos lícitos.

Com o mesmo raciocínio, José dos Santos Carvalho Filho defende o aspecto da licitude o ilicitude não está atrelada ao fato gerador da responsabilidade. Sendo assim, justifica:

Como regra, é verdade, o fato ilícito é que acarreta a responsabilidade, mas, em ocasiões especiais, o ordenamento jurídico faz nascer a responsabilidade até mesmo de fatos lícitos. Nesse ponto, a caracterização do fato como gerador da responsabilidade obedece ao que a lei estabelecer a respeito.

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Outro fato que deve ser salientado é que, tratando-se dos prejuízos suportados por terceiros em decorrência da omissão estatal em conservar sua malha viária, o Poder Público passa a ser obrigado em cumprir a reparação dos danos que possibilitou, haja vista sua inércia. Tal responsabilidade do Estado é, assim, chamada de extracontratual ou aquiliana.

A responsabilidade contratual estatal, ao contrário, existe a partir do descumprimento do Estado de cláusulas contratuais que se obrigou formalmente por ocasião de uma avença. A extracontratual ou aquiliana, que trataremos no presente trabalho, se refere, nos dizeres de Dirley da Cunha a “obrigação que lhe incumbe de reparar os danos lesivos a terceiros e que lhe sejam imputáveis em virtude de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos”.

1.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA

Antes de se começar a tratar das determinantes da responsabilidade do Estado por acidentes em rodovias, decorrentes de sua omissão na conservação das estradas, faz-se necessário compreender a evolução histórica da responsabilização desta pessoa jurídica e analisar as teorias diversas que ajudam no desenvolvimento deste estudo.

Sabendo ainda que, muito embora, para alguns, o Estado possa ser responsável até objetivamente pelos atos de seus agentes, não foi sempre que sua responsabilidade esteve em vigor. Lembra José Cretella Júnior:

Houve longo período na história da humanidade em que o Estado jamais pagou os danos que seus agentes causavam ao cidadão. Nem se cogitava, aliás, do tema, já que predominava a teoria do direito divino, pela qual o soberano está acima de quaisquer erros (the king can do no wrong). A infalibilidade do chefe transmitia-se a seus funcionários.

O Estado, como poder público soberano, era insuscetível de reparar os danos que causasse. Com isso, segundo CAVALIERI FILHO , responsabilizá-lo, segundo a concepção de sua irresponsabilidade, seria pôr um “entrave perigoso à execução de seus serviços”. A única ressalva para este período, como salienta Caio Mário da Silva Pereira , seria a responsabilidade pecuniária pessoal dos agentes da Administração que, de qualquer forma, descambava para a frustração quando o funcionário se encontrasse insolvente.

Na época dos Estados absolutos, negava-se a responsabilidade do Estado. Segundo pensamento preponderante a esse tempo, a autoridade do Estado era incontestável perante o súdito, vigia os princípios de que o rei não pode errar (the king can do no wrong, lê roi ne peau mal faire) e de que “aquilo que agrada o príncipe tem força de lei” (quod principi placuit habet legis vigorem). A atribuição de responsabilidade ao Estado significaria colocá-lo ao mesmo nível de seus súditos, desrespeitando sua soberania. Restava ao administrado, tão somente, ação diretamente contra o funcionário causador do dano, caso este fosse insolvente frustrada seria indenização. A possibilidade de responsabilização a cargo do patrimônio público era considerada uma ameaça à liberdade dos serviços.

A teoria da irresponsabilidade estatal fundava-se: 1) na soberania do Estado, responsabilidade do soberano perante o súdito inexiste; 2) o Estado como instituidor do Direito, não pode ser violador deste mesmo direito; 3) atos de funcionários não podem ser considerados atos do Estado.

Pode-se dizer que a questão da responsabilidade da Administração Pública avançou quando se passou a acolher, além da possibilidade de se responsabilizar os funcionários e empregados públicos, a própria responsabilização do Estado, inclusive com relação à prática de atos lícitos.

