1. INTRODUÇÃO
O Estado, através dos séculos de história, tem se valido do cerceamento da liberdade daqueles que infringem as normas de convivência estabelecidas à toda sociedade. Age assim como guardião dos interesses coletivos e do próprio indivíduo, dando a cada um que dele deve ser.
E essa materialização do direito-dever estatal de punir, tem tido suas limitações no cômputo da história humana, quando o Direito, cada vez mais, deixou de ser mera ferramenta do Estado para ser algo muito maior: seu próprio limite de atuação, num conflito constante entre os interesses coletivos e as garantias individuais, estabelecido pela bilateralidade-atributiva, segundo REALE [1], de quem é credora o Direito.
E nessa batalha, de um lado o cidadão, hipossuficiente, de outro sua majestade o Estado, têm no cenário evolutivo contemporâneo duas pontas de um mesmo todo: Daquele lado o jus libertatis, inatingível, o maior de todos os bens jurídicos afetos à pessoa humana, e desse outro o jus puniendi cujo Estado é o titular absoluto. E o direito à liberdade é a justa resistência do indivíduo contra a pretensão punitiva Estatal.
Duas partes opostas mas que se fundem numa zona limítrofe em que se encontra a norma violada, autorizando agir o Estado como fosse uma mão a buscar o indivíduo na sua metade, onde encontrava-se liberto, para ir à primeira e receber a punição que lhe será imposta.
E a mão que o conduz será o ‘due process of law’, cuja execução da sentença é sua força motriz. Qualquer tentativa de trazer-lho de sua metade, em que resida liberto, para a outra sem que devida e definitivamente comprove sua culpa, é querer mover o braço do Estado não com a força da legalidade, mas com a energia da arbitrariedade, que vem sendo abolida das legislações em todo o mundo, à custa do sangue de heróis anônimos que tomaram para si as idéias dos grandes pensadores dos últimos séculos.
E é neste contexto que ainda sobrevivem as medidas cautelares [2] de cerceamento da liberdade humana. Um eterno conflito entre uma provável antecipação da sanção penal, uma prisão sem pena [3], e a presumida inocência do cidadão a quem o Estado deseja punir. Ou então, a garantia da aplicação da sanção futura, aos olhos do Estado, contra o que parece ser uma pena antecipada, aos olhos do réu.
Afinal, como queria Kant, a liberdade é um direito fundamental do homem.
2. O PRINCÍPIO DA INOCÊNCIA DO SÉCULO XVIII
Para o enriquecimento do presente estudo, logramos ser de fundamental importância a análise deste pilar e sua repercussão no tema escolhido.
Princípio basilar do Direito Moderno, teve sua origem materializada no art. 9º da Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão [4], de 1789 [5], de influência iluminista, principalmente de Montesquieu (Charles de Sécondat, 1689-1755), que, em sua clássica obra O Espírito das Leis, defende que o homem deve responder pelos seus atos dentro de sua esfera de liberdade.
Seu contemporâneo, filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), a seu modo, definiu a inocência quando, em sua célebre obra Contrato Social, defendia nascerem bons os homens, corrompidos porém pela sociedade.
Antes dele, John Locke (1632-1704), autor de Le gouvernement civil, defendia serem iguais os homens, possuindo os mesmos direitos naturais [6] à vida, à liberdade e à propriedade. Entre 1660 e 1664 o filósofo escreveu oito ensaios [7] sobre o direito natural.
.Uma igualdade, fruto de um Direito Natural, que há muito já teria surgido.
Aristóteles quem primeiro teria definido os direitos naturais. No capítulo 7 do livro 5 da Ética a Nicômacos, defende o filósofo a diferença entre as leis naturais, presentes em qualquer lugar e com a mesma eficácia, e as positivas que as chama de legais.
Santo Tomás, em Summa theologica, cita a lei natural – entre os quatro tipos possíveis de leis – como emanada de Deus. Sobre este aspecto, Tomas Hobbes acreditava que as leis civis serviam para regular e determinar a aplicação da lei natural. Além destes, todos os filósofos e teóricos da época.
Essas idéias iluministas exerceram grande influência na declaração da independência e nas Constituições dos Estados americanos, especialmente na Declaração de Virgínia (anterior inclusive à carta francesa) além é claro da revolução de 1789, e porque não lembrar, arquitetaram o nascedouro dos movimentos republicanos no Brasil do século XIX.
Mas foram muito além os gritos vitoriosos da Revolução Francesa. Em 10 de dezembro de 1948, em Paris, a ONU aprovava, pelo voto de 48 Estados, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que em seu art. 11 propunha: "Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se prova sua culpabilidade, de acordo com a lei e em processo público no qual se assegurem todas as garantias necessárias para sua defesa".
Na Itália, no mesmo ano, a Assembléia Constituinte consagrava em seu art. 27, § 2º as mesmas garantias: "L’imputato non è considerato colpevole sino alla condanna definitiva". Portugal seguiu o mesmo caminho no art. 32, § 2º de sua Constituição [8], aprovada em 2 de abril de 1976.
