Resumo:A partir da análise do princípio que se consagrou como “pecunia non olet”, o presente trabalho tem por objetivo promover um estudo acerca da (im)possibilidade de tributação sobre o proveito econômico auferido com a prática de fato criminoso.
O princípio do non olet foi consagrado no ordenamento jurídico pátrio, tendo previsão no artigo 118 do Código Tributário Nacional. Segundo este princípio, o produto da atividade ilícita deve ser tributado, desde que realizada, no mundo dos fatos, a hipótese de incidência da obrigação tributária.
A doutrina diverge em torno da possibilidade ou não de que haja incidência de tributação sobre determinado proveito decorrente da prática de um crime. Duas são as correntes sobre o assunto, cada qual com suas respectivas argumentações de fato e de direito que foram amplamente contempladas, consideradas e discutidas no presente trabalho. De um lado, a tese que advoga a possibilidade do Estado fazer incidir o tributo pertinente sobre determinado proveito fruto de um ilícito penal. De outro, a tese que pugna pela impossibilidade dessa tributação, afirmando que o perdimento de bens, enquanto efeito da condenação criminal, é que é o destino correto dos bens de origem criminosa.
Assim, a indagação que permeou o presente trabalho consistiu em saber se, afinal, no exercício do seu poder de tributar, seria realmente legítimo ao Estado fazer incidir tributos sobre o proveito auferido com a prática de crime.
Distinguiu-se, inicialmente, os dois institutos jurídicos que disputavam a atenção da doutrina, quais sejam, a tributação (art. 3º do Código Tributário Nacional) e o perdimento de bens enquanto efeito da condenação criminal (art. 91 do Código Penal), para então, juntamente com a análise do que se convencionou denominar de limitação infraconstitucional ao poder de tributar do Estado decorrente do princípio da consistência do ordenamento jurídico, restarem perfeitamente delineados e delimitados os campos de incidência de cada um dos institutos apenas aparentemente antinômicos.
Palavras-chave: proveito auferido pela prática de ilícito penal – tributação – princípio do “non olet” – perdimento de bens (efeito da condenação criminal) – antinomia aparente – princípio da consistência do ordenamento jurídico.
SUMÁRIO:1 – Introdução: Breves considerações sobre a origem histórica do princípio do “pecunia non olet” e sua positivação no ordenamento jurídico brasileiro; 2 – Os diferentes posicionamentos da doutrina pátria sobre o princípio do “non olet”.2.1 – Pela possibilidade de incidência de tributação sobre o proveito decorrente da prática de crime; 2.2 – Pela impossibilidade de incidência de tributação sobre o proveito decorrente da prática de crime. 3 – Tributação do ilícito penal X Tributação das conseqüências econômicas (ou do proveito) decorrentes do ilícito penal: a delimitação do problema. 4 – Da limitação infraconstitucional ao poder de tributar do Estado decorrente do princípio da consistência do ordenamento jurídico. 5 – Tributação (art. 3º do Código Tributário Nacional) X Perdimento de bens enquanto efeito da condenação (art. 91 do Código Penal). 6 – Conclusão. 7 – Referências.
1 – INTRODUÇÃO: Breves considerações sobre a origem histórica do princípio do “pecunia non olet” e sua positivação no ordenamento jurídico brasileiro.
Consagrado no ordenamento jurídico pátrio, o princípio do non olet encontra guarida no artigo 118 do Código Tributário Nacional. Segundo este princípio, o produto (ou proveito) decorrente da prática de uma atividade ilícita deve ser tributado, desde que realizado, no mundo dos fatos, a hipótese de incidência da obrigação tributária.
A origem histórica do princípio remonta à Roma antiga. Conta-se que o imperador Vespasiano construiu mictórios públicos para conter a sujeira nas ruas da cidade de Roma. Ato contínuo, para compensar o investimento realizado, o imperador instituiu um tributo – semelhante à atual taxa – sobre a utilização das tais latrinas públicas. Criticado e questionado por Tito, seu filho, sobre a exigência da novel, esdrúxula e “malcheirosa” exação fiscal, o imperador Vespasiano rebateu as críticas com a célebre frase: "pecunia non olet", expressão latina que quer dizer “o dinheiro não tem cheiro” ou “o tributo não tem cheiro”.
