6) Economicidade e eficiência como princípios constitucionais legitimadores da transação tributária
Ao explorar a presença e a funcionalidade do instituto da transação no Código Tributário Nacional, deparamo-nos com dois princípios constitucionais lastradores do modo operativo estatal, sobremaneira no momento em que o assunto é tributação, quais sejam os da “legalidade” e o da “indisponibilidade”. Estes, além de figurarem como obstáculo a essa prática negocial, delineiam toda sua aplicação, representando diretrizes maiores a serem seguidas pelo Fisco e pelo Judiciário, assumindo, portanto, ares de “freios” a toda e qualquer premente tentativa de efetivação de um caminho alternativo ao usualmente empregado nas cobranças e na extinção dos créditos fiscais.
Contudo, provado que é possível sim se falar em transação tributária, e tendo-se superado os óbices envolvidos, com a explicação dos parâmetros correlatos à matéria, entendemos que é alcançado o nível necessário para enveredarmos no estudo de outros dois princípios, também presentes na Constituição Federal, os quais, quer direta ou indiretamente, estão envolvidos na temática em voga.
André Gide dizia que “posso duvidar da realidade de tudo, mas não da realidade da minha dúvida” (BARELLI; PENNACCHIETTI, 2008, p.173). E a questão se resume no seguinte: por que deveríamos adotar um sistema de transação para discussão do passivo fiscal da União? Aí é que insurgem, no seio dos ditames da Constituição, os primados da “economicidade” e da “eficiência”, a reivindicar a adoção de atitudes que encaminhem nosso país para o futuro, em termos do aperfeiçoamento e da contínua melhora da Administração Pública.
O que serve ao indivíduo, na maioria das vezes, não atende aos preceitos do Estado. É um fato. São planos absolutamente divergentes. Haja vista que é na promoção da atividade econômica que podemos vislumbrar o quanto as finalidades das esferas privada e pública destoam uma da outra. O cidadão, em seu agir singular, procura sempre a obtenção da lucratividade e da liquidez, reunindo, nesse processo, ativos financeiros e bens em proveito próprio, em detrimento de todos os demais. Já o Poder Público, em quaisquer de suas ações ou atividades, opera de modo diferente, primando pelo que é precioso e conveniente para a sociedade, erigindo o ambiente propício ao alcance de uma vasta gama de casos de bem-estar, distribuindo as riquezas e promovendo o desenvolvimento da nação (FONSECA, 2005).
Desse paradoxo existencial é que sobressaí o choque entre o que se pretende valorar, se o âmbito privado, com a grande “quantidade” de episódios de satisfação particular, face à plenitude de conquistas que cada um de nós pode alcançar, ou a esfera pública, com a destinação de esforços à “qualidade” de vida da coletividade, possibilitando a realização das expectativas do maior número possível de pessoas. E isso não é tão simples de se equacionar ou resolver, como quer que venhamos a pensar a esse respeito (FONSECA, 2005).
Na doutrina, é João Bosco Leopoldino da Fonseca (2005, p.35-36) quem define o princípio da economicidade, ao descrever que “é o critério que condiciona as escolhas que o mercado ou o Estado, ao regular a atividade econômica, devem fazer constantemente, de tal sorte que o resultado final seja sempre mais vantajoso que os custos sociais envolvidos”. No pensar de De Plácido e Silva (2008, p.507), “economicidade é a relação entre custo e benefício a ser observado na atividade pública, posta como princípio, para o controle da Administração Pública”.
No rol das opções abertas, a “quantidade” e a “qualidade” interferem, e muito, nas decisões governamentais. É da ponderação a ser feita, dentre os julgamentos possíveis, que sobressaí a melhor escolha, aquela que pode se tornar factível, conduzindo ao ato que deve ser praticado, em benefício da sociedade, e com economia para o erário. As ações desse porte não podem fixar o olhar somente no preço, mas igualmente tem que velar pelo resultado final, o que é um dos aspectos que elevam a primazia da relação estabelecida entre economia e direito.