Os franceses também o adotaram, mencionando-o no preâmbulo de sua Constituição [9] de 1958. No ordenamento espanhol, o art. 24, 2 da Constituição, de 1978 também institui o princípio.
No início do último século, Rui Barbosa [10], o paladino de nossos juristas, já defendia o juiz não poder perder de vista a presunção de inocência, comum a todos os réus.
E, finalmente, de forma expressa fora instituído em nossa Constituição de 1988, em seu art. 5º, LVII, embora acanhadamente já se aplicara o pilar, inobstante a taciturnidade de nossas anteriores Cartas, que desde a imperial de 1824 já inscreviam uma declaração dos direitos do homem brasileiro, embora seja a Carta Belga de 1831 detentora de tal primazia. [11]
Teria entretanto, segundo alguns entendimentos, o legislador constituinte adotado o princípio da não-culpabilidade, mais acanhado do que o princípio da presunção da inocência disposto no art. 9º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa.
Mas como resume BOBBIO [12] "Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los..."
2.1 O PRINCÍPIO DA INOCÊNCIA EM NOSSO ORDENAMENTO
Prudentemente chamado de ‘estado de inocência’, previsto está no art. 5º, inciso LVII de nossa Carta, que assim ordena: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória".
Este é, portanto, o princípio da não-culpabilidade, de aplicação muito mais restrita do que o princípio aprovado pela ONU.
Cumpre-nos registrar porém que, signatário que é o Brasil do Pacto de São José da Costa Rica que em seu art. 8º, I, estabelece claramente o princípio da presunção de inocência: "Toda pessoa acusada de delito tem o direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa" [13].
Ressalte-se que o mencionado instrumento teria valor de norma constitucional, uma vez que o § 2º do art. 5º de nossa Carta Política assegura a validade dos tratados internacionais em que sejamos parte.
Desta feita, garantido [14] estaria o princípio por duas normas constitucionais, o art. 5º, LVII, CF/88 e o art. 8º, I, do Pacto de São José da Costa Rica. O primeiro da não culpabilidade, como querem alguns, e o segundo da presunção da inocência, indiscutivelmente.
Ademais, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque, adotado pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966, fora aprovado pelo Decreto Legislativo nro. 266, de 12.12.91, promulgado pelo Presidente da República através do Decreto nro. 592, de 6.7.92, onde se encontra transcrito, assegura, como no Pacto da Costa Rica, em seu art. 14, 2, "Toda pessoa acusada de um delito terá o direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa".
Como lembra DELMANTO JÚNIOR [15], "Com a ratificação e promulgação internas desses dois diplomas, o que antes era recomendação, inegavelmente foi acolhido pela nossa Constituição da República (§ 2º de seu art. 5º) e passou a ser norma interna, de cunho cogente"
A Constituição de 1988 teria então recepcionados os dispositivos legais que regem as prisões provisórias, contrários em prima face a esses pilares ?
Os tribunais de forma majoritária [16] parecem entender que sim "Os dispositivos que regem a prisão em flagrante, a preventiva, a decorrente de pronúncia ou sentença condenatória recorrível e o recolhimento à prisão para apelar, não foram revogados pelo art. 5º, LVII, da Constituição Federal, permanecendo legítima a adoção de medidas coercitivas contra o réu antes do trânsito da sentença, desde que provisórias, necessárias e de conteúdo cautelar. (Habenas Corpus n. 147.462-2, Rel. Juiz Carlos Abud, Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais)"
Entendimento semelhante teve o TJSP: "O art. 5º, LVII, da CF, diz que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória – o que não quer dizer que todo homem é considerado inocente até a prova de sua culpabilidade. Querer dizer que, embora acusado, não pode ser considerado definitivamente culpado e, à evidência, que tal situação não exclui os casos de prisão provisória admitidos expressamente pela Constituição, e contra eles, a prisão em flagrante delito e a preventiva, ambas decretadas pelo juiz e com previsão constitucional" (RT 658/293).
A presunção de inocência, ao que parece, seria então relativa ao Direito Penal, não alcançando os institutos de Direito Processual, como a prisão preventiva. É o que entendem, finalmente os tribunais [17].
Qual então o verdadeiro sentido de tão importante princípio e como aplicá-lo no cotidiano forense ? Explica JESUS [18]: "Impedir que, antes da sentença condenatória transitar em julgado, sejam determinadas contra o acusado medidas de coerção pessoal de sua liberdade que não se revistam de natureza cautelar e do requisito da necessidade, i.e., que sofra a chamada pena antecipada."
Mesmo face ao disposto no inciso LVII do art. 5º, CF/88, é possível à lei ordinária estabelecer a necessidade de prisão cautelar pelo simples motivo de ter sido alguém considerado culpado pela prática de um crime em sentença penal condenatória que ainda não tenha transitado em julgado [19] ? Se presunção juris tantum de não culpabilidade se reveste o réu constitucionalmente, não poderia então a legislação infra-constitucional impor prisão compulsória processual, agindo assim jures et de jure de sua culpabilidade. Estaria esta revogando aquela.
