O que falar de um filósofo que em seu próprio prólogo assim define o conhecimento humano:
Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos, e não sem motivo. Nunca nos procuramos; como poderia acontecer que um dia nos encontrássemos? (NIETZSCHE, 2009, p.7).
Eis o início da obra de um pensador que tem como meta a busca deste conhecimento interior, a busca pelo autoconhecimento através do ato de dobrar-se sobre si mesmo, sobre a retomada da criança interior, esperança única de resgate de valores ainda não estabelecidos pela cultura vigente, pois estão ainda no devir.
Nietzsche, juntamente com Freud e Marx, foi considerado um dos maiores de seu tempo, um dos mestres da suspeita. Com aversão á filosofia Socrática, ao qual dizia ser ela um início da decadência filosófica, se apegava a Heráclito, e usava a razão para falar da própria razão. Convicto de que o mundo é um conjunto de forças, o autor era um grande provocador, um autor de base, um incompreendido de seu tempo, um escritor maldito aos olhos da Igreja.
É certo que a leitura inicial de Genealogia da Moral traz certo torpor ao leitor mais desavisado. No discurso ferrenho sobre juízos de valor entre bem e mal e ideais ascéticos, o autor acaba por esbarrar naquilo que é mais caro para o sujeito ocidental; “o idealismo cristão”, e isso assombra. Afinal, adentrar em uma seara tão pouco desbravada faz o leitor, se não concordar, ao menos respeitar tamanha coragem. Respeite-se, portanto Friedrick Nietzsche.
Em sua obra, dividida em três dissertações, não existe uma preocupação com o transcendental, com divindades, mas sim, com preceitos morais advindos do próprio homem, pois para ele não existe nada de absolutamente fixo no homem.
Na “primeira dissertação (bom e mau / bom e ruim)”, Nietzsche considera que existam duas classes: a dos senhores (nobres) e a dos escravos, onde a classe senhorial subdivide-se em duas classes rivais: a guerreira e a sacerdotal.
A primeira classe (guerreira) é a dominante, cultua a virtude do corpo, e a segunda (sacerdotal), concebe o espírito. Então, desta rivalidade surgem duas morais: “a moral dos senhores (nobres) e a moral dos escravos”. Para o filósofo, “nobre” seria o indivíduo com uma afirmação positiva em si mesmo (eu som bom, eu sou belo, eu sou forte). Seriam os conquistadores, os poderosos, os senhores. Não dependem de nada e de ninguém para sentirem-se felizes, somente de si próprios. Deste conceito, cria-se por contraposição o ruim para tudo aquilo que não é belo e nobre, ou seja, é ruim ser plebeu, ser pobre, ser vulgar.
A “moral de escravos”, entretanto, é a moral do ressentido, ou seja, para ser feliz precisa comparar-se a outro sujeito que lhe é diferente, que lhe é superior. Forma-se uma negação de valores, ou seja, de início, não é ele que é bom, mas são os valores do nobre que são maus (exercício do pensamento ressentido), e desta inversão de valores, e após negar a bondade no nobre, o colocará como mau, pois; “eu que sou inferior e fraco é que sou bom”, ele que é forte “é mau, pois me inferioriza”.
Nietzsche trabalha o tempo todo com a ideia do conjunto de forças contrapostas que se chocam. Nesta acepção, o ser ressentido é o sofredor se comparado com o nobre. Ele, quando sofre a ação, de início se ressente se retrai e se ofende. Culpa o nobre pela sua situação de inferioridade, e por meio desta ação, acaba por reagir. O autor relata que nossa cultura é a do ressentimento, predominando deste modo a força escrava, herança do povo judeu que teve continuidade com o cristianismo, onde Roma era nobre e a Judéia – escrava. Concluiu-se pela vitória dos escravos sobre os nobres, onde o povo judeu acabou por se vingar de seus fortes e nobres dominadores por via da artéria espiritual, com a prevalência de que somente os desgraçados são bons, aqueles sofredores e enfermos. Tem-se então a transmutação de impotência em bondade, baixeza em humildade, covardia em paciência.