Procurando, na nossa Lei Maior, pela palavra “economicidade”, a pesquisa resulta em apenas um único resultado, contido em seu artigo 70. Carreia esse princípio em seu texto como força motriz do Estado brasileiro para o cumprimento de suas atribuições. E é na gestão da máquina pública que se vê o quão necessária é a observância disso. Ao adquirir, comprar, investir, é este um importante regramento, visto que os recursos predispostos a cobrir os gastos com serviços públicos e infraestrutura, oriundos da arrecadação advinda da população, encerra patrimônio público essencial aos projetos nacionais.
Logo, a transação, no âmbito tributário, a partir do instante em que é devidamente instituída, atendendo à legalidade, e em acatamento aos limites da indisponibilidade, contribui positivamente para que o Poder Público chegue mais próximo a esse ideal, em que impera a “economicidade”, na medida em que comporta o emprego de uma ferramenta válida na redução dos custos envolvidos na execução fiscal administrativa e judicial.
Mas não apenas se reduz a litigiosidade, propiciando o descongestionamento dessa fase processual, como também se permissiona o recebimento do numerário a que o Estado tem direito. Resulta, após a explicação, o entendimento de que esse princípio figura como legitimador da mudança legislativa apta a regulamentar a prática transacional na área tributária, e a posterior adoção de um juízo arbitral, contribuindo para a solução dos problemas inerentes ao contencioso fiscal.
Entretanto, isso não é tudo, haja vista que, ao lado da economicidade, outro princípio, também presente na Constituição Federal, prevalece na opção pela transação na seara tributária, e este é o relacionado à “eficiência” do Poder Público.
De tempos em tempos, nosso país vivencia reformas administrativas destinadas a compatibilizar a máquina estatal às exigências e mudanças erigidas na contemporaneidade. Esforço legislativo esse que se destina a equiparar as diversas áreas do setor público aos reclames sociais e econômicos. Nesse processo, a Lei Maior tem seu texto adaptado às imposições da pós-modernidade global. Foi assim que sucedeu com a ascensão da “eficiência” a paradigma conceitual e, por que não dizer, existencial, do Brasil de uma nova era.
O Dicionário Houaiss conceitua “eficiência” como sendo a “capacidade de atingir o efeito esperado, da forma desejada” (INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS, 2004, p.265). Contudo, é José Afonso da Silva (2009, p.671) quem bem a define, ao falar que: “Eficiência não é um conceito jurídico, mas econômico; não qualifica normas; qualifica atividades. Numa ideia muito geral, ‘eficiência’ significa fazer acontecer com racionalidade, o que implica medir os custos que a satisfação das necessidades públicas importam em relação ao grau de utilidade alcançado”.
E foi no vácuo de algo que pudesse vir a orientar o Poder Público para a consecução dos melhores resultados, com os meios escassos de que se dispõe, e ao menor custo, que a Emenda Constitucional nº 19, de 1998, modificou o artigo 37 da Carta Magna, inserindo, em seu caput, a “eficiência” como mais um dos princípios que a Administração Pública deve observar em suas ações e atividades.
José dos Santos Carvalho Filho (2010) relata que, no projeto dessa alteração, à exposição de motivos, o legislador equiparou eficiência à “qualidade do serviço prestado”. Posicionamento correto, visto que a pretensão do governo, à época, fora justamente a de assegurar maiores direitos aos cidadãos. E esse autor muito bem chama a atenção para o fato de que “não é difícil perceber que a inserção desse princípio revela o descontentamento da sociedade diante de sua antiga impotência para lutar contra a deficiente prestação de tantos serviços públicos, que incontáveis prejuízos já causou aos usuários” (CARVALHO FILHO, 2010, p.31). Logo, se “exige que a atividade administrativa seja exercida com presteza, perfeição e rendimento funcional. É o mais moderno princípio da função administrativa [...]” (MEIRELLES, 2009, p.98). Não é a toa que é “conhecido entre os italianos como ‘dever de boa administração’” (GASPARINI, 2007, p.22).