Para Amílcar de Araújo Falcão,
Quis o imperador romano desse modo significar que o dinheiro não tem cheiro, importando essencialmente ao Estado o emprego que faça dos seus tributos e não a circunstância de reputar-se ridícula ou repugnante a fonte de que provenham. (FALCÃO: 1994, p. 91)
No direito positivo brasileiro, como dito anteriormente, o art. 118 do Código Tributário Nacional consagrou a máxima “non olet”, a determinar que para o direito tributário não existe relevância se a situação que teve como conseqüência a ocorrência do fato gerador configure ilícito.
Assim, dispõe o art. 118 do CTN que:
Art. 118. A definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se:
I – da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis, ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos;
II – dos efeitos dos fatos efetivamente ocorridos.
Ainda sobre a origem da expressão “non olet”, leciona Amílcar de Araújo Falcão:
Claro está que, na sua versão atual, as expressões perderam o conteúdo cínico da anedota, para se penetrarem de alto sentido ético, qual o de procurar atingir isonomicamente a capacidade econômica do contribuinte sem preconceitos falsos ou ingênuos pruridos de sentimentalismo piegas quanto à licitude da atividade que constitua fato gerador do tributo. (FALCÃO: 1994, p. 91)
2 – Os diferentes posicionamentos da doutrina pátria sobre o princípio do “non olet”.
2.1 – Pela possibilidade de incidência de tributação sobre o proveito decorrente da prática de crime.
De fato, tendo por base o art. 118 do CTN, a doutrina nacional, majoritariamente, entende que a ilicitude do ato praticado nada tem a ver com a relação tributária. Isto é, a validade, invalidade, nulidade, anulabilidade ou mesmo a anulação já decretada do ato jurídico, bem como a eventual carga de ilicitude penal que possua, são irrelevantes para o Direito Tributário. “Pecunia non olet” ou “o dinheiro não tem cheiro”. Uma vez praticado o ato jurídico ou celebrado o negócio que a lei tributária erigiu em fato gerador, está nascida a obrigação para com o fisco. E essa obrigação subsiste independentemente da validade ou invalidade do ato. O fato gerador ocorreu e não desaparece, do ponto de vista fiscal, pela nulidade ou anulação (BALEEIRO: 2006).
Por essa ótica, o tributo corresponderia a um instituto amoral, objetivo e abstrato, veiculado por norma tributária igualmente objetiva, a incidir sobre cada signo presuntivo de riqueza, sem questionar quanto à validade do fato, ato ou negócio jurídico que lhe ofereceu suporte.
Entre os autores que defendem esta corrente está Aliomar Baleeiro, o qual afirma pouco importar, para a sobrevivência da tributação sobre determinado ato jurídico, a circunstância de ser ilegal, imoral, ou contrário aos bons costumes, ou mesmo criminoso o seu objeto, como o jogo proibido, a prostituição, o lenocínio, a corrupção, a usura, o curandeirismo, o câmbio negro etc, para então concluir:
Deve admitir-se, pensamos, a tributação de tais atividades eticamente condenáveis e condenadas. O que importa não é o aspecto moral, mas a capacidade econômica dos que com elas se locupletam. Do ponto de vista moral, parece-nos que é pior deixá-los imunes dos tributos, exigidos das atividades lícitas, úteis e eticamente acolhidas. (BALEEIRO: 2006, p. 715)
Nesse mesmo sentido, assevera Ives Gandra da Silva Martins[1]:
Creio que é melhor tributar atividades que se encontram na linha limítrofe entre o regular e o irregular do que permitir que criminosos as explorem, impunemente, utilizando sua receita - não controlada - para atividades ilícitas, inclusive para a corrupção;
Os que pugnam pela possibilidade de tributação sobre o proveito auferido pela prática de crime têm invocado, ainda, os princípios da isonomia e da capacidade contributiva em direito tributário. Segundo Dino Jarach: "igualdade tributária quer dizer igualdade de condições segundo a capacidade contributiva” (JARACH: 1957, p. 116). O princípio da capacidade contributiva apresentar-se-ia, portanto, como corolário do princípio da igualdade, a pugnar pela impossibilidade de se conferir tratamento fiscal diverso a indivíduos que se acham nas mesmas condições econômico-contributivas, sob pena de haver enriquecimento ilícito. Assim, restando devidamente constatados índices claros, atuais e relevantes de riqueza que demonstrem aptidão da pessoa para pagar tributos, a norma tributária incidirá, objetiva e independentemente de eventuais particularidades relacionadas aos sujeitos ou às fontes.