Um marco no reconhecimento da responsabilidade do Estado, independente de texto legislativo, foi o “Caso Blanco”, cujo aresto do Tribunal de Conflitos foi proferido em 1º de fevereiro de 1873. Nele se estabelecia a responsabilidade do Estado, reconhecendo-a mesmo à falta de lei.

A importância desse caso é informada por Juary C. Silva nos seguintes termos:

O affaire Blanco representa assim não a afirmação do princípio da responsabilidade do Estado por atos lesivos aos particulares – porquanto tal já defluia do constitucionalismo europeu e da teoria da separação dos poderes, proclamada lapidarmente pela Revolução Francesa – porém o reconhecimento prático dos efeitos desse princípio, sem o que ele não passaria de mera afirmação doutrinária, desprovida de eficácia concreta, à semelhança dos preceitos constitucionais ditos programáticos, os quais tantas vezes remanescem sem nenhuma repercussão fática.

A figura da responsabilidade civil fora evoluindo em relação ao fundamento, baseando-se o dever de reparação não apenas na culpa, caso em que será subjetiva, como também no risco, ocasião em que passará a ser objetiva. Sendo expandida a indenização por danos causados também pela ausência da culpa, visando assim uma proteção jurídica à pessoa humana, em particular aos trabalhadores e à vítima de acidente contra insegurança material, sendo que todo dano deve ter um responsável.

Sobre isso discorre Diniz:

Houve um aumento não só no número das pessoas responsáveis pelos danos admitindo-se, ao lado da responsabilidade direta ou por fato próprio dão imputados, a indireta por fatos de animais e coisas sob sua guarda, fundada em alguns casos na idéia de culpa presumida e em outros, na do risco, mas também no número de beneficiários na indenização, substituindo-se ao parente o dependente econômico e no número de fatos que ensejam a responsabilidade civil.

A partir de então, a responsabilidade da Administração Pública tem se expandido cada vez mais, tanto no sentido de abarcar áreas cada vez maiores da sua atuação, quanto no de admitir que se deflagre cada vez com menos pressupostos. Há a tendência de se renunciar à ideia civilista de culpa, que envolve sempre imprudência, negligência e imperícia, para condicioná-la à mera atuação objetiva do Estado, independente dos elementos subjetivos com que tenha atuado.

1.2 TEORIAS SOBRE A RESPONSABILIDADE DO ESTADO

1.2.1 Teoria civilista

Nesta fase de responsabilidade subjetiva, diante da decadência da doutrina da irresponsabilidade, os atos culposos dos agentes passaram a ser suficientes para responsabilizar o Estado.

Na presença da teoria clássica, a culpa seria o fundamento da responsabilidade subjetiva, pois, segundo esta teoria, em ato onde não se determina culpa, não há como responsabilizar alguém por dano.

Conforme Rodrigues:

Dentro da concepção tradicional a responsabilidade do agente causador do dano só se configura se agiu culposa ou dolosamente. De modo que a prova do culpado agente causador do dano é indispensável para que surja o dever de indenizar. A responsabilidade, no caso, é subjetiva, pois depende do comportamento do sujeito.

Nesse sentido, preleciona Alonso:

Na dogmática de responsabilidade civil subjetiva, o ato ilícito destaca-se como um elemento relevante da sua situação. A investigação do comportamento o agente é fundamental para a apuração da sua responsabilidade, uma vez que o pressuposto do dever de indenizar pela teoria subjetiva é a conduta culposa do agente.

Conforme o fundamento que se dê à responsabilidade, diz ser subjetiva quando se esteia na ideia de culpa. Sendo que a prova da culpa do agente passa a ser pressuposto necessário do dano indenizável. Assim, com essa concepção, a responsabilidade do causador do dano apenas se configura quando sua ação for com dolo ou culpa.

Entretanto, para esta doutrina, fazia-se necessária a distinção, que nem sempre era fácil, entre os tipos de atitude estatal, pois seus atos de império não lhe poderiam gerar responsabilização civil, haja vista o fato de serem regidos pelas normas tradicionais de direito público que lhe são protetivas. Desta forma, somente os atos de gestão, que não decorrem do poder soberano do Estado, mas se aproximam com os atos de direito privado, gerariam a sua responsabilidade , além da necessidade de prova do dolo ou culpa.

