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O conceito de sistema jurídico de Herbert Hart

Agenda 03/05/2014 às 11:45

Herbert Hart enxerga duas espécies de regras jurídicas: as primárias, orientadas diretamente à conduta das pessoas e a secundárias, que se referem às normas primárias. Dentre as normas secundárias, evidenciou-se outra classificação: as regras de alteração, as regras de julgamento e a regra de reconhecimento.

INTRODUÇÃO

O presente texto apresenta um resumo das principais idéias lançadas por Herbert Hart em seu livro “O conceito de direito” a propósito da sua concepção do que seja e de como se organize um sistema jurídico.

Para bem compreender o conceito de sistema de Hart, analisar-se-ão dois capítulos da sobrecitada obra. Inicialmente, analisam-se os conceitos formulados pelo autor de regras primárias e secundárias, já que ele utiliza esta dicotomia como base da sua concepção de sistema. Posteriormente, trata-se especificamente da função estrutural desempenhada pela regra de reconhecimento.


AS REGRAS PRIMÁRIAS E SECUNDÁRIAS E O SISTEMA JURÍDICO.

O autor inicia sua análise refutando a tese de que o direito é uma reunião de ordens coercitivas. Tal modelo foi historicamente empregado para enxergar as relações entre soberano e súdito e, segundo Hart, não resiste à análise à luz de alguns aspectos familiares do direito interno num Estado moderno.

As falhas daquele modelo são utilizadas pelo autor como elementos iniciais para a formulação de um conceito alternativo do que seja direito e, conseqüentemente, de como se organiza um sistema jurídico.

A impropriedade fundamental, da qual derivam as demais, é de que não é suficiente a concepção de que todas as regras de um sistema jurídico sejam ordens baseadas em ameaças.

A este respeito, Hart lembra que há diversas espécies de lei que não se adequam a este modelo. É o caso daquelas que criam poderes jurídicos para julgar ou legislar (poderes públicos) ou para constituir ou alterar relações jurídicas (poderes privados). Ademais, mesmo as leis criminais (espécie que mais se aproxima deste paradigma) diferem de tais ordens porque se aplicam também àqueles que as criam, e não apenas aos outros.

A partir desta análise, Hart conclui que há duas espécies fundamentais de regras jurídicas. Àquelas que exigem que o ser humano faça ou se abstenha de fazer certas ações, o autor denomina de tipo básico ou primário. Já as normas secundárias são aquelas que permitem aos seres humanos criarem, extinguirem ou modificarem as regras antigas, determinarem de outro modo a sua incidência ou fiscalizarem a sua aplicação.

Prosseguindo, Hart entende que o conceito de obrigação é fundamental para a formulação de uma teoria do direito. Analisa os conceitos tradicional (ordens coercitivas) e alternativo (regras primárias e secundárias) de direito para reformular o conceito de obrigação.

Inicialmente, o autor extrema as situações de “ter a obrigação” e de “ser obrigado”. Para tanto, utiliza um exemplo hipotético: A ordena a B que lhe entregue o seu dinheiro e ameaça que lhe dará um tiro, se ele não lhe obedecer. Se B lhe obedecer, pode-se dizer que ele “foi obrigado” a tanto, mas jamais que “tinha tal obrigação”. Hart pondera que, nesse caso, A poderia ser entendido como o soberano que é habitualmente obedecido e B, como seu súdito. Nesse caso, é importante lembrar que o “foi obrigado” equivale a afirmar que B acreditou que um mal poderia lhe advir, caso ele não entregasse o dinheiro. Portanto, por trás desta afirmação residem dois juízos: a ameaça de mal insignificante ou a crença de que a sanção jamais será cumprida impediriam a conclusão de que B “foi obrigado” a obedecer a A.

Por outro lado, estes dois juízos não são condições necessárias de validade da afirmação de que uma pessoa “tinha a obrigação” de fazer algo.

Obviamente, num sistema jurídico normal as sanções são freqüentemente aplicadas aos seus infratores que, portanto, correm o risco de sofrerem o castigo. Desta forma, ao “ter a obrigação” corresponde a previsibilidade do castigo em caso de descumprimento.

No entanto, o conceito de obrigação não pode gravitar em torno da gravidade ou plausibilidade de sanção. Exemplo disso seria a contradição em dizer-se que uma pessoa é obrigada a prestar o serviço militar, mas que não haveria a menor possibilidade que o castigo lhe fosse aplicado, já que fora corrompida a autoridade disso incumbida. Ademais, semelhante conceito esconde o fato de que, quando existem regras, os desvios delas não são simples fundamentos para a previsão de que se seguirão reações hostis, mas são também a razão ou justificação para a aplicação das sanções.

