A entrada de aluno em uma universidade é um momento marcante para a sua vida. A partir desse momento o discente irá especializar cada vez mais, aprenderá e reaprenderá conceitos, centenas deles, que, de acordo com algumas escolas científicas, facilitarão o uso do direito em todos os âmbitos, ora a linguagem natural (mais um conceito aprendido na faculdade) ou linguagem comum seria algo inviável perante um melhor e mais eficiente uso da ciência jurídica, esta forma de conhecimento necessitaria de termos que reduzissem e facilitassem o seu procedimento[1]. Tais pensadores tem razão no que se refere a facilitação e celeridade que estes conceitos propiciam ao discurso jurídico, conceitos como capacidade, pessoa jurídica, tipo penal e bem jurídico proporcionam uma maior rapidez no discurso legal. Todavia, deve-se atentar para uma consequência desagradável deste grande número de conceituações geradas pela nossa tradição jurídica, o desentendimento de grande parte da população brasileira no que se refere ao seu próprio direito.
Apesar destes problemas a conceituação se mantem forte em todo o ramo do conhecimento, o que, diga-se, é algo necessário para a ciência como um todo. Após um determinado aprofundamento em uma forma de estudo a transmissão de ideias se torna não só difícil mas também desconfortável se utilizada de outra forma de linguagem que não seja a conceitual. Tentar explicar a “capacidade” de uma determinada “pessoa” sem a utilização do conceito de “personalidade” não é uma tarefa cômoda. Porém deve-se lembrar que o direito foge a algumas regras se comparado a outras ciências. Ora, diferentemente de outras formas de conhecimento, o direito influencia diretamente todos os dias a sociedade, mesmo que em estado letárgico, ou seja, mesmo que seja apenas com o poder de sanção. Exemplificarei, quando determinado indivíduo observa uma lombada eletrônica a frente e diminui a velocidade do automóvel que está dirigindo, com receio de receber uma multa, ele o faz devido a influência que a norma, logo o direito, possui em suas decisões.
O problema é que nem sempre as normas são tão claras quanto as de trânsito, que possibilitam a qualquer um interpreta-las e consequentemente entende-las. Muitas normas, pelo contrário, são tão articuladas e fundamentadas em complexos conceitos jurídicos que seu entendimento continua sendo um mistério para um aluno da graduação em direito, e é aí que reside o perigo. Sabemos que nosso sistema judiciário não é dos melhores, e, adicionada a esta incapacidade procedimental se une a incompreensão da legislação por parte do leigo, e pior, a proposital tentativa de alguns juristas de demonstrarem (descaradamente) que o réu é incapaz de compreender tal linguagem. Tal forma de tratamento se deve pelos mais variados motivos, como a autovalorização do trabalho (ora, só se paga alguém para se fazer algo que você não sabe, não compreende ou não tem vontade de fazer), ou até mesmo o rebaixamento social e potencial do indivíduo acusado. Gera-se então o risco de um processo incognoscível similar ao relatado no livro de Kafka[2], onde o réu aguarda o julgamento em uma prisão sem ter a mínima ideia do porquê de estar preso e pelo que está sendo julgado.
As pessoas que trabalham com um direito cada vez mais burocratizado poderiam e deveriam se lembrar que a maioria da população que sofre a influência das normas não faz parte daquele universo fechado da faculdade ou do mundo jurídico, muito pelo contrário, em um país onde a educação (inclusive a social) anda a passos curtos é muito improvável encontrar alguém com o mínimo conhecimento dos seus direitos. A academia formadora de juristas, me lembra muito uma biblioteca, tal qual a do mosteiro fictício do romance “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco, onde os monges, detinham, não apenas todas as obras científicas e filosóficas do passado clássico, como também se utilizavam de uma língua diferente da usada no mundo fora da abadia (enquanto os monges utilizavam o latim para se comunicar os civis se utilizavam do italiano primitivo). Os monges, desta forma, acabaram se distanciando tanto da população que chegou-se a um ponto crítico em que a forma de comunicação entre os dois mundos ficou cada vez mais insustentável. Tal qual a abadia do romance supracitado, corremos o risco de sermos mal ou até mesmo incompreendidos pela população. A prova desta situação complicada está na própria opinião da sociedade, que se torna cada vez mais desconfiada da profissão do jurista, seja ele o magistrado, o advogado ou o promotor.
Fazer o curso de direito, segundo a opinião popular, possibilita dois futuros para o discente: ou você quer se tornar um bom funcionário público, participante apenas da burocracia estatal que tem estabilidade e um bom salário, ou você se fará parte do judiciário, e desta forma dará o primeiro passo para receber o diploma de “demônio ardiloso” que, de alguma forma, engana o pobre cidadão comum, tal como Fausto é por Mefistófeles, e o convence a fazer algo que não quer, como vender sua alma, ou pior consegue enganar a todos recolocando no seio da comunidade um vil transgressor das leis, transformando facilmente assim o lobo em cordeiro o colocando bem no meio do rebanho. Mitos como estes geram cada vez mais estereótipos populares no seio da população que se vê desconfiada dos juristas e de suas “palavras difíceis’.
Ulisses B. F. Melo– Aluno da graduação do curso de direito da Universidade Federal de Pernambuco.
[1] Alf Ross em seu livro Tu-tu afirma que esses conceitos tem como função principal facilitar a agilizar o discurso jurídico de uma forma que não permita explicações exaustivas.
[2] KAFKA, Franz. O Processo.