No artigo 15 do Código Civil Brasileiro de 1916, encontramos a indicação sobre a responsabilidade subjetiva:

"As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos de seus representantes que, nesta qualidade, causarem danos a terceiros procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito de regresso contra os causadores de danos."

1.2.2 Teorias publicistas da responsabilização estatal
1.2.2.1 Teoria da Culpa Administrativa

Com a evolução da responsabilidade do Estado, surgiu o reconhecimento da culpa administrativa. A distinção, desta forma, entre os atos de gestão e atos de império estatais não se fazia mais necessária. Sendo assim, bastava a comprovação do mau funcionamento do serviço público, ainda que impossível a identificação do agente responsável pelo dano. Foi adotada a partir daí, a teoria da culpa administrativa, desenvolvendo-se a idéia de culpa anônima e de responsabilização pela falta do serviço – faute du service, entre os franceses.

A culpa individual do agente estatal não precisaria ser identificada, bastaria constatar a precariedade do funcionamento do serviço para imputação do dano. Mas não se confunde com a responsabilidade objetiva, pois, como afirma Cavalieri Filho , a falta de organização configura a culpa do serviço e, conseqüentemente, do próprio Estado, não individualizável em determinado agente público.

Segundo Carvalho Filho, o modo da falta do serviço poderia se manifestar de três maneiras: com a inexistência do serviço, com o mau funcionamento do serviço ou com o retardamento do serviço. Em todas estas formas, o lesado cabia o ônus de comprovar a existência da culpa, ainda que atribuída ao serviço da Administração Pública, originada de seu mau funcionamento e de sua atuação culposa.

1.2.2.2 Teoria do Risco Administrativo

Com fundamento na teoria do risco, a necessidade de se comprovar culpa deixou de ser imprescindível e o Estado passou, então, a ser responsabilizado diretamente. Ademais, sabendo que a Administração Pública geraria riscos para os administrados, os princípios da equidade e da igualdade de ônus e encargos sociais justificaram tal evolução visando a responsabilidade pelo risco criado pela atividade administrativa.

Nesse momento em que se buscava uma responsabilidade objetiva da Administração Pública, surgiu a teoria do risco administrativo. Sendo assim, com algumas adaptações para a atividade pública, os juristas se valeram de tal teoria. Cavalieri Filho a explica:

A Administração Pública gera risco para os administrados, entendendo-se como tal a possibilidade de dano que os membros da comunidade podem sofrer em decorrência da normal ou anormal atividade do Estado. Tendo em vista que essa atividade é exercida em favor de todos, seus ônus devem ser também suportados por todos, e não apenas por alguns. Consequentemente deve o Estado, que a todos representa, suportar os ônus da sua atividade, independentemente de culpa dos seus agentes.

Alguns doutrinadores, ao contrário de muitos, equiparam a teoria do risco administrativo à do risco integral, como Caio Mário ao afirmar: “O direito positivo brasileiro consagra a teoria do risco integral ou risco administrativo”.

Não devemos olvidar, porém, como será mais bem explanado adiante, que a teoria do risco integral defende a responsabilidade independente de nexo causal e, para que Estado seja obrigado a indenizar, não deverá haver exclusão da relação de causalidade.

A teoria do risco, então, como fundamento da responsabilidade objetiva do Estado, era justificada por suas numerosas atividades e maior quantidade de poder, que correspondia a um maior risco.

1.2.2.3 Teoria do Risco Integral

Como já pôde ser percebido, a teoria do risco integral prescinde o nexo causal e ocorre até mesmo quando a culpa provém da própria vítima. Compreende-se, então, que desta maneira estaria o Estado impedido de invocar as causas de exclusão de nexo causal, a saber: caso fortuito, força maior, fato exclusivo da vítima ou de terceiro.