Di Pietro (2008, p.79) nos leciona:
O princípio da eficiência apresenta, na realidade, dois aspectos: pode ser considerado em relação ao modo de atuação do agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atribuições, para lograr os melhores resultados; e em relação ao modo de organizar, estruturar, disciplinar a Administração Pública, também com o mesmo objetivo de alcançar os melhores resultados na prestação do serviço público.
Moraes (2007, p.310) é categórico na afirmativa de que “o administrador público precisa ser ‘eficiente’, ou seja, deve ser aquele que produz o efeito desejado, que dá bom resultado”, garantindo-se a rentabilidade social, ou seja, o retorno de tão altas expectativas coletivas. Até porque “a razão de Estado não deve se opor ao estado da razão” (Carlos V. BARELLI; PENNACCHIETTI, 2001, p.620). Muito embora Jessé Torres Pereira Júnior (1999, p.43) nos lembre de que “a Administração Pública não será eficiente ou ineficiente conforme haja ou não o princípio escrito na Constituição. O princípio existe na ordem jurídico-administrativa de qualquer Estado de Direito, quer figure ou não no texto constitucional”.
Marçal Justen Filho (2012, p.447) é quem põe em relevo que “não bastam honestidade e boas intenções para a validação de atos administrativos. Exige-se a solução mais conveniente e eficiente sob o ponto de vista dos recursos públicos”. Na visão desse autor, toda atividade administrativa envolve uma relação sujeitável ao enfoque custo-benefício, havendo uma espécie de dever de eficiência gerencial que recai sobre o agente público (JUSTEN FILHO, 2012).
Porém, é Severini (2010) quem aclara ao enfatizar que uma atuação da administração pública é denominada “ineficiente” à medida que se apresenta em desconformidade com o princípio da eficiência. É simples assim. “Quando se mostra possível aumentar o grau de satisfação do interesse público sem que isso afronte os interesses privados dos administrados ou quando for possível aumentar o atendimento aos interesses dos administrados (ou reduzir a afronta a esses) sem que isso implique redução do grau de proveito da coletividade (interesse público)” (SEVERINI, 2010, p.197).
Por sinal, “na medida em que a realização da transação, no caso concreto, mostre-se mais eficiente instrumento ao alcance do bem comum que o exercício do poder de tributar, e desde que atendidos os requisitos legais aplicáveis, entendemos dever o agente administrativo propor ao contribuinte a adoção de tal alternativa” (SEVERINI, 2010, p.200). E a adoção de uma lei que viesse a regulamentar essa prática surtiria o efeito preconizado, diminuindo custos, solucionando conflitos e beneficiando a sociedade. Afinal “os princípios da boa governança transformam não somente as relações entre o legislativo, o judiciário e a administração, mas o bom funcionamento da máquina governamental como um todo” (FONSECA, 2005, p.67).
De posse desses posicionamentos, a transação de interesses, a partir do instante que se mostra apta a encerrar a execução litigiosa de um crédito tributário, atende plenamente aos princípios da economicidade e da eficiência da Administração Pública, haja vista que resolve dois problemas: a) propicia ao Estado receber o que lhe é de direito, e que necessita para cumprir suas atribuições, e b) pacifica a relação jurídico-tributária, concluindo, com êxito, demanda que onera ambas as partes envolvidas, satisfazendo ao Fisco e ao contribuinte. É a transação tributária, portanto, meio econômico e eficiente à resolução de controvérsias fiscais e à sensível melhoria na arrecadação.
7) A transação tributária é parte da solução ou do problema?