Exegese imperfeita.
O que o pilar impede, isto sim, é sua presunção oposta, demonstrada quando tomadas medidas de restrição à liberdade sem que haja manifestamente o cumprimento das exigências legais.
Desta feita, incumbe à acusação o ônus da prova, pois revestido está o réu de sua não-culpabilidade, já presumida. A favor dele ainda os prazos limitados, porém razoáveis, a que dispõem a acusação, de forma a não permitir que seja eternamente investigado pelo Poder Público.
Insta salientar que tal princípio se liga umbilicalmente ao "in dubio pro reo", pelo que não se deve ser declarado culpado face à indisponibilidade de provas suficientes.
Mas como harmonizar tão importante pilar do Direito Moderno com uma medida não menos odiosa [20] é sem dúvida o cerne principal da discussão, tanto mais sendo cautelar, provisória a medida.
3. A RESTRIÇÃO DA LIBERDADE HUMANA – A PRISÃO
Prisão: do latim prehensione, pre(n)sione. Como define ACQUAVIVA [21]: "Medida judicial de caráter punitivo, restritiva de liberdade de locomoção".
Ensina-nos o mestre REALE [22], "A punição do infrator da lei significa que o legislador considera necessária uma conduta. O homem é livre de escolher este ou aquele caminho, mas, uma vez efetuada uma escolha em conflito com a lei, a sanção não resulta automaticamente da escolha feita, mas é a conseqüência da aplicação de outra norma jurídica em vigor, prevista para garantir o adimplemento da primeira".
E esta medida de restrição da liberdade humana tem duas faces: A definitiva, fundando-se para o cumprimento da sentença penal condenatória transitada em julgado. Esta é sua verdadeira razão de ser. Doutra face, em nosso ordenamento jurídico, as prisões provisórias, revestidas, portanto, de caráter precário. E assim o fazem justamente por não serem definitivas, ou seja, poderão ser decretadas ou cassadas a qualquer tempo.
Insere-se aqui, para comprovar a importância do tema, a garantia constitucional à reparação do dano pelo Estado ao condenado por erro judiciário, bem como àquele que ficar preso além do tempo previsto, consoante ao art. 5º, LXXV, CF/88.
Qual então sua verdadeira razão de ser, uma vez ainda não esgotadas medidas ou instâncias que poderão levar ao réu a confirmação de sua inocência, sua não-culpabilidade como de fato sempre a tem ?
O estudo é árduo porque polêmico. E fascinante, portanto.
Sua razão de ser é conseqüência de uma análise conjuntural, dependendo também da exposição dos diversos tipos de prisão cautelares, provisórias, que faremos a seguir.
4. PRISÃO DEFINITIVA
Importante breve distinção entre as medidas penais ditas cautelares, e as prisões decorrentes de sentença condenatória transitada em julgado, as definitivas – embora parte da doutrina discorde dessa expressão, por não reproduzir a realidade frente a sentenças condenatórias anuladas. Apesar de sua semelhança externa, diferenciam-se pela finalidade a que se propõem. Pretende esta tratar-se de mera execução da sanção imposta. É a prisão-pena.
Uma vez definida a questão processual, esgotadas as possibilidades de reformas, sua execução é a resposta do Estado ao cidadão e à sociedade, pela ilicitude do ato praticado.
Na ira da Lei se manifesta o jus puniendi Estatal. Na execução da sentença imposta ao réu, sua materialização.
Ocorre que nem sempre será submetido o agente à prisão definitiva. Ainda não decidida a questão, cuida a legislação processual penal de definir as diversas formas de prisão de caráter provisório, cuja finalidade e razão de ser diferem das penas relativas à execução criminal.
5. MEDIDAS CAUTELARES PENAIS – PRISÃO PROVISÓRIA
Ao contrário da prisão dita definitiva, ad poenam [23], a prisão provisória [24], cautelar é ad custodiam [25] ou ad cautelam, ou seja, advém de uma medida cautelar, não definitiva, portanto. Passível de reforma, inclusive.
Por ser cautelar a medida, encarrega-se parte da doutrina da exigibilidade dos pressupostos fumus boni iuris e periculum in mora [26], difundidos amplamente nas medidas cautelares da esfera civil para obtenção da tutela antecipada.
Data máxima venia, e sem perder de vista o objetivo principal, insere-se no presente estudo um posicionamento [27] diferenciado dos que insistem aplicar os mesmos pressupostos necessários à cautelar civil à jurisdição penal [28].
Não se pode afirmar que o delito cometido é uma "fumaça do bom direito", quando na verdade o que se espera é a probabilidade da ocorrência de um delito, ou seja, o fumus delicti, ou como bem observa DELMANTO JÚNIOR, o fumus commissi delicti. [29]
Desta forma é a provável ocorrência de um delito e os indícios da autoria que se fundem no pressuposto fumus delicti, e não a existência de um sinal, fumaça de um bom direito que deverá ser tutelado pelo Estado, o fumus boni iuris.