Hely Lopes Meirelles, embora reconheça que alguns tenham encontrado admissibilidade do risco integral no texto das Constituições da República, considera que tal teoria é distante da doutrina acolhida por nosso Direito e não mantém proximidade à jurisprudência que aborda o dispositivo constitucional consagrador da teoria objetiva, que se limita, simplesmente, à modalidade do risco administrativo.

O posicionamento de Cavalieri Filho, entretanto, se mostra mais diferente. O doutrinador concorda que nossa lei adotou a responsabilidade fundada o risco integral, especialmente quando se trata de seguro obrigatório para proprietários de veículos automotores – DPVAT. De acordo com a Lei nº 8.441/1992, a indenização torna-se devida mesmo em veículo com seguro não realizado ou vencido.

1.3 RESPONSABILIDADE DO ESTADO NO DIREITO BRASILEIRO

A fase da irresponsabilidade não se fez presente no Brasil, mas ainda há quem defenda o contrário. HARADA cita a Constituição Imperial de 1824 para justificar esta posição, já que o art. 179, 29 diz que os empregados públicos são responsáveis pelos abusos e omissões no exercício de seus cargos. CAVALIERI FILHO sustenta, ainda citando a Constituição Republicana de 1891, art. 79 – com disposição idêntica, não se falava em excludente de responsabilidade estatal, mas “numa solidariedade do Estado em relação aos atos de seus agentes”, ou seja, fundada na culpa civil.

Conforme os prelecionamentos de Christiane Perdigão , com a Constituição de 1934, a responsabilidade do Estado passou a figurar-se de forma subjetiva, a culpa civil tornou-se obsoleta. Posteriormente, a Constituição 1937 manteve o dispositivo e, finalmente, na Carta Magna de 1946 (art. 194), a responsabilidade objetiva do Estado foi acolhida, se fazendo presente ainda nas constituições posteriores, inclusive nas que foram outorgadas pelo regime militar. Atualmente, esta responsabilização foi acolhida no § 6º do art. 37 de nossa Constituição de 1988 que, apesar da utilização do verbo causar, remete não só ao comportamento comissivo, mas também ao omissivo do Estado, como veremos mais adiante.

A princípio, no Brasil, a tese de responsabilidade do Poder Público sempre foi aceita como princípio geral e fundamental de Direito, até mesmo anteriormente ao do marco constitucional, como já visto, as constituições brasileiras jamais se desataram da responsabilidade estatal. Outrora, as constituições indicavam uma espécie de solidariedade estatal em relação às condutas de seus agentes e, logo, tratando de responsabilidade fundada em culpa civil (imprudência, imperícia ou negligência), sendo preciso, a demonstração da culpa dos atos do agente público para uma tentativa de reparação do dano/indenização.

Tanto que o Código Civil de 1916 era vinculado a este caráter subjetivo da responsabilidade civil do Estado, expressando nitidamente uma responsabilidade estatal fundamentada na culpa, tornando-se quase sempre impossível a manifestação da culpa do funcionário público, segundo o mestre Caio Mário da Silva Pereira. E, uma vez que este se encontra em posição superior em relação ao lesado, era comum o dano não ser reparado.

Finalmente, o legislador constituinte de 1946, acolheu a responsabilidade estatal independe de culpa, consagrando a teoria da responsabilidade objetiva. Menciona Sérgio Cavalieiri Filho: “a partir da Constituição de 1946, a responsabilidade civil do Estado brasileiro passou a ser objetiva, com base na teoria do risco administrativo, onde não se cogita de culpa, mas, tão-somente, da relação de causalidade”.

Com o advento da Carta Magna de 1988, fez-se, assim, oportuna uma releitura do Código Civil, desta vez à luz da Constituição Federal. Aliás, a interpenetração entre o Direito Civil e o Direito Constitucional (ou a despatrimonialização do Direito Civil ou, ainda, a civilização do Direito Constitucional ou, mesmo, a repersonalização do Direito Civil), Sérgio Cavalieri Filho, compartilhando deste entendimento, “ressaltando ser regra superior de interpretação que as normas inscritas no corpo da Constituição subordinam a aplicação de todos os textos infraconstitucionais compreendidos na matéria a que elas se referem, de vez que indicam os valores superiores eleitos pelo constituinte”.