Não obstante ao que tudo o que anteriormente se falou, advertência há que ser feita. A transação em matéria tributária se aplica alternativamente, nunca podendo ser tida como principal e única forma de solucionar controvérsias fiscais. Dada a excepcionalidade da prática, e constatado que a regra é o hodierno pagamento dos deveres fiscais, caso a Administração viesse a operar em sentido oposto, ou seja, resolvendo tudo por intermédio de negociações ou concessões, se correria o risco potencial de estimular a inadimplência dos contribuintes, uma vez que a quitação automática e voluntária em nada seria atrativa.
Explica-se: haveria incentivo indireto para que, antes de pagar, a pessoa procurasse transacionar a respeito do valor devido. E se a opção por isso lhe trouxesse algum prejuízo, seria, no mínimo, a obrigação de pagar o que a lei já determinava desde o início do processo. Um perigo para a conservação e entrega do numerário a que a Fazenda faz jus e merece receber.
Saraiva Filho (SARAIVA FILHO; GUIMARÃES, 2008, p.65) desenvolve o excêntrico pensamento:
Com isto, a lei estaria, perigosamente infirmada. A definição de tributo, do artigo 3º do CTN, se afastaria da concepção que a Constituição tem em relação a ele. Passaria o conceito de tributo a ser lido como: “Toda prestação pecuniária voluntária, em moeda, bens ou serviços, que não constitua sanção de ato lícito, como mero indicativo legal, mas decorrente imediatamente da negociação travada entre o Fisco e o contribuinte, e cobrado mediante atividade administrativa plenamente discricionária.
Por esta razão, a modalidade transacional de créditos tributários vencidos, não pagos, e em execução, deve ser vista com cuidado. Não é pelo mero reconhecimento da presença e da validade dessa prática no Código Tributário Nacional, confirmação essa que encerra etapa crucial à defesa do juízo arbitral na seara fiscal, que este trabalho de pesquisa permanecerá silente quanto aos riscos de uma irrestrita adoção de “negociatas” passíveis de serem concretizadas com direito público líquido e certo. Na colocação de Galinari (2006), é a transação uma forma de se personalizar o caso. Contudo, há que existir limites ao se tratar desigualmente os desiguais. Se pode ser considerado um crime continuar com um formato de processo executório fiscal ineficiente, pior é abrir mão do que se tem a receber. Não há dúvida disso.
Perseguindo esse assunto, três pontos requerem menção. Primeiramente, convém alertar que, da mesma forma que o instituto da transação não se confunde com parcelamento, aquele também não pode importar em renúncia fiscal. Hugo de Brito Machado assegura que o § 1º, do artigo 14, da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000), não se aplica à prática transacional tributária (SARAIVA FILHO; GUIMARÃES, 2008).
A abrangência do conceito de “renúncia fiscal” “compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação da base de cálculo que implique discriminação de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado” (§ 1º, do artigo 14, Lei de Responsabilidade Fiscal). Não se acha incluída nessa listagem a transação de interesse público, quer literal, quer na expressão “outros benefícios”. Em outras palavras, a transação de crédito tributário não está arrolada como causas de renúncia fiscal, aptas a deflagrar responsabilização estatal pelo acordo celebrado em desfavor do erário público. Mas destaque-se que isso só se dá dessa forma se o direito transacionado estiver dentro dos preceitos legais que instituir a transação (SARAIVA FILHO; GUIMARÃES, 2008).
Tiago Vasconcelos Severini (2010) expõe que a finalidade da Lei de Responsabilidade Fiscal é evitar que o agente público, no momento em que negocia com o particular, venha a transpassar a esfera da indisponibilidade do bem público, e, desse modo, venha a agir de maneira ineficiente. Desenvolve ele raciocínio diferente, mencionando que os empecilhos à renúncia de receita são exatamente os mesmos que permissionam a transação em matéria tributária. Daí que “a realização de transação em matéria tributária, adstrita aos limites impostos por seus requisitos de validade, quais sejam, aqueles delimitadores do âmbito de disponibilidade do poder de tributar [...], não implica qualquer violação à Lei de Responsabilidade Fiscal” (SEVERINI, 2010, p.202).
