Resumo: O presente trabalho teve por objetivo discutir o uso judicial da noção de dignidade humana, em especial sua aplicação quanto ao tema da embriaguez habitual como justa causa para a rescisão do contrato de trabalho. Para tanto, buscou-se inicialmente desvelar as raízes históricas dessa noção, que se engendrou em detrimento da antiga ideia de honra. Em seguida, com apoio em escritos de autores como J. Habermas, R. Dworkin, R. Posner e outros, procurou-se apontar alguns dos problemas e virtudes relacionados ao seu emprego judicial – emprego cada vez mais comum com o fortalecimento do Neoconstitucionalismo. Por fim, analisou-se o uso judicial da noção de dignidade na jurisprudência do TST (Tribunal Superior do Trabalho) produzida entre 1999 e 2013, no que diz respeito ao binômio alcoolismo e trabalho. Algumas das conclusões a que se chegou foram a de que o Neoconstitucionalismo pode ser entendido, em parte, como uma tentativa de resposta do Direito ao desafio moral ocasionado pelo surgimento da noção de dignidade humana; a jurisprudência do TST, sobre a questão da embriaguez habitual como justa causa para dispensa do empregado, começou a se modificar com o fortalecimento do Neoconstitucionalismo e da própria noção de dignidade humana no Direito brasileiro (e não tanto com a decisão da Organização Mundial de Saúde, no sentido de entender o alcoolismo como doença); o posicionamento do TST quanto à não incidência do art. 482, “f”, da CLT no caso de empregado alcoolista, fruto ora explícito, ora implícito, da aplicação judicial da noção de dignidade humana, embora seja passível de algumas críticas (sobretudo para quem vê com ceticismo tanto a referida noção, quanto a pretensão de se fazer uma “leitura moral do Direito”), não implicou a criação de um novo direito, mas apenas invalidou a incidência do referido dispositivo a uma determinada situação de fato (configuração do alcoolismo); o posicionamento do TST, ao menos em alguns casos, pode estar em consonância com a noção de eficiência de Kaldor – Hicks, cara aos partidários da análise econômica do Direito, que estão dentre os maiores críticos contemporâneos do uso judicial do conceito de dignidade humana.
Palavras-chave: dignidade humana, honra, alcoolismo, trabalho, neoconstitucionalismo, análise econômica do Direito.
Sumário: Introdução. 1. A bebida no Ocidente, o alcoolismo e o artigo 482, “f”, da CLT. 2. Dignidade Humana - a trajetória histórica. Ou: os homens sempre tiveram valor intrínseco? 2.1. Do conceito de honra ao conceito de dignidade humana. 3. A dignidade humana no contexto do neoconstitucionalismo. 3.1. Críticas à noção de dignidade humana. 3.3. Críticas aos críticos da noção de dignidade humana. 4. Dignidade, embriaguez habitual e trabalho nas decisões do TST. Considerações Finais. Referências Bibliográficas.
Introdução
Com o final da Segunda Guerra Mundial e seus traumas, a noção de dignidade humana surge com força não apenas em uma miríade de documentos da Organização das Nações Unidas (sendo a Declaração Universal dos Direitos Humanos o mais famoso), como nas cerca de 40 Constituições Nacionais promulgadas desde então. É também mencionada em legislações que vão da biotecnologia ao direito do trabalho e direito internacional; em discursos políticos os mais variados e, recentemente, em decisões judiciais produzidas em países díspares como Estados Unidos, África do Sul, Austrália e Brasil1.
No que tange à jurisprudência trabalhista brasileira, o princípio da dignidade humana sem dúvida tem sido bastante suscitado nos últimos anos, de forma implícita ou explícita, inclusive no que diz respeito ao tema da embriaguez habitual como justa causa para a cessação do contrato de trabalho pelo empregador. Tem-se entendido, quanto a essa questão, que o empregado alcoolista sofre de uma doença (reconhecida como tal pela Organização Mundial de Saúde) e que sua dispensa, com fundamento no artigo 482, “f”, da CLT, implicaria afronta a sua dignidade humana. Tem havido, nesses casos, a aplicação de um princípio em detrimento da letra da lei, ainda que nem sempre de forma explícita.