Tal incompatibilidade se opera, mais uma vez, com o segundo pressuposto que necessário se faz presente nas medidas cautelares civis: o periculum in mora.
O fator imprescindível encontrado nas cautelares penais não é o tempo que corre contra um Direito que supostamente existe e o conseqüente perigo da demora que tornaria ineficaz a medida ao final, como ocorre na tutela civil, mas a probabilidade de fuga ou a perigosidade da liberdade do réu é que conta.
É este, portanto, o periculum libertatis que se finda como pressuposto da cautelar penal, uma vez que solto, poderá o réu se eximir da aplicação da sanção penal, obstruir a instrução do processo ou ainda macular a manutenção da ordem pública e econômica.
Comunga desse idéia GOMES FILHO [30]: "Na fundamentação das decisões sobre prisão cautelar é indispensável, quanto ao ‘fumus commissi delicti’ (...) No que toca ao ‘periculum libertatis’..."
GRINOVER considera que a exigência do periculum libertatis é mais criteriosa [31] do que o simples ‘perigo da demora’. Já TOURINHO FILHO [32] entende serem os pressupostos semelhantes. Escreve o doutrinador: "O periculum in mora, ou libertatis, consistirá na circunstância de ser a medida imprescindível às investigações criminais"
Sobre estes dois elementos, verifica-se por demais sua abrangência, caracterizados pela sua generalidade e subjetivismo, cuja aplicação não se coaduna com o caráter singular de tão específica medida.
Na Alemanha, StPO § 112 além da suspeita fundamentada de que o agente tenha cometido o crime, concorrentemente devem conter: perigo de fuga; perigo de ocultação de provas ou prejuízo ao processo e a gravidade do crime.
Em Portugal, a prisão cautelar só é possível em caso de delito doloso, e cuja pena máxima seja superior a 3 anos (art. 202 do CPP e 27.3 da Constituição Portuguesa). Determina ainda o Código de Processo Penal Português, art. 193.2, que a prisão preventiva somente pode ser aplicada quando todas as demais medidas resultem inadequadas ou insuficientes.
No mesmo sentido o art. 275.3 do Codice de Procedura Penale da Itália, que oferece ampla gama de medidas cautelares e exige que a prisão seja uma exceção.
Já no sistema Espanhol [33], o perigo de fuga assume caráter quantitativo. Ainda que seja inaceitável qualquer presunção de fuga, sustenta-se que tal perigo é diretamente proporcional à pena prevista. Maior a pena, maior a probabilidade de fuga do acusado.
Num sistema onde a liberdade é a regra, constitui-lho direito subjetivo.
Não se manifesta, portanto, concebível prender-se provisoriamente uma pessoa sem que hajam evidências vigorosas de que, ao final, venha ela ser condenada definitivamente, da mesma forma que só se fará legal nos casos e na forma prescritos em lei.
Como medida extrema, vale sempre lembrar, deve ser absolutamente necessária [34] sua imposição, face ao grande malefício a que se exporá o acusado que, dentre suas inúmeras conseqüências, a mais ultrajante é quando, em sentença transitada em julgado, constatado o engodo ou a incompetência da ação policial, verifica-se que, após árduo período de encarceramento e pungente morte moral e social, é declarado inocente o acusado. E isso não raramente acontece, assim como a possibilidade de obtenção da liberdade após ser condenado. Como bem observa NORONHA [35]: "Não tem sentido que o acusado permaneça recolhido até ser julgado e condenado e, depois, venha a ser beneficiado com a liberdade, justamente quando já existe condenação".
Outra questão importante pertinente às cautelares é o cômputo de sua duração [36]. Claro, se provisória, necessário se faz uma noção de medida de sua extensão temporal. Qual o prazo necessário de manter tal medida é outra discussão sócio-jurídica.
Prazos indefinidos acabam por deixarem ‘mofando’ nas celas os constitucionalmente não-culpáveis, piorando o Sistema, maculando ainda mais o paciente, desvirtuando a natureza cautelar da medida, transformando-a numa verdadeira execução antecipada da pena, diga-se de passagem, nem se sabe virá.
Como bem observa GOMES FILHO [37], tem se chegado ao reconhecimento da ilegalidade de prisões que superem os oitenta e um dias [38] nos procedimento ordinários, ou os trinta e oito dias do rito especial (Lei 6.368/76), não obstante estes prazos não serem cumpridos face ao acúmulo de processos que gera inevitável morosidade judicial.
Em Portugal, e.g., o juiz tem a obrigação de revisar a cada 3 meses a medida cautelar decretada e se ainda permanecem os motivos e pressupostos que a autorizaram.