Ainda merece atenção a excessiva concentração de faculdades nas “mãos” da Administração Fazendária, a qual teria mais poder que o próprio Judiciário, “que, como é cediço, não pode agir, na prestação jurisdicional, como legislador positivo, mas só negativo” (SARAIVA FILHO; GUIMARÃES, 2008, p.73). Maiores atribuições ao Fisco, com extensa discricionariedade para transacionar sobre créditos tributários e firmar acordos que importassem em conclusão de litígios administrativos ou judiciais, sintetizaria “uma espécie de delegação legislativa, praticamente em branco” (SARAIVA FILHO; GUIMARÃES, 2008, p.73). Desta feita, as ressalvas precisam ser levadas em consideração nesse tópico, porquanto o Estado não pode sacrificar-se além do legalmente possível e do moralmente aceitável.
Em um segundo plano, é preciso mencionar que uma transação tributária irrestrita, universal, e sem marcações limítrofes bem delineadas pode ser igualmente nociva ao premente quadro de congestionamento e de baixa celeridade do processo de execução fiscal. Teria esta que ser realizada em pleno respeito à legislação, dado o risco de posteriores questionamentos judiciais poderem ser suscitados, caso decorra prejuízo para qualquer das partes. A precaução, nesse caso, haveria que ser redobrada para que o instituto não fosse desvirtuado em sua essência, com prejuízo para o Estado, para os contribuintes diretamente envolvidos, e para a sociedade como um todo, com o maior inchaço do Judiciário, dado o volume de ações a questionar sua efetivação.
Abrindo um terceiro viés de raciocínio, pode, também, o sujeito passivo, enquanto devedor em potencial e contumaz, inaugurar uma nova e arriscada fase de litigiosidade, enxergando, na persistência da situação de inadimplência, uma chance de pagar o que deve, quando quiser, ou como bem entender, e em melhores condições. Aconteceria que ao contribuinte nada custaria exaurir o lapso máximo de tempo da etapa administrativa, para, depois, postergar para além de qualquer limite imaginável a fase judicial, esquivando-se e aproveitando-se dos prazos e recursos que faria direito exercer, enquanto na posição de réu, com o único intuito de consumir a média dos oito anos auferidos pelo IPEA, sem contar os quatro anos “perdidos” perante a Fazenda Pública. Somente, então, com a resistência minada, e sem ter mais subterfúgios legais a empregar, resolveria aquele abrir-se ao diálogo, utilizando-se de uma lei que lhe faculte a aderência a uma transação de interesses com o Fisco, pagando e concluindo a demanda, com relativo desconto no montante total, gozando, ainda, de eventuais benefícios e facilidades asseguradas pela legislação pertinente. Sem receio de afirmar, poder-se-ia abrir, permanentemente, com a frequência de atitudes desse porte, as vias para uma outra oportunidade de rediscussões sobre os valores devidos e não pagos. Uma aberração jurídica nociva à arrecadação do Estado e capaz de distorcer completamente os fins precípuos da prática transacional.
O descrito no parágrafo acima não seria tão difícil assim de ocorrer. Das estatísticas apresentadas ao capítulo 3, denota-se, claramente, que o problema da fase executória fiscal, na Justiça Federal, tem causas diversas, as quais abrangem aspectos diretamente relacionados à ritualização de procedimentos contidos na Lei de Execução Fiscal, passando pelo tempo excessivo de certas fases judiciais, pelo congestionamento de ações pendentes de citação, pela ineficácia de providências simples, pela má gestão de recursos humanos, chegando até a completa distância entre os valores cobrados e os efetivamente carreados aos cofres públicos. É a junção desses problemas que levou a execução fiscal a tornar-se verdadeiro dilema ao pleno funcionamento do Judiciário nacional.