A primeira questão que se pretende discutir neste trabalho é por que a noção de dignidade humana tem sido cada vez mais invocada nos últimos anos no âmbito do Direito (em contraposição ao quase total silêncio acerca dessa ideia antes da Segunda Guerra Mundial). Para tanto, far-se-á um breve histórico dessa concepção, tentando-se mesmo 'averiguar' se os homens sempre tiveram dignidade intrínseca. Em seguida, com espeque em autores como Ronald Dworkin e Richard Posner, tentar-se-á discutir sua aplicação judicial no âmbito do Neoconstitucionalismo, buscando-se apontar algumas de suas virtudes e limites. Por fim, analisar-se-á o papel da noção de dignidade humana na jurisprudência do TST acerca do binômio alcoolismo e trabalho.2
1. A bebida no Ocidente, o alcoolismo e o artigo 482, “f”, da CLT
Na primeira cena de Farrapo Humano, a câmera de Billy Wilder desliza por prédios e janelas da Nova York de 1945 de forma quase lânguida. Detém-se em uma janela em particular, não sem antes ter dito ao espectador que a história que ali começa poderia estar ocorrendo em qualquer outra.
Mas a janela em que a câmera se detém é a de Don Birman. Uma garrafa, presa a ela por um barbante, está em suspenso do lado de fora. Foi a maneira que Don encontrou para esconder o álcool do irmão, para saciar a sede tão logo esteja sozinho. Logo se vê que não é só a garrafa que está em suspenso. A vida de Don também está. Trata-se de um homem que, enfim, perdeu a crença em si. Mesmo a inabalável fé de Helen, a mulher que o ama, mais o exaspera do que o comove.
O título do filme de Billy Wilder em inglês, The lost weekend, menos dramático do que a versão brasileira, Farrapo humano, é mais exato em sua ironia: a película não trata de um fim de semana perdido, mas de uma vida quase perdida com a ajuda do álcool. No caso, a vida de Don, o escritor cuja inteligência e sensibilidade deram em nada e que vive, agora, às custas do irmão.
The lost weekend foi o primeiro filme de Hollywood a tratar o problema do alcoolismo de maneira menos moralista e com mais densidade humana. O que não quer dizer que seja um filme condescendente. Ele mostra bem as fraquezas e, por vezes, a mesquinhez de Don Birman, hipertrofiadas pela bebida. Mas mostra também que parte de sua autonomia dolorosamente se esvaiu: o álcool o escraviza, porque gera o esquecimento de que ele tanto precisa. É reconfortante e poderoso demais. Don tornou-se um homem sem muitas saídas, como incontáveis outros alcoolistas3.
O drama do alcoolismo, bem encenado no filme de Billy Wilder, por certo é tão antigo quanto a própria bebida alcoólica. A Grécia Antiga conheceu períodos de domesticação dos usos do vinho e dos cultos dionisíacos, períodos em que o consumo da bebida passou...
… a ser regido por uma noção de mistura com água, o que constitui um modelo de dieta temperada, em oposição ao vinho puro, visto como destemperado e até mesmo perigoso. Os gregos estipularam uma gradação do consumo equilibrado e do excesso alcoólico (CARNEIRO, 2010, p. 27).
Também na Roma Antiga houve tentativas de se regrar o consumo de álcool, inclusive períodos de proibição oficial das festas dedicadas ao deus Baco.
Ao longo da Idade Média, embora os maiores pensadores da Igreja Católica não tenham defendido a abstinência total do álcool, viam a embriaguez como “sinônimo de perda da razão, (...) que nos leva a cometer todos os pecados”. Embriagar-se, então, “seria tornar-se voluntariamente escravo do pecado e abdicar da razão” - e beber “intencionalmente para perder a razão” seria “pecado mortal” (CARNEIRO, 2010, p. 112).