Afirmam que a cobrança do tributo daquele que tem capacidade contributiva se trata de princípio calcado no valor justiça, ainda que tal signo presuntivo de riqueza seja oriundo de jogo, lenocínio ou de alguma outra atividade proibida. Caso assim não fosse, estar-se-ia ferindo o princípio da isonomia fiscal, porquanto seriam tratados preferencialmente os autores de ilícitos em detrimento dos trabalhadores e outros contribuintes com fontes lícitas de rendimentos.
Em síntese, tendo em vista o princípio da isonomia fiscal, a exoneração tributária das atividades proibidas ou não recomendadas, em contraposição à taxação das atividades lícitas ou socialmente úteis, antes de configurar consectário da moralidade, ensejaria, isto sim, séria violação ao principio em questão, vez que trataria desigualmente fatos de idêntica conotação contributiva, diversos apenas em sua emanação originária.
Nesse sentido, ensina Ricardo Lobo Torres:
Se o cidadão pratica atividades ilícitas com consistência econômica deve pagar o tributo sobre o lucro obtido, para não ser agraciado com tratamento desigual frente às pessoas que sofrem a incidência tributária sobre os ganhos provenientes do trabalho honesto ou da propriedade legítima. No imposto há sempre uma nota desagradável que não pode pesar apenas sobre os ganhos das atividades lícitas. (TORRES: 2006, p. 372)
Corroborando com esta corrente, assevera Amílcar de Araújo Falcão:
Não pode ser de outro modo, se se tomar em consideração que a natureza do fato gerador da obrigação tributária, como um fato jurídico de acentuada consistência econômica, ou um fato econômico de relevância jurídica, cuja eleição pelo legislador se destina a servir de índice de capacidade contributiva. A validade da ação, da atividade ou do ato em Direito Privado, a sua juridicidade ou antijuridicidade em Direito Penal, disciplinar ou em geral punitivo, enfim, a sua compatibilidade ou não com os princípios da ética ou com os bons costumes não importam para o problema da incidência tributária, por isso que a ela é indiferente a validade ou nulidade do ato privado através do qual se manifestou o fato gerador: desde que a capacidade econômica legalmente prevista esteja configurada, a incidência há de inevitavelmente ocorrer. (FALCÃO: 1994, p. 45)
Ademais, segundo Steuerrecht[2], somente interessa analisar o fato tributário em toda a sua nudez econômica, despido de conotações de outra ordem, notadamente no que tange a sua licitude ou ilicitude. Não seria, portanto, necessário debruçar-se sobre estes aspectos. A licitude ou ilicitude não exclui a aptidão para pagar impostos, e, caso a ilicitude autorizasse a não tributação dos proventos, existiria injustificada isenção.
2.2 – Pela impossibilidade de incidência de tributação sobre o proveito decorrente da prática de crime.
Por outro lado, autores há que entendem ser absolutamente descabida a tributação do proveito de atividades ilícitas, ainda que a prática da atividade criminosa gere efeitos econômicos tributáveis em tese. Segundo afirmam, seria ilegítimo que, existindo uma norma jurídica que reprovasse um determinado fato, considerando-o crime, que o Estado se valesse desse mesmo fato para dele obter receita.