Dessa maneira, ao incutir na mente do contribuinte que a transação de dívidas fiscais seria um direito a ele atribuído, uma faculdade a ser exercida diante de uma demanda executória, tender-se-ia a agravar, para além do aceitável, a crise nessa órbita. Pois, certo da impunidade, uma vez que o componente pedagógico da tributação restaria afastado, o contribuinte não mediria esforços em ganhar tempo, levando ao crescimento exponencial do problema do congestionamento dessas ações.
Embora o que acabara exposto já seja deveras prejudicial, também podemos nos deparar com a figura da imposição de condições. Cumpre apenas pensar que, a Administração Fazendária, diante de um contribuinte devedor, na busca por abreviar o tempo da prestação jurisdicional, pode vir a querer ditar o que convém ao Estado, negociando em uma “via de mão única”, com restrição a concessões, levando ao desaparecimento do caractere identificante de qualquer transação, consoante a lei civil: consonância de vontades. A natureza contratual, com a liberdade tolhida, viria a desaparecer, com o negócio apenas interessando ao ente público, em evidente prejuízo ao contribuinte.
Nesse caleidoscópio, ter-se-á que ponderar que o Estado nunca perde, e que a abertura à cessão de direitos pode também conduzir, indiretamente, a uma tributação mais pesada em relação aos que não foram beneficiados com tal situação. Este seria um efeito colateral, dentre muitos outros, uma vez que, ao resolver os problemas da execução fiscal, o ente público visaria compensar a diminuição de receita com os acordos firmados, elevando as alíquotas de tributos ou reforçando a fiscalização. De toda forma, a coletividade é que acabaria arcando com o “peso” do novo instituto transacional do crédito tributário, em detrimento da minoria que dele se utilizasse.
Por tudo isso, a lei complementar geral que venha a autorizar a transação tributária para a Fazenda Nacional deve ser bem pensada e redigida, de maneira a abarcar e prevenir todos esses casos e efeitos negativos, mas completamente inerentes à prática, quando mal conduzida e efetivada.
Acerca desse risco, Cledson Moreira Galinari (2006) antevê que:
Entretanto, forçoso reconhecer que na transação tributária não se renuncia ao crédito, mas à incerteza, que é substituída pelo consenso. O que é incompatível com este instituto é a certeza da arrecadação independente dele. A transação tributária deve ter lugar, portanto, quando o crédito, ou seu recebimento, de outro modo forem incertos. Pois nesses casos o consentimento reduz significativamente os riscos. Quando, porém, estes riscos não são consideráveis, não deve haver transação. Em termos práticos, não há falar em transação se o lançamento se encontra baseado em fatos robustamente comprovados e dificilmente contrastáveis, e em entendimento dominante na Jurisprudência, ou em disposição literal de lei. Ela deve ter lugar quando o crédito é duvidoso, baseado em presunções passíveis de contraprova factível, ou em fatos apenas parcial ou fracamente inferidos, e/ou em entendimento que contraria parcela significativa da Jurisprudência, ou que requer esforço de argumentação para convencer de sua legalidade. Enfim, a administração tributária, dado o destino de grande parcela dos lançamentos que efetua, pode trocar a incerteza de um crédito maior, por um crédito menor, porém certo. Este último é irrenunciável, enquanto aquele pode ser transacionado.
Logo, mediante o exposto, alcançamos o entendimento de que a transação tributária, para que ganhe vida e persista inquebrantável, deve velar pelos seguintes pontos: a) mediante prévia autorização legal, haja vista a necessidade de amplo disciplinamento do que pode ou não ser negociado e pactuado pela autoridade competente, perante critérios e limites estabelecidos, em pleno respeito aos princípios da legalidade e da indisponibilidade do interesse público, até porque tal dispositivo, não tem nenhuma outra limitação, senão de natureza legislativa; b) no que diz respeito ao discricionarismo administrativo empregado, este terá, obrigatoriamente, de encontrar previsão normativa estrita quanto às condições, requisitos, formas de exercício, conveniências, oportunidades e consequências do seu exercício, minando a liberdade da Fazenda e quaisquer rediscussões posteriores sobre o acordo realizado; c) concretiza-se em face de um conflito instaurado, afastando-se a modalidade preventiva, ou seja, somente pode ser celebrada para terminar litígio administrativo ou judicial em curso; e d) o principal efeito da transação é o extintivo, quando efetiva e totalmente observada, o que retira o nome do contribuinte devedor do rol da dívida ativa e, consequentemente, impede o prosseguimento da execução fiscal, até como garantia de segurança jurídica, impedindo ulteriores rediscussões (DIFINI, 2008; MARTINS, 2007; SARAIVA FILHO; GUIMARÃES, 2008; MACHADO, 2010).