Nesse sentido, era preciso que a bebida permitisse “‘sair da carne, permanecendo no corpo', como dizia Cassiano”; era preciso “domar, moderar, temperar as solicitações sensuais, mas não aboli-las”, pois com a “abolição da tentação, não haveria o mérito da resistência a ela” (CARNEIRO, 2010, p. 112).
Nos séculos que se seguiram ao fim da Baixa Idade Média, o uso da bebida alcoólica continuou a ter defensores e delatores fervorosos, as várias percepções do álcool foram sempre permeadas por contradições, por antagonismos irreconciliáveis. A bebida foi ora vista como substância capaz de reduzir um homem a sua animalidade, ora utilizada não apenas como diluente de medicamentos, mas como poderoso medicamento em si, para males que iam desde “humores ‘frios’” até “certos tipos de febre” (CARNEIRO, 2010, p. 168):
A medicina medieval e a moderna consideravam o álcool destilado um remédio, assim como fizera a medicina da Antiguidade em relação ao vinho. Apenas em 1915, o uísque e o conhaque foram excluídos da lista dos medicamentos da Farmacopeia dos Estados Unidos. Ainda no final do século XIX, muitas das teses apresentadas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro tratavam dos usos terapêuticos do vinho (CARNEIRO, 2010, p. 167).
Em diferentes lugares e em diferentes momentos, ao longo da história ocidental do uso do álcool, foram estabelecidas formas legítimas e não legítimas de se beber. A noção de embriaguez e, segundo Carneiro, mesmo a noção de vício são antigas. Mas é no século XIX que ocorre uma verdadeira “ontologização do mal”, com a “adoção de uma teoria orgânica da doença”. Nesse período foi fundada, em Londres, uma Society for the Study of Inebriety (depois Society for the Study of Addiction) e, naquele mesmo ano, um médico de nome Norman Kerr referia-se ao vício como “‘produto natural de uma organização nervosa depravada, debilitada ou defeituosa (...) indiscutivelmente uma doença, assim como a gota, a epilepsia ou a insanidade’” (CARNEIRO, 2010, pp. 188/189).
Também é no século XIX que o álcool passa a ser visto como uma degeneração hereditária ou uma “enfermidade de herança nervosa, cuja predisposição dependeria não só dos pais ou de outros antepassados terem sido alcoolistas, como também do risco de ter havido estado de embriaguez durante a concepção” (CARNEIRO, 2010, p. 186). Ainda naquele século foram criados os primeiros asilos destinados unicamente a alcoolistas.
No início do século XX, há uma mudança no que tange à percepção do alcoolismo: esse “provoca doenças orgânicas, mas não é uma doença orgânica”. Com a recusa do modelo orgânico oitocentista, o álcool passa a ser visto como uma “‘doença da vontade’”. Nesse novo modelo psicológico, o termo “adição” ganha destaque (CARNEIRO, 2010, pág. 190).
Atualmente, sabe-se que o álcool afeta...
...praticamente todas as células do corpo, inclusive aquelas do sistema nervoso central. Após exposição prolongada ao álcool, o cérebro torna-se depende. Beber firme e consistentemente, com o tempo, pode produzir dependência e sintomas de abstinência. Essa dependência física, no entanto, não é a única causa do alcoolismo. Para desenvolvê- lo, outros fatores usualmente entram em jogo, incluindo-se fatores biológicos, genéticos, culturais e psicológicos. (A.D.A.M., Inc., 2013)
Dessa maneira, as causas do alcoolismo, e das adições em geral, são ainda alvo de grandes discussões. Pesquisas sugerem que a doença está associada “a variações genéticas em 51 regiões cromossômicas diferentes”, mas o “Ambiente, a personalidade e fatores emocionais também têm um forte papel” (A.D.A.M., Inc., 2013).