1.4 PRESSUPOSTOS PARA APLICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE

A configuração dos pressupostos da responsabilidade civil não é pacífica entre os juristas, sendo bastante difícil sua caracterização ante a grande imprecisão doutrinaria, visto que alguns juristas apontam o “fato danoso, o prejuízo e o liame” entre eles como seus pressupostos, outros apresentam a “culpa e a imputabilidade”, no entanto, estão essencialmente elencados no artigo 186 do Código Civil, que dispõe: “Art.186. Aquele que por ação, omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.

Deste modo, segundo Gonçalves são pressupostos da responsabilidade civil: “ação ou omissão do agente; culpa dolo do agente; relação de causalidade; dano experimentado pela vítima".

Sabe-se, entretanto, que parte considerável da doutrina considera desnecessária a comprovação da existência de culpa para responsabilização estatal, por considerá-la objetiva. É por isso que José dos Santos Carvalho Filho, ao tratar sobre a característica de tal responsabilização, entende que “a marca da responsabilidade objetiva é a desnecessidade de o lesado pela conduta estatal provar a existência da culpa do agente ou do serviço. O fator culpa, então, fica desconsiderado com pressupostos da responsabilidade objetiva”.

Desta forma, limitaremos nosso estudo à análise de três pressupostos: o fato administrativo, que corresponde à conduta omissiva ou comissiva atribuída ao Poder Público; o dano; e o nexo causal, ou relação de causalidade entre o fato administrativo e o dano ocasionado.

1.4.1 Fato Administrativo

A conduta omissiva ou comissiva atribuída ao Poder Público certamente é ensejadora de conseqüências jurídicas. Pode-se dizer que a ação é a maneira mais comum de se verificar a exteriorização da conduta. Sérgio Cavalieri Filho assim a define: “Consiste, pois, a ação em um movimento corpóreo comissivo, um comportamento positivo, como a destruição de uma coisa alheia, a morte ou lesão corporal causada em alguém, e assim por diante”.

Não obstante o comportamento comissivo ser mais explícito na verificação do fato administrativo, não se deve olvidar da capacidade da conduta do ente estatal também poder se dar através de uma omissão.

A doutrina tem entendido que, havendo imposição legal para a prática de determinado ato ou havendo possibilidade de se demonstrar que afastando a inércia o dano poderia ser evitado, a simples ausência de uma ação configura a responsabilidade civil por omissão. O conceito já é amplamente aplicado pelo STJ.

Considerando o fato administrativo oriundo de atuação de alguém na qualidade de agente estatal, entende-se que este seja proveniente de conduta humana. Conclui-se, desta forma, que sua manifestação pode ser classificada em positiva ou negativa.

Sobre tal classificação, tratando da comissão e omissão, respectivamente, explicam GAGLIANO e PAMPLONA FILHO:

A primeira delas traduz-se pela prática de um comportamento ativo, positivo, a exemplo do dano causado pelo sujeito que, embriagado, arremessa o seu veículo contra o muro do vizinho.

A segunda forma de conduta, por sua vez, é de intelecção mais sutil. Trata-se da atuação omissiva ou negativa, geradora de dano. Se, no plano físico, a omissão pode ser interpretada como um “nada”, um “não fazer”, uma “simples abstenção”, no plano jurídico este tipo de comportamento pode gerar dano atribuível ao omitente, que será responsabilizado pelo mesmo. Observe, aliás, que o art. 186 impõe a obrigação de indenizar a todo aquele que por “ação ou omissão voluntária” causar prejuízo a outrem. É o caso da enfermeira que violando as suas regras de profissão e o próprio contrato de prestação de serviços que celebrou, deixa de ministrar os medicamentos ao seu patrão, por dolo ou desídia.