Na Alemanha, StPO § 121, a regra geral é a de que a prisão provisória não possa durar mais de 6 meses, salvo quando a especial dificuldade ou a extensão da investigação ou outro motivo importante não permita promulgar sentença e justifique a manutenção da prisão. Em caso de prorrogação, se poderá encomendar ao Tribunal Superior do ‘Land’ que faça um exame sobre a necessidade de manutenção da prisão no máximo a cada 3 meses.
Na Itália, o CPPI utiliza o critério de quantidade da pena em abstrato para determinar o tempo máximo de duração da prisão cautelar, conforme a gravidade do delito e a fase em que se encontra o processo. Deverá ainda o juiz, por força do art. 294.3 do CPP Italiano, revisar sua decisão que determinou a prisão em no máximo 5 dias após o início do cumprimento.
Já na Espanha, a Constituição – art. 17.4 - é quem determina que as condições e prazos de duração das prisões provisórias serão determinadas por Lei, dando amplo respaldo constitucional à medida.
E a LECrim – espanhola – determina, em seu art. 504, o prazo máximo de duração [39] da cautelar, levando-se em conta a pena abstratamente cominada no tipo penal incriminador. Deste modo, e.g., poderá durar a provisória até 3 meses se a pena cominada for de 7 a 15 fins de semana; até 1 ano quando a pena for de 6 meses a 3 anos; e até 2 anos de prisão provisória se a pena cominada for superior a 3 anos.
Claro demonstrado na legislação alienígena o caráter provisório da medida, de forma controlada, só admitida expressamente em nosso ordenamento na prisão temporária.
Nosso Código de Processo Penal prevê quatro formas de prisão cautelar: prisão em flagrante delito (arts. 301 a 310); b) prisão preventiva (arts. 311 a 316); c) prisão decorrente de pronúncia (art. 408, § 1º); d) prisão em virtude de sentença condenatória recorrível (arts. 393, I e 594). Somam-se a elas a prisão temporária, Lei 7.960/89.
Estudá-las, mesmo que sucintamente, deverá nos aproximar das verdadeiras razões que justificam a aplicação de cada medida.
5.1. PRISÃO TEMPORÁRIA
Criada pela Lei 7.960/89 com a finalidade de banir a prisão para averiguações, que nunca existiu na Lei, mas em muito praticada pela polícia, objetiva a decretação da prisão temporária pelo juiz por 5 dias, prorrogáveis por igual período, desde que comprovada sua necessidade. Deverá entretanto ser imediatamente posto em liberdade o acusado se, após o prazo, não tiver ainda sido decretada sua prisão preventiva.
Insere-se aqui o prazo de 30 dias, prorrogáveis por mais 30, para a prisão temporária no caso de prática de crimes hediondos [40], a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo, consoante ao disposto no art. 2ºcaput e § 2º da Lei 8072/90. Ainda sobre a prática dos crimes hediondos e assemelhados, data venia, consideramos ser de singular importância a ementa do STF: "A gravidade do crime imputado, um dos malsinados ´crimes hediondos´ (Lei 8.072/90), não basta à justificação da prisão preventiva, que tem natureza cautelar, no interesse do desenvolvimento e do resultado do processo, e só se legitima quando a tanto se mostrar necessária: não serve a prisão preventiva, nem a Constituição permitiria que para isso fosse utilizada, a punir sem processo, em atenção à gravidade do crime imputado, do qual, entretanto, ´ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória´ (CF, art. 5º, LVII)" (RTJ 137/287, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE). Desta mesma idéia comunga o eminente TOURINHO FILHO [41]: "Se toda e qualquer prisão provisória descansa, inquestionavelmente, na necessidade, a proibição da liberdade, nestes casos, mesmo ausentes os motivos para a decretação da prisão preventiva, é um verdadeiro não-senso e violenta o princípio constitucional da presunção da inocência."
Sobre sua conversão em prisão preventiva, parece ser aquela medida uma antecipação desta.
Como bem assegura GRECO FILHO [42], "Pode-se dizer que a prisão temporária é uma antecipação da prisão preventiva; tem requisitos menos rigorosos que ela, mas não será decretada se manifestamente não se decretaria aquela".
Ademais, parece ter tido a prisão provisória inspiração no disposto do art. 312/CPPB. Note-se a semelhança entre o disposto no inciso II do art. 1º que pode ser aproximada da "conveniência da instrução criminal". Há ainda relação estreita entre o inciso III da Lei com "a prova da materialidade da infração", também aludida no art. 312/CPPB.
Neste sentido, afirma MACHADO [43]: "Parece-nos que a prisão preventiva, tal como prevista na nossa sistemática processual penal, atende em tudo aos objetivos colimados pela prisão temporária".
CÂMARA [44] menciona estranheza com relação à criação deste instituto, uma vez que "uma das espécies de cautelares anteriormente existente atendia satisfatoriamente e com vantagens os fins instrumentais do processo".
TOURINHO FILHO, lembrado por DELMANTO JÚNIOR [45], "critica ferrenhamente esta modalidade de prisão, classificando-a de retrocesso".