André Martins de Andrade recorda que “a transação em matéria tributária, há longo tempo utilizada pelo fisco dos países economicamente mais desenvolvidos, sempre constituiu tema delicado no âmbito dos países com menor grau de desenvolvimento” (SARAIVA FILHO; GUIMARÃES, 2008, p.365). Quando se observa a tributação, sob o ângulo do crescimento econômico, é fácil constatar que o atingimento de um patamar satisfatório de bem estar coletivo não pode fugir à equidade e à eficiência na atuação da Administração Fazendária.
Cobrar o que o Estado tem direito, consoante regras claras e justas, mas, sobremaneira, eficazes e céleres, integra os esforços para a construção de um cotidiano jurídico dotado das requeridas equidade e eficiência. Enfim, “a transposição ao Direito Público de um instituto nascido e desenvolvido no âmbito do Direito Civil pressupõe a existência de um marco civilizatório em relação ao Estado Democrático de Direito” (SARAIVA FILHO; GUIMARÃES, 2008, p.365). Economias pungentes têm mais recursos para evitar desvios de finalidade e combater eventuais malefícios oriundos de distorções decorrentes do emprego inadequado do instituto da transação tributária, ao passo que países pobres, ou com uma cultura jurídica não tão fortalecida, podem vislumbrar os efeitos nocivos desse sistema de negociação, com problemas variados, como corrupção e perda de recursos.
Mas, de tudo que fora discutido, chega-se à conclusão de que a transação de questões envolvendo tributos e deveres fiscais representa forma sofisticada de convivência entre as partes, na medida em que o alcance da pacificação social é muito mais visível no diálogo que na imposição. Regina Helena Costa (2009, p.265) reconhece que é “autêntico instrumento de praticabilidade tributária, por vezes a transação revelar-se-á mais vantajosa ao interesse público do que o prolongamento ou a eternização do conflito”.
Portanto, em nosso entendimento, integra ele o rol das soluções, e não dos problemas, se bem que é necessária cautela em sua adoção, até porque persistir um modelo que não funciona refoge a qualquer lógica. Custoso e demorado, o processo de execução fiscal, erigido pela Lei nº 6.830/1980, não atende mais às expectativas, quer de contribuintes, quer do Fisco, tampouco se enquadra aos parâmetros da modernidade legal, onde o fator tempo se faz presente.
A crise na jurisdição e as dificuldades vivenciadas no sistema tributário nacional conduzem a sociedade a clamar pela repaginação do modo como são tratados os problemas fiscais. A transação de controvérsias desse tipo, no instante em que o litígio não se revele economicamente viável e, portanto, inapto a satisfazer ambas as partes, parece uma saída que o Estado tem o dever de pensar em adotar no cumprimento de seu mister em arrecadar mais e melhor.
Por fim, o estudo “Brasil 2022” arquiteta que, ao completar 200 anos de independência, em nosso país, “o sistema tributário cumprirá sua função de forma progressiva, fazendo com que a contribuição de cada um corresponda à sua capacidade econômica. O Brasil em 2022 terá deixado de ser um dos países mais desiguais do mundo” (BRASIL, 2010a, P.59). Será apenas um sonho? Cremos que não. E o aperfeiçoamento das formas arrecadatórias e de cobrança do crédito tributário integra esse esforço.