1.4.2 Dano

Observando a etimologia da palavra, indenizar é tornar indene, ou seja, é repor o patrimônio lesado no seu status quo ante do ato ilícito que causou o prejuízo. Desta forma, ainda que se considere responsabilidade sem culpa, não se pode falar de indenização sem dano. Com muita propriedade, Cavalieri Filho assim traz a conceituação do pressuposto em análise como “subtração ou diminuição de um bem jurídico, qualquer que seja a sua natureza, quer se trate de um bem patrimonial, quer se trate de um bem integrante da própria personalidade da vítima, como sua honra a imagem a liberdade etc”.

Logo, em observância ao art. 5º, V e X da Constituição Federal , o dano ao bem jurídico, seja ele patrimonial ou moral, é cabível de indenização.

Yussef Said Cahali fala ainda de dano especial e anormal gerado pela atividade administrativa. Trata-se de um prejuízo singular, individualizado, cujo incômodo ao interesse privado ultrapassa o exigível em prol do interesse público. Logo, o mesmo autor conclui que “para a configuração do dano reparável nos comportamentos estatais lícitos são indispensáveis, além da certeza do dano ou da lesão a um direito, duas outras características: a especialidade a anormalidade”.

Dirley da Cunha ainda acrescenta que o dano, apesar de não ter que ser necessariamente econômico, deve ser jurídico. Para tanto, há a exemplificação de danos econômicos não indenizáveis ocasionados a determinados estabelecimentos comerciais pela retirada de um teatro público ou uma universidade pública das proximidades.

1.4.3 Nexo Causal

A relação de causalidade entre o fato administrativo e o dano ocasionado é imprescindível à configuração do dever de indenizar. Em se tratando de responsabilização do Estado pela má conservação das rodovias, faz-se necessário, então, comprovação que os danos suportados foram decorrentes pela ausência de manutenção da via. A jurisprudência tem sido pacífica neste sentido, como exemplo do julgamento da Apelação Cível 293305 pela quinta turma especializada, no TRF5, que reformou sentença do juízo a quo por não ter encontrado a comprovação do nexo causal e a ação ou omissão da Administração.

A doutrina também tem ratificado sua enorme relevância para a formação da responsabilidade civil, excetuando-o apenas, como já outrora visto, no caso da teoria do risco integral. Caio Mário da Silva Pereira assim ensina que “a relação de causalidade consiste na determinação de ‘elementos objetivos, externos, consistentes na atividade ou inatividade do sujeito, atentatórios do direito alheio’. É uma quaestio facti, ou uma imputatio facti”. Ou seja, o nexo causal é o elo entre o dano produzido ao terceiro e a atividade, comissiva ou omissiva, da Administração Pública.

Diante disto, ao tratar sobre o nexo de causalidade, Carvalho Filho aduz que, para responsabilizar o Estado, cabe apenas ao lesado “demonstrar que o prejuízo sofrido se originou da conduta estatal, sem qualquer consideração sobre o dolo ou a culpa”.

Contudo, a responsabilidade do Estado será nula ou diminuída quando houver circunstâncias que excluam ou atenuam o nexo de causalidade, a saber: força maior, quando o fato não provém da vontade humana e é imprevisível e inevitável; culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, sendo este o c ausador do prejuízo e não o órgão estatal; e culpa concorrente da vítima ou de terceiro.

Sobre o autor
Rafael Diego Jaires da Silva

Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (2012), com especialização em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Estácio de Sá (2015) e bacharelado em Teologia pela Faculdade de Teologia de Alagoas, convalidado pela Faculdade de Teologia Integrada (2018). Também é graduando em História Licenciatura pelo Centro Universitário de Maringá e mestrando em Administração Pública pela Universidade Federal de Alagoas. Atualmente, é assistente em administração da Universidade Federal de Alagoas e atua como advogado, especialmente no âmbito criminal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Rafael Diego Jaires. Responsabilidade civil do Estado por omissão da função administrativa em casos de acidentes de trânsito provocados pela má conservação das rodovias. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3967, 12 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27908. Acesso em: 23 nov. 2024.

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