Sua decretação, vale lembrar, em nenhuma hipótese importa no reconhecimento antecipado da culpa do acusado, o que relativiza bastante a importância das afirmações de sua provável inconstitucionalidade [46] de quando medida provisória (originalmente, MP 111 de 24.12.89), aparentemente superada após a promulgação da Lei.
O grande problema consiste na arbitrariedade que tal medida pode acarretar, uma vez que basta sua invocação pelo ‘senhor das investigações’, o delegado de polícia, citando sua imprescindibilidade para a investigação criminal [47] e a medida poderá ter autorização legal e judicial, se concedida. Certo é que, após a promulgação da referia Lei, foi o delegado elevado à condição de ‘senhor processual’, concedendo-o poderes quase ilimitados sobre a liberdade de seus ‘clientes’. E não se têm dificuldades em obtê-las.
Sendo, como o é, o inquérito policial fase meramente administrativa da persecutio criminis, procedimento inquisitivo, sem que haja o direito ao contraditório e à ampla defesa, bastam os argumentos do presidente do inquérito, nem sempre parciais, para o convencimento do juiz.
Seja como for, as alíneas do inciso III do art. 1º daquele diploma enumeram taxativamente os crimes em que tal medida poderá ser tomada.
Debate doutrinário incide sobre a interpretação do aludido artigo, se os incisos devem estar presentes isolada ou combinadamente
Para GRINOVER [48], necessária se faz a presença de apenas um dos incisos I e II (caracterizadores do periculum libertatis) aplicável cumulativamente com o inciso III (fumus boni iuris, ou como já visto, é o fumus delicti), ambos do art. 1º. Comungam desta idéia Damásio de Jesus e Antonio Magalhães Gomes Filho.
Já GRECO FILHO [49] e CAPEZ [50] entendem ser necessária combinação entre eles para depois combiná-los com as hipóteses de prisão preventiva (art. 312/CPPB), o que evidencia a importância deste segundo instituto.
Certo é que, combinados cumulativamente, como pretende Antônio Scarance Fernandes [51], parece ser ‘letra morta’, já que em ínfimos casos poderia ser aplicada, o que certamente depõe contra a intenção dos legisladores.
Doutra forma, exigir a ocorrência de apenas um dos incisos parece à maioria dos mestres uma incoerência legislativa, cuja aplicabilidade pode levar a abusos e absurdos.
5.2. PRISÃO POR FLAGRANTE DELITO
Ou cognição coercitiva, a prisão em flagrante [52] representa uma exceção à regra de que ninguém será preso senão por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, como se constata pelo inciso LXI, do art. 5º de nossa Carta Política.
Como bem observa NORONHA [53], "diz-se em flagrante delito o indivíduo que é surpreendido cometendo-o ou em situação que a lei considera equivalente".
É, última análise, a própria expressão do poder Estatal, iniciando inclusive a persecução penal, além de ser uma ‘resposta’ imediata ao agente pelo delito cometido há pouco.
Restou à legislação infra-constitucional deliberar a respeito. E o artigo 302 do CPPB em seus incisos define a ocorrência do flagrante próprio (incisos I e II), impróprio (inciso III) ou o presumido (inciso IV).
Se cuidada matéria no art. 302/CPPB, é no art. 310 do mesmo diploma que será dada sua subsistência.
Só se mantém, portanto, a prisão em flagrante delito se, para além da situação flagrancial, as circunstâncias demonstrarem estar presentes os autorizativos legalmente tipificados, embora admite GRECO FILHO [54] que "se a prisão em flagrante é válida, não se decreta sobre ela a prisão preventiva".
Não importa se o autor agiu coberto por alguma excludente de ilicitude. Como bem explica TOURINHO FILHO [55], "... é problema para posterior estudo."
Nem a anulação do flagrante, por vício de forma, impede a decretação da prisão preventiva, com base nos arts. 311 e 312/CPP (STF, RT 514/446)
Deverá obrigatoriamente atuar o Estado. [56] E poderá ser utilizada a força se houver resistência. É, enfim obrigação do Estado, faculdade do cidadão. E deverá ser o sujeito conduzido à autoridade do local de autuação, e não do local do crime (art. 308/CPPB).
Lavrado o auto, deverá ser imediatamente comunicada autoridade judicial, que a relaxará se ilegal (art. 5º, LXII e LXV, CF/88), além de, no máximo em 24 horas da captura, expedir a nota de culpa ao detido. (Ciência ao preso para cumprimento do disposto no art. 5º, LXIV, CF/88).
Se o juiz não concede liberdade provisória ao acusado, optando em manter a prisão, já não o faz porque mantém a prisão em flagrante, mas por achar estar presentes os autorizativos da prisão preventiva. Caso contrário, ouvido o Ministério Público, deverá lhe conceder liberdade provisória, submetendo-o ao comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogação da medida.