Então, Nietzsche deixa em dúvida a bondade dos escravos. Ele joga no contexto da obra a ideia de que a imagem de fraco e vulnerável seria apenas uma maneira perversa de contra-ataque e tomada de poder. Quando usa o cristianismo como continuidade do ressentimento judaico, (e aí a polêmica), acaba por dizer que a batalha foi vencida pelo escravo ressentido, incluindo nesta conjuntura o cristianismo e o próprio cristo como líder, jogando com a ideia (porém nunca afirmando) de que, ao tragar a moral dos nobres, a moral escrava perversamente seria a parte forte e má da relação, que teria usado de subterfúgios para vencer toda uma concepção nobre que estaria no domínio por séculos.
Deste modo, o negar a bondade no nobre e tomar posse da mesma pela inferioridade fazem com que surja, nos escritos de Nietzsche uma figura denominada niilismo, que nada mais é do que dizer não á vida, negar a potência natural do ser humano em prol do processo ressentido de negar.
Deste contexto, o autor aufere a necessidade de preservação da figura do nobre na vida do sujeito, pois é o que mais se aproxima do conceito de criança. Com efeito, a adultização através de um amadurecimento forçado seria uma espécie de demonização da própria criança aos olhos do autor, pois se mata qualquer tipo de individualidade passível de afloramento por meio das ideias pré-estabelecidas do adulto. Então, o aprendizado necessariamente deverá ser liberto do absoluto, para doravante existir a possibilidade de várias contemplações.
A “segunda dissertação” elucida como se deu a concepção de consciência, o conceito de culpa, a ideia da dívida. Para o autor, o esquecimento é sadio, pois a memória não é natural no ser humano. A concepção da subjetividade foi construída através da dor. Ora, se Deus é infinitamente bom comigo, e eu sou ingrato porque sou impuro, como presto contas com o criador?
Deste modo, enxerga-se o castigo como forma de compensar o sentimento de culpa do ser humano. Seria como a obrigação existente entre credor e devedor, adaptação feita pelos sacerdotes das trocas realizadas na antiguidade, doravante transformando Deus no credor que forneceria a vida e demais acontecimentos bondosos em troca de um homem obediente aos seus ensinamentos.
E Nietzsche mostra assim a perversidade da cultura inculcada pela Igreja Católica ao contemplar que “purifico minha alma somente com a renúncia aos meus impulsos”. E então estes instintos reprimidos não se exteriorizam e acabam se voltando para dentro do indivíduo, em um eterno confronto entre desejo e restrição, levando-o ao adoecimento. O antídoto para escapar desta culpa ressentida seria a teoria da experimentação, em conjunto com o esquecimento de toda a carga culposa depositada através da dor no lineamento do ser humano no transcurso dos tempos.
Na “Terceira Dissertação” (o que significam ideais ascéticos), o autor tratará do conceito da renúncia dos desejos e da mortificação das vontades humanas.
Fala Nietzsche sobre o ideal ascético que nada mais é do que o imaginário do bom cristão expressado pelo sacerdote cristão, apregoando a negação de todas as vontades terrenas em face de um Deus, para o encontro da salvação futura. Para o autor, esta ideia contaminou o homem e o levou a negação de si mesmo em prol de uma recompensa futura.
O sacerdote cria então a terminologia “querer o nada – a nada querer”, onde o primeiro diz respeito à concepção de um objetivo para o querer, domina-se a vontade, domina-se o desejo, e o segundo, é o grau zero de vida, é a depressão ao extremo. É o controle do sacerdote sobre o sujeito através da recompensa da outra vida, evitando-se a melancolia, a grande depressão, o suicídio coletivo.
Então, este ideal é a ponte para uma vida futura. Abdica-se da vida de hoje (querer o nada) em prol de uma vida no amanhã. Vive-se por códigos, sem perspectivas, apenas sofrendo, pois no futuro o encontro com a felicidade será certo.
Assim, se Friedrick Nietzsche se definiu como “um ser que não se conhece” como ele mesmo exprime em seu prólogo, podemos ter a certeza de que, ao menos tentou se conhecer, desconstruindo tudo que assimilou em sua curta vida e tentando reconstruir-se, fiel a seus preceitos ruminados em sua existência.
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NIETZSCHE, F. W. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução de Paulo Cesar de Souza. – São Paulo: Cia das Letras, 2009.