A questão melhor se esclarece quando Hart menciona que há dois pontos de vista para analisar a observância das regras, quais sejam, os pontos de vista interno e externo. Este se refere à pessoa que observa a aplicabilidade das regras, sem estar a elas submetido. O ponto de vista interno é aquele empregado pelos membros de um grupo que aceita as referidas regras.

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Quem observa as condutas de um grupo ao qual não pertence compreende que a regularidade destas fornece-lhe um juízo de previsibilidade das condutas e das sanções em caso de desvio da regra. Como exemplo, cita-se a situação daquele que, após ter observado durante algum tempo o funcionamento de um sinal de trânsito se limita a dizer que, quando a luz fica vermelha há uma grande probabilidade de que os carros parem. Caso algum carro não o faça, é previsível que se lhe apliquem alguma sanção.

Por outro lado, quem enxerga a aplicação das regras pelo ponto de vista interno sente-se obrigado a adotar o padrão de conduta por elas determinado. Para eles, a violação da regra não é apenas uma base para a predição de que se seguirá uma reação hostil, mas uma razão para a hostilidade.

Superadas estas considerações, é o autor passa a tratar especificamente da necessidade de existirem regras primárias e secundárias para que exista coerência em um sistema jurídico.

Inicialmente, Hart supõe a existência de uma sociedade rudimentar, em que não existam Poder Legislativo, tribunais ou pessoas encarregadas de fazer cumprir as regras. Conseqüentemente, tal grupamento seria informado apenas por regras primárias (ou seja, que prescrevem uma conduta padrão).

Hart enxerga a necessidade de três espécies de normas secundárias, cada uma delas correspondente a um aspecto da limitação de um sistema formado apenas por regras primárias. Afirma que “a introdução de um corretivo para cada defeito poderia em si ser considerado um passo na passagem do mundo pré-jurídico para o jurídico, uma vez que cada um desses remédios traz consigo muitos elementos que vão permear o direito: os três remédios em conjunto são sem dúvida o bastante para converter o regime de regras primárias naquilo que é indiscutivelmente um sistema jurídico”.

A primeira das dificuldades é saber quais são as regras ou qual o eventual alcance que elas têm. Tal problema só pode ser solucionado se houver um processo para a solução desta dúvida, seja por referência a um texto dotado de autoridade, seja à circunstãncia de ter sido emitida uma declaração por um funcionário estatal competente para tanto. Como solução desta dificuldade, Hart afirma a necessidade de introdução de uma “regra de reconhecimento” (rule of recognition), que especificará algum aspecto em função do qual uma dada regra é tomada afirmativa e concludentemente como uma regra do grupo que deve ser apoiada pela pressão social que ele exerce. A forma assumida por uma semelhante espécie normativa pode variar do mais simples ao mais complexo: da mera circunstância de constar de um documento escrito até a submissão a complexos critérios de hierarquia, especialidade e cronologia.

O segundo problema deriva do caráter estático das regras primárias. Uma sociedade que apenas disponha de regras primárias só poderia passar a dispor de novas regras pelo lento processo de amadurecimento através do qual os tipos de conduta primitivamente pensados como facultativos se tornaram habituais e, posteriormente, obrigatórios. Em contrapartida, o desaparecimento de regras primárias também só seria possível quando os desvios, anteriormente reprimidos severamente, passem a ser tolerados. Para corrigir tal impropriedade, seria necessária uma segunda espécie de normas secundárias, especificamente dirigidas a disciplinar a deliberada (intencional) supressão, introdução ou modificação das regras primárias até então existentes. Hart denomina tal espécie de “regras de alteração” (rules of change) e evidencia sua relação com as “regras de reconhecimento”: estas devem incorporar pelo menos algum aspecto de legislação para que uma regra primária seja considerada como válida e pertinente ao sistema.

O terceiro defeito advém da circunstância de que sempre ocorreriam dúvidas acerca da aplicabilidade de uma referida regra a um caso concreto, bem como de sua extensão e, especialmente, se a regra foi ou não violada no caso concreto. Além disso, o fato de não haverem órgãos especificamente incumbidos da aplicação do castigo cominado à violação da regra implica em deixar tal tarefa aos indivíduos ofendidos ou ao grupo em geral. O remédio a isto correspondente consiste em “regras de julgamento” (rules of adjudication) que dão poder aos indivíduos para proferir determinações dotadas de autoridade a respeito da questão sobre se uma regra primária foi ou não violada numa situação em concreto. Além de identificar os indivíduos a quem compete julgar, tais regras determinam o processo a ser empregado. Também estas espécies normativas estão intimamente ligadas às regras de reconhecimento: ao determinar se uma foi violada, está-se determinando o que as regras são. Assim, a regra que atribui jurisdição é também uma regra de reconhecimento que identifica as regras primárias através das sentenças dos tribunais e estas sentenças tornar-se-ão uma “fonte de direito”.