Assim, há estudiosos que levam em consideração fatores biológicos e ambientais para a explicação do alcoolismo e outros vícios, afirmando, por exemplo, que a ocorrência de traumas infantis (violências, abusos e/ou negligências) acabam por modificar a biologia cerebral ainda em formação e tornam indivíduos mais suscetíveis a vícios (cf. In the realm of the hungry ghosts, do Dr. Gabor Maté). Há outros que ressaltam os aspectos ambientais e vêem a adição em termos de “cultura familiar”, passada de geração a geração – e não em termos de herança genética. Há também aqueles que têm destacado o papel da dopamina para explicar os vícios em geral, a depressão e a motivação, como o neurocientista Robert Sapolsky.
No que concerne aos efeitos do consumo abusivo e prolongado do álcool, é sabido que “pode afetar os neurônios (células nervosas), a química cerebral e a corrente sanguínea entre os lobos frontais do cérebro”. Os “neurotransmissores (mensageiros químicos do cérebro) também são afetados a longo prazo pelo uso do álcool” (A.D.A.M, Inc., 2013).
De todo modo, é apenas no início da segunda metade do século XX, em 1956, que o alcoolismo foi “cientificamente reconhecido como doença (...), conforme ato da Associação Médica Americana”. Somente “20 anos depois, em 1976, Grifith Edwards e Milton Gross caracterizaram e descreveram a chamada Síndrome de Dependência ao Álcool (DAS)” (PALMEIRA SOBRINHO, 2012, p. 171).
Em 1978, a Organização Mundial de Saúde substituiu o termo alcoolismo por síndrome de dependência alcoólica no Código Internacional de Doenças (CID-10), que está especificada na CID F 10.2 (PALMEIRA SOBRINHO, 2012, p. 172).
A OMS admite o alcoolismo como doença, considerando que “será doente o sujeito que fizer uso de substâncias entorpecentes por força da dependência química que vincula o usuário à substância” (VAZ, 2012, p. 18).
Há hoje, portanto, distinção entre o uso não dependente do álcool, dependência do álcool e abuso deste. Ou seja...
... uma pessoa pode fazer uso nocivo do álcool sem ser dependente deste. Assim, se um indivíduo, mesmo que não seja consumidor habitual de álcool, resolver dirigir embriagado, a sua atitude (...) não pode ser interpretada como efeito da dependência em relação à droga, mas deve ser vista como resultado de uma postura consciente quanto ao perigo provocado (PALMEIRA SOBRINHO, 2012, p. 172).
No que tange ao binômio álcool e trabalho, embora existam estudos médicos que afirmem “inexistir um reflexo automático do estágio de dependência física sobre o corpo e dos efeitos do ato de beber sobre as relações socioprofissionais do indivíduo”, de acordo com Zéu Palmeira Sobrinho, “em todas as relações estabelecidas entre o trabalhador e o álcool há sempre a probabilidade do risco” (PALMEIRA SOBRINHO, 2012, pp. 172. e 174).
Há que se ressaltar, aqui, aliás, que a relação entre bebida e trabalho tornou-se um verdadeiro problema pelo menos desde a Revolução Industrial em fins do século XVIII. Eric Hobsbawm já afirmou que a industrialização e a urbanização sem precedentes daquele período trouxeram em sua esteira verdadeiro “alcoolismo em massa” (HOBSBAWM, 1998).
Naquelas primeiras décadas de industrialismo, em que o trabalho era usualmente penoso e realizado às vezes por dezesseis horas seguidas, “alguns homens que se debruçaram sobre o problema, como Engels, viam a dependência do álcool não como uma inclinação viciosa do caráter, mas uma forma inevitável de consolo das agruras da exploração, por isso, quanto mais exaustivo, desgastante e perigoso o trabalho, maior a busca da bebida” (CARNEIRO, 2010, p. 211).
Engels chegou a citar um médico que, sobre o trabalho nas minas, afirmou que “‘a infâmia deste ofício’ se comprovava pelo fato de que ‘os mais fortes bebedores são (...) os que vivem mais tempo, porque faltam ao trabalho’” (CARNEIRO, 2010, p. 213).