Destarte, é assente que na mais abalizada hermenêutica jurídica que a terminologia ‘pode’ inserida no parágrafo único do art. 310/CPP pela Lei 6.416/77 não deve ser interpretada pelo juiz como mera faculdade, mas ação cogente, um dever do magistrado, já que a regra passou ser a defesa em liberdade, em sintonia ao que estabelece nossa Carta Magna em seu art. 5º, LXVI: "ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança", consubstanciado pelo parágrafo único do art. 310/CPP.
Não obstante a força probatória do flagrante, mormente quanto à autoria e materialidade do delito, não se deve olvidar que igualmente concorre em favor do preso seu estado de inocência, de sua não-culpabilidade, no devido processo legal a que deverá ser submetido, assegurando-lhe o direito ao contraditório e à ampla defesa. – CF/88, art. 5º, LIV e LV.
Inegável, entretanto, sua razão de ser frente ao periculum libertatis, para sua imposição.
Duas, portanto, são as justificativas para sua existência: a reação social com conseqüente atuação Estatal e a captação de prova do delito (materialidade e autoria). [57]
5.3 PRISÃO PREVENTIVA
É de todas, a mais importante das cautelares de restrição à liberdade.
Trata-se a medida de exceção. É, como ensina MIRABETE [58] "uma medida facultativa, devendo ser aplicada apenas quando necessária segundo os requisitos estabelecidos nas normas processuais".
Sua adoção exige a satisfação por completo dos pressupostos cautelares fumus delicti (prova de existência do crime e indício suficiente de sua autoria) e do periculum libertatis (garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal ou assegurar a aplicação da lei penal) presentes no caput do art. 312/CPPB.
Enquanto aqueles dirão a respeito da infração cometida e sua autoria, dirão estes relação com a possibilidade de fuga ou perigosidade de estar liberto.
Pode, enfim, ser a prisão preventiva decretada em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal (art. 311/CPP).
Não cabe, como bem lembra CAPEZ [59], "prisão preventiva em caso de crime culposo, contravenção penal, e crimes em que o réu se livre solto, independente de fiança. Não se decreta, também, no caso de ter o réu agido acobertado por causa de exclusão de ilicitude".
Excepcionalmente, como bem lembra TORNAGHI [60], é cabível prisão preventiva "em crimes punidos com detenção nas seguintes hipóteses, previstas no art. 313, II e III".
5.3.1 PRESSUPOSTOS CAUTELARES DA PRISÃO PREVENTIVA
A prisão preventiva, como já vimos, pode ser decretada desde que presente esteja o pressuposto cautelar fumus delicti, ou seja, a prova da existência do crime e indício suficiente de sua autoria, coexistindo harmoniosamente com o periculum libertatis, da primeira parte do caput do art. 312/CPP.
Ou como explica MIRABETE [61], "Havendo prova da materialidade do crime e indícios suficientes da autoria, o juiz pode decretar a prisão preventiva somente quando exista também um dos fundamentos que a autorizam: para garantir a ordem pública por conveniência da instrução criminal; ou para assegurar a aplicação da lei penal."
Como primeiro elemento está a garantia da ordem pública, evitando-se assim que o autor venha a cometer novos crimes [62], além de promover a credibilidade da Justiça e como repreensão ao fato, respondendo de pronto à sociedade.
Deve porém motiva-la de tal forma que sem ela ficaria a sociedade intranqüila, desprotegida.
Pode-se, ainda, sê-la decretada para assegurar integridade da vítima (STJ, JSTJ 2/263-4); para proteger as testemunhas de acusação (STJ, RT 691/370); pela periculosidade do réu evidenciada no crime (STF, RT648/347; STJ, JSTJ 8/154)
GRECO FILHO [63] explica: "Ordem pública não quer dizer interesse de muitas pessoas, mas interesse de segurança de bens juridicamente protegidos, ainda que de apenas um indivíduo"
A garantia da ordem econômica [64], inserida pelas modificações introduzidas pelo art. 86 da Lei 8.884/94 (Lei antitruste), nos remete à idéia de delitos que envolvam bens de capital, como grandes golpes e desvios do erário público, além dos crimes contra a economia popular e contra o Sistema Financeiro Nacional. Nestes casos, interessante o posicionamento do eminente TOURINHO FILHO [65], tachando-a de esdrúxula: "...o certo seria a adoção de sanções contra a empresa, como, por exemplo, seu fechamento por determinado tempo... Os resultados seriam bem melhores... Para o ganancioso, meter-lhe a mão no bolso é o castigo maior." CAPEZ [66] entende ser essa expressão uma "repetição do requisito garantia da ordem pública".
Por conveniência [67] da instrução criminal também pode ser decretada prisão preventiva. Neste caso, é a persecução penal que deve ser protegida, uma vez que a manipulação das provas e testemunhas, além da interferência nas investigações são medidas que acabam por prejudicar a trilha em busca da verdade real dos fatos.
Nota-se sua inadmissibilidade [68] quando do encerramento da instrução.
Para a garantia da lei penal parece consenso doutrinário sua importância e necessidade. Ora, se o objetivo do processo em andamento é a elucidação dos fatos, com posterior aplicação da sentença penal condenatória, ineficaz se apresentaria a sentença com fundadas razões de que o réu se eximirá da aplicação da sanção que lhe é credor.