O autor pondera que só seria viável uma sociedade provida apenas por regras primárias caso se tratasse de uma pequena comunidade estreitamente ligada por laços de parentesco, sentimentos comuns e crenças e fixada num ambiente estável. Obviamente, tal situação não é verificável nas sociedades contemporâneas, se é que já o foi em algum momento histórico. Assim, em face das sobreditas limitações próprias das regras primárias é indispensável a existência de regras secundárias para que se tenha um sistema jurídico adequado às sociedades contemporâneas.

Diante de todas as questões tratadas até aqui, Hart afirma que o fundamento de um sistema jurídico não pode consistir na situação em que a maioria de um grupo social obedece habitualmente às ordens baseadas em ameaças da pessoa ou pessoas soberanas, as quais não obedecem elas próprias habitualmente a ninguém. Semelhante teoria não seria suficiente à existência do direito. Diferentemente, Hart afirma que o fundamento de um sistema jurídico reside na circunstância de que uma regra secundária de reconhecimento seja utilizada na identificação das regras primárias de obrigação.

O autor afirma que a existência de tal regra raramente é explicitamente afirmada, mas é comumente pressuposta e pode se traduzir sob diversas formas, desde a referência a um texto dotado de autoridade até a decisões judiciais proferidas em casos concretos. Nas complexas sociedades contemporâneas, a regra de reconhecimento se expressa pela aplicabilidade de vários critérios (hierarquia, especialidade, cronologia etc) que estabelecem a preferência de uma fonte normativa sobre outra.

Nesse contexto, dizer-se que uma regra é válida equivale a dizer que ela satisfaz a todos os critérios que compõem a regra de conhecimento. Isto também evidencia a distinção conceitual entre eficácia e validade. O fato de uma norma em particular não ser obedecida não determina a sua invalidade, salvo se a própria regra de reconhecimento contemplar uma “regra de desuso” (“nenhuma regra é considerada como regra do sistema se tiver cessado há muito de ser eficaz”). Entretanto, situação diversa se terá quando houver a não observância geral das regras do sistema: nessa hipótese, poder-se-ia afirmar que o referido sistema jurídico jamais foi aceito ou que foi abandonado pela sociedade a ele correspondente.

Hart ainda afirma que a regra de reconhecimento deve ser entendida como uma regra “última e suprema”. A supremacia se explica porque as regras identificadas por referência a ela são reconhecidas como regras do sistema, ainda que estejam em confito com regras identificadas por referência a outros critérios.

Por outro lado, pode-se dizer que a regra de reconhecimento é última porque ao verificarmos a validade de algum ato jurídico em específico sempre nos reportaremos a um outro ato, a ele anterior e hierarquicamente superior, do qual ele buscará a sua validade. Já este segundo ato se referirá a um terceiro e assim sucessivamente, até que se chegue a uma regra que faculta critérios para a apreciação da validade e de outras regras, mas não há regra que faculte critérios para a apreciação de sua própria validade jurídica. Pode-se formular uma série de questões acerca desta regra última: se ela causa mais bem do que mal, se é justa ou injusta etc. Nesse aspecto, o que diferencia a regra de reconhecimento de outra regra do sistema é que esta pode existir independentemente de sua aplicação, ao passo que aquela apenas existe como uma prática complexa de se identificar o direito a partir de certos critérios. Assim, não se pode questionar a validade da regra de reconhecimento – porque não há outra regra que lhe imprima validade – mas apenas a sua existência: se a regra de reconhecimento não for aplicada, ela não existe.

Atribuindo estas características à regra de reconhecimento, Hart rejeita a teoria de que existe um poder legislativo soberano que é juridicamente ilimitado.


CONCLUSÃO

Foram aqui apresentadas as principais idéias que fundamentam a concepção de sistema jurídico de Herbert Hart.

Diante do que foi exposto, percebeu-se que o autor enxerga duas espécies de regras jurídicas: as primárias, orientadas diretamente à conduta das pessoas e a secundárias, que se referem àquelas. Dentre as normas secundárias, evidenciou-se outra classificação: as regras de alteração, as regras de julgamento e a regra de reconhecimento

Esta última categoria é tida por Hart como fundamental ao conceito de sistema jurídico, desempenhando papel central na obra “O conceito de direito”, aqui analisada.


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Sobre o autor
Alexandre Magno Borges Pereira Santos

Mestre em Direito Público, Pós-graduado em Direito Processual Civil, Procurador Federal (AGU)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Alexandre Magno Borges Pereira. O conceito de sistema jurídico de Herbert Hart. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3958, 3 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28073. Acesso em: 23 nov. 2024.

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