Ante à epidemia do álcool dos séculos XVIII e XIX, muitas reformas coercitivas e medidas proibitivas passaram a ser intentadas pelos patrões e pelo Estado, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Não deixou de existir quem as denunciasse, como Ernest L. Abel, segundo o qual tais medidas eram “uma reação patronal e governamental contra as classes operárias, que usavam os espaços de consumo alcoólico como locais de sociabilidade”. Além disso, “se, de um lado, as bebidas podiam chegar a limitar a capacidade de trabalho e a produtividade (...), de outro eram um consolo e anestésico eficaz para ajudar uma parcela majoritária dos trabalhadores a suportar condições brutais de existência” (CARNEIRO, 2010, p. 182).
De qualquer forma, o álcool, no mundo do trabalho, era, com razão, um problema para os empregadores, pois afetava a produtividade dos empregados. Mas também era mal visto naquele contexto, pois estava relacionado à “vida nas tavernas”, à “fomentação de sindicalismo e rebeliões” (CARNEIRO, 2010, p. 204). Seu consumo foi, certamente, uma das causas para que “o controle da vida privada” dos trabalhadores se tornasse verdadeiro “princípio econômico”, de acordo com Henrique Carneiro.
Dentro da fábrica era preciso...
... aumentar sempre a produtividade do trabalho e o uso do álcool (e também, em menor grau, do tabaco) interfere no processo produtivo industrial. Fumar afeta a própria continuidade regular da produção, que deve ocupar incessantemente as mãos do operário, e o álcool perturba a capacidade de desempenho (CARNEIRO, 2010, p. 219).
Nesse contexto é que se pode entender o fordismo não apenas como bem-sucedido sistema de produção industrial, mas “estratégia moralizante” que, além “de controlar cronometricamente o tempo de trabalho, pretendia o controle da vida pessoal dos trabalhadores fora da fábrica” (CARNEIRO, 2010, p. 221). Ou seja, o fordismo foi também intervenção em todos os “aspectos da vida do operário, através de departamentos de sociologia da empresa, que investigavam em detalhe hábitos e comportamentos”. Os dois aspectos “mais evidentes na empreitada de controle comportamental do industrialismo foram a vida sexual e o consumo alcoólico dos trabalhadores” (CARNEIRO, 2010, p. 221).
Também o Estado, como já aventado, tentou colaborar para tal “controle comportamental”, produzindo legislação que visava proibir ou diminuir o consumo do álcool: nos EUA, a “primeira das leis contra as bebidas havia sido proclamada em 1847, no Estado do Maine, e durante mais de meio século desenrolou-se uma luta entre estados e cidades secas e úmidas”. Em 1736, o Gim Act taxa pesadamente a bebida na Inglaterra com o fito de inibir seu consumo, o que atingiu sobretudo os trabalhadores pobres (CARNEIRO, 2010, pp. 196. e 203).
No Brasil, houve algumas iniciativas legislativas que visavam restringir o consumo do álcool, como os projetos de lei “do deputado Juvenal Lamartine, em 1917, propondo triplicar os impostos sobre a cachaça e o vinho”, e do deputado “Plínio Marques, propondo, em 1921, a proibição do consumo de bebidas alcoólicas aos domingos e feriados” (CARNEIRO, 2010, p. 205).
No campo da legislação trabalhista, pode-se suscitar o artigo 482, “f”, da Consolidação das Leis do Trabalho, de 1º de maio de 1943, segundo o qual:
Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador: (...)
f) embriaguez habitual ou em serviço
Antes desse dispositivo, já “rezava a letra b do artigo 54 do Decreto nº 20.465, de 1º de outubro de 1931, ao tratar da Caixa de Aposentadoria e Pensões dos servidores públicos, que era falta grave a embriaguez habitual ou em serviço”, o mesmo preceituando a alínea “b” do artigo 90 do Decreto nº 22.872 de 1933, “ao criar regras sobre o Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Marítimos” (MARTINS, 2013, p. 86).