A atividade financeira do Estado, como atividade política e nobre que é, não deve ser custeada por receita cuja origem seja imoral ou ilegal. Afinal, em última análise, estes proveitos sequer chegam a ser verdadeiros rendimentos em sentido econômico. Por todos, cumpre colacionar a lição da Professora Misabel Abreu Machado Derzi:
Parece-nos ter havido evolução no sentido de não mais se admitir a irrelevância da ilicitude. Ao contrário, deve-se sustentar a intributabilidade dos bens, valores e direitos oriundos de atividades ilícitas. De longa data, entre nós, as leis prevêem o destino dos bens de origem criminosa. O código Penal disciplina a matéria, (...) o Código de Processo Penal determina o seqüestro de bens imóveis ou móveis (sendo o caso, busca e apreensão) adquiridos pelo indiciado com os proventos do crime. O perdimento daqueles bens, produto da infração, é assim a regra. Em verdade, antes e depois da Lei nº 9.613/98, o correto é concluir que estando comprovado o crime do qual se originaram os recursos ou o acréscimo patrimonial, seguir-se-á a apreensão ou o seqüestro de bens, fruto da infração. E é absolutamente incabível a exigência de tributos sobre bens, valores ou direitos que se confiscaram, retornando às vítimas ou à administração pública lesada. Pois o tributo, que não é sanção de ato ilícito, repousa exatamente na presunção de riqueza, em fato signo presuntivo de renda, capital ou patrimônio. Coerentemente, a lei 9.613/98, que disciplinou os crimes de “lavagem de dinheiro”, por exemplo, renovou, em alguns aspectos, as normas processuais pertinentes e determinou, como efeitos da condenação, a perda dos bens, direitos e valores, objeto do crime, assim como a interdição do exercício de cargo ou função pública de qualquer natureza (art. 7º, I e II). Imposto poderá incidir sobre a ostentação de riqueza ou o crescimento patrimonial incompatíveis com a renda declarada, no pressuposto de ter havido anterior omissão de receita. Receita, em tese, de origem lícita, porém nunca comprovadamente criminosa. Não seria ético, conhecendo o Estado a origem criminosa dos bens e direitos, que legitimasse a ilicitude, associando-se ao delinqüente e dele cobrando uma quota, a título de tributo. Portanto, põem-se alternativas excludentes, ou a origem dos recursos é lícita, cobrando-se em conseqüência o tributo devido e sonegado, por meio da execução fiscal, ou é ilícita, sendo cabível o perdimento dos bens e recursos, fruto da infração (BALEEIRO, DERZI, nota da atualizadora; 2006, p. 715/716).
Pela não tributação do proveito decorrente da prática de crime, tem-se adotado, ainda, um discurso fundamentado no princípio da legalidade e na defesa da eticidade e da moralidade estatal. Neste sentido, assevera César José Galarza[3], da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidad de Ciencias Empresariales y Sociales (UCES) de Buenos Aires:
No pocas veces se há sostenido em doctrina que admitir la tributación de los actos ilícitos equivale a decir que el Estado ‘permite’ o ‘ampara’ su realización, y más aún, que habría que analizar incluso si este no incurre com ello em uma situación de ‘complicidad’, o al menos de ‘inmoralidad’ com el autor del ilícito, beneficiando-se económicamente con las ganâncias obtenidas com la ejecución del mismo. Prima facie, exigir el pago de um tributo por la comisión de um acto ilícito constituiria uma contradicción ilógica em el actuar estatal, puesto que de pronto el Estado estaria efectuando em su provecho, conductas que reprime y censura si son ejecutadas por los ciudadanos sometidos a la ley penal. Pues bien, este razonamiento se há convertido em el primer estandarte enarbolado por quienes rechazan la tributación de los actos ilícitos, convirtiendo así a las consideraciones moralistas em uno de los principales y más recurridos argumentos contra dicha tributación.
Nesse mesmo sentido, entende Luciano Amaro que, no caso de proveito decorrente de crime, há que se falar em sanção, não em tributo. In verbis:
A questão, segundo nos parece, não é, propriamente, a de se tributarem ou não os atos ilícitos. Ato ilícito, como tal, não é fato gerador de tributo, mas suporte fático de sanção, que (mesmo quando se cuida de infração tributária) com aquele não se confunde (CTN, art. 3º). Dessa forma, se “A” furtou de “B” certa quantia, não se pode, à vista do furto, tributar “A”, a pretexto de que tenha adquirido renda; cabem no caso, as sanções civil e penal, mas não tributo. (AMARO: 2003, p. 276)
Ricardo Lobo Torres, não obstante corroborar com a corrente que pugna pela possibilidade da incidência de tributação sobre o proveito de crime, não passou ao largo do aparente conflito que se verifica entre a tese por ele defendida e os princípios do direito penal. Segundo o autor, “o princípio do non olet é previsto na legislação brasileira e defendido pela maior parte da doutrina, embora em alguns países exista certo questionamento sobre a sua legitimidade em razão de o mesmo confrontar-se com os princípios de direito penal”. (TORRES: 2006, p. 102).
Outrossim, os doutrinadores que defendem a não tributação, afirmam que o princípio da capacidade contributiva, fundamento precípuo daqueles que admitem a tributação relativa a fatos ilícitos, não poderia ser considerado isoladamente em relação aos demais princípios constitucionais, posto que restaria violado o princípio da unidade da Constituição.