Ainda anteriormente a esses dispositivos citados por Sérgio P. Martins, o artigo 69 do Decreto 17.941/1927 já dispunha, em seu caput, que “Depois de dez anos de serviço efetivo, o ferroviário a que se refere o presente regulamento só poderá ser demitido no caso de falta grave...”, sendo que, em seu parágrafo primeiro, afirmava:
§ 1º Será considerada falta grave: (...)
c) embriaguez habitual ou em serviço
Pensa-se, aqui, na esteira de Henrique Carneiro, que esses dispositivos da nascente legislação trabalhista denotam o esforço estatal (ainda que limitado e tardio no Brasil) para se disciplinar e adequar comportamentos e hábitos dos trabalhadores ao mundo do trabalho industrial então nascente.
Aliás, Dorval de Lacerda assim já escreveu, sobre o citado art. 482, “f”, Consolidado:
... se presume, na inserção da embriaguez habitual no elenco faltoso, nem tanto um prejuízo da empresa e uma arma de defesa do empregador contra os perigos que oferece um ébrio habitual, embora momentaneamente (durante o serviço) sóbrio, mas uma ação indireta do Estado contra a propagação do alcoolismo (...). Não é de hoje a ação do Estado contra o alcoolismo ou qualquer espécie de vício que conduza à embriaguez (...). Não será, pois, acusado de rigorismo o legislador que, por todos os meios e modos, procure atenuar o terrível mal; não sendo, consequentemente, sem propósito e oportunidade a ação nesse campo vasto e propício das relações de trabalho. (LACERDA, 1976, apud VAZ, 2012, p. 21. - grifei)
Ou seja, tanto o dispositivo Consolidado (art. 482, “f”, da CLT), quanto os dispositivos anteriores que certamente lhe deram inspiração podem ser entendidos, também, como tributários desse esforço de se disciplinar mentes e corações para o mundo do trabalho industrial, na medida em que não punem o consumo moderado da bebida, mas punem um hábito (“embriaguez habitual”) e um comportamento (“embriaguez em serviço”) considerados desviantes, capazes de interferir com a produção.
É nesse sentido que o industrialismo “não se detém na forma específica da produção e da exploração capitalistas, mas adquire uma espécie de autonomia como motor civilizatório” (CARNEIRO, 2010, p. 222).
A bebida alcoólica, portanto, foi naturalmente alvo de interdições e proibições ao longo de sua história no Ocidente, mas com o advento do capitalismo industrial a necessidade de se disciplinar seu consumo alcançou proporções inéditas.
Não é desarrazoado, portanto, afirmar que o art. 482, “f”, da CLT, bem como os mencionados dispositivos de edição anterior podem ser explicados pelo processo de centralização do trabalho na vida dos indivíduos - processo que começou com o advento da Revolução Industrial e que modificaria profundamente a relação entre o homem e seu trabalho, tal qual existente em épocas anteriores.
No entanto, há que se fazer duas observações: não se concebe, aqui, o alcoolismo apenas como um comportamento desviante ou supostamente desviante que teve de ser (ou deve ser) erradicado, em nome da produção industrial ou de um mundo do trabalho cada vez mais absorvente / exigente.
Houve - bem ou mal - um processo histórico complexo que implicou a disciplinarização / adequação de comportamentos, hábitos, corpos e mentes em razão das necessidades do capitalismo industrial. Contudo, a par de seu conteúdo algo desviante, especialmente no mundo do trabalho, o alcoolismo, como já decidiu a OMS, também é uma doença, que inclusive gera bastante sofrimento.
O combate ao alcoolismo no mundo do trabalho nem sempre pode ser visto como mera afronta às liberdades do indivíduo, nem o conhecimento científico que se tem da doença deve ser descartado como 'instrumento' que, em última análise, visaria apenas ‘categorizar’ pessoas. Há, afinal, indivíduos que sofrem em razão do vício – e o sofrimento é real, não se trata apenas de uma construção teórica.
Ademais, o binômio álcool e trabalho, infelizmente, já gerou e gera graves acidentes e, a depender das atividades exercidas, a bebida pode colocar em risco a saúde não apenas do empregado que bebe, como de colegas, clientes da empresa, etc.
A segunda observação que se deve fazer é que a jurisprudência trabalhista já há algum tempo tem visto com bastante reserva a aplicação indiscriminada do art. 482, f, da CLT, pelo menos no que tange à embriaguez habitual.
Ou seja, a maior parte dos tribunais e, certamente, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) têm entendido, reiteradas vezes, que o empregado alcoolista - dependente da substância - não pode ser dispensado com fundamento no citado art. 482, “f”, Consolidado.
Em geral, essas decisões têm se pautado no fato de que o alcoolismo é considerado como doença pela OMS e a dispensa de um empregado doente atenta, em última análise, contra a sua dignidade humana:
É dever do empregador tratar com dignidade o alcoolista empregado, ou seja, ao invés de rescindir o contrato de trabalho deste, incumbe ao patrão encaminhar à Previdência Social o empregado acometido de alcoolismo para efetuar o tratamento ou possibilitar a concessão do benefício cabível, sob pena de vir a responder por danos morais (PALMEIRA SOBRINHO, 2012, p. 182).
Percebe-se, quanto a esses casos de embriaguez habitual, a aplicação de um princípio em detrimento de uma norma legal. Pode-se falar, ainda, na existência de dois processos subjacentes que ficam visíveis e se contrapõem nesse posicionamento preponderante dos tribunais trabalhistas: um relacionado à disciplinarização / adequação de comportamentos e hábitos, exigidas pelo mundo do trabalho, sobretudo no contexto do capitalismo industrial, e que é capaz de explicar, ao menos em parte, a existência de dispositivos legais como o art. 482, “f”, da CLT; outro que culminou no recente uso judicial da noção de dignidade humana em detrimento de dispositivos como o citado art. 482, “f”, Consolidado - processo que será discutido posteriormente.
De todo modo, temos vigente um dispositivo legal que preceitua que a embriaguez habitual é hipótese de justa causa e, em contraposição, o fortalecimento de uma jurisprudência que, fundamentada (explicitamente ou não) no princípio da dignidade humana, deixa de aplicá-lo - ao menos nos casos em que a dependência resta configurada.
No entanto, há quem discorde, ao menos em parte, desse entendimento jurisprudencial. Sérgio Pinto Martins afirma que a embriaguez habitual ou crônica “está muito mais para uma doença do empregado, que necessita de tratamento, do que para justa causa. Entretanto, existe a previsão da lei” (MARTINS, 2013, p. 97. – grifo meu).
O referido jurista, aliás, afirma que o “empregador, com a dispensa, não está impedindo o empregado de perceber o benefício previdenciário, que independe da rescisão do contrato de trabalho, mas da manutenção da qualidade de segurado e de período de carência” (MARTINS, 2013, pp. 96/97). Acrescenta que a “doença não seria um problema do empregador, mas do Estado” (MARTINS, 2013, p. 95).
Essas considerações de Sérgio P. Martins são razoáveis e são comumente suscitadas pelos que se posicionam contrariamente à não aplicação do art. 482, “f”, da CLT.
Parece justo que um empregado alcoolista encontre apoio para enfrentar o alcoolismo na empresa em que trabalha, ao invés de ser dispensado por justa causa (o que, muitas vezes, pode ser a “gota d'água”, pode implicar sua definitiva ruína pessoal4 ).
Entretanto, é justo que o empregador tenha de mantê-lo em seu quadro, mesmo que suspenso o contrato, preterindo um candidato produtivo que poderia ocupar a vaga? A jurisprudência majoritária já se posicionou, como se disse, no sentido de que deve prevalecer o princípio da dignidade humana e não a letra da lei nesses casos.
Mas o que se quer aqui é justamente discutir esse posicionamento dos tribunais trabalhistas, em especial do TST. Tentar-se-á demonstrar sua validade e suas fragilidades.
Para tanto, contudo, julga-se necessário fazer um ligeiro histórico da noção de dignidade humana.