Nestes termos, até mesmo a fuga do réu constitui motivo justo para sua fundamentação. Outrossim, a presunção de fuga parece conflitante com a presunção de não-culpabilidade. Toda decisão determinando a prisão do processado deve estar calcada em um fundado temor, jamais fruto de ilações ou criações fantasmagóricas de fuga.
Como complementação do pressuposto cautelar exigido na primeira parte do caput do art. 312/CPP, deverá estar presente ainda o fumus delicti, segunda parte do artigo.
Do pressuposto fumus delicti, bem doutrina TOURINHO FILHO [69]: "Os pressupostos da prisão preventiva estão contidos no art. 312 do CPP. São eles a ‘prova da existência do crime’ e ‘indícios suficientes da autoria’. Assim, em caso algum poder-se-á decretá-la se ausente qualquer um deles".
A lei parece ser clara. Decretar a prisão sem que haja os pressupostos necessários é dar margem à ilegalidade.
E contra prisão ilegal o remedium juris adequado para provocar o controle da jurisdição é o Habeas-corpus [70], já que a decisão que decreta a prisão preventiva é irrecorrível, como ensina TORNAGHI [71]: "Excetuando o habeas corpus (...) nenhuma impugnação é consagrada na lei brasileira contra a decretação de prisão preventiva".
Como primeiro elemento deste pressuposto espera-se a materialidade do crime; a conduta típica.
Mas não basta somente ter sido a conduta típica. É preciso que se revista também da antijuridicidade, ou seja, sem quaisquer excludentes de ilicitude, assim dispostas no art. 23/CPB: "Não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade; II – em legítima defesa; III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de um direito."
E neste ponto pode pecar a cautelar pela precariedade das provas disponíveis no momento de sua decretação. Identificar, sem o devido processo legal com o direito ao contraditório e à ampla defesa, que o fato típico praticado pelo autor não está envolto em qualquer causa de exclusão de ilicitude não parece ser tão simples assim.
Nem sempre é possível ao juiz verificar tais ocorrências, mas deverá sê-lo imaginá-las, em juízo de possibilidade, para atender ao disposto no art. 314/CPP. E até que ponto isso é possível e qual a margem de segurança que tal raciocínio emprega são questões que exigem do magistrado o uso de seu raciocínio cognitivo e atuação discricionária.
Cediço que sua fundamentação por encontrar nos autos indícios de qualquer das excludentes não vinculará o juiz, nada obstando que, mais tarde, venha a decretá-la, cassa-la ou mesmo proferir sentença condenatória ou absolutória ao final. As decisões a cerca da prisão preventiva são, portanto, rebus sic stantibus [72].
Como segundo elemento do pressuposto fumus delicti, exige a norma "indícios suficientes da autoria".
Mas o que são "indícios suficientes [73]" ?
A Lei não exige só ‘indícios’, mas que os sejam ‘suficientes’. Mesmo que isoladamente sejam vagos, reunidos devem ser o bastante para o convencimento.
Os indícios devem estar ligados simultaneamente a dois conceitos lógicos-aritiméticos: possibilidade e probabilidade [74]. Só então, satisfeitos, completa está a exigência subjetiva da norma. E contenta-se ela com elementos probatórios ainda que não contundentes e unívocos, não sendo necessária, portanto, a certeza absoluta da autoria, tipicidade da conduta e sua antijuridicidade, requisitos básicos de uma condenação.
Como nos ensina o saudoso ESPINOLA FILHO [75]: "Não se exige, ao propósito, prova pontual. Fala a lei em indícios suficientes. E essa suficiência se relaciona com a prisão preventiva, que não é sentença."
Assim, além de presentes indícios de ter havido o crime e de ter sido o réu autor, inexistir devem também os requisitos negativos tanto do fato quanto da autoria. E essa possibilidade deve ser tal, que motive inequivocamente o juiz.
Finalmente, como quer TORNAGHI [76], "No entanto não bastam quaisquer indícios: é preciso que os indícios sejam suficientes para admitir-se a autoria".
A despeito destes indícios, a recomendação nro. 5 das conclusões do XXV Congresso da Associação Internacional de Direito Penal, ocorrido em abril de 1992, Toledo, Espanha, proíbe a cautelar quando não haja indícios sérios. [77]
Não se trata aqui de exigir a mesma certeza que se exige na condenação. [78]
Infelizmente algumas decisões cautelares se baseiam apenas na presença dos pressupostos legais. Não se argumentam quais são esses pressupostos (ainda que pleonasticamente), nem mesmo (mais grave ainda) porque tais circunstâncias levaram o magistrado ao convencimento de sua decisão.
E essas são as palavras chaves: Fundamentação, motivação. O pressuposto de toda decisão é a motivação Não pode haver fundamentação sem motivação. E sem fundamentação [79] a decisão é um nada. Um nada jurídico que expõe o paciente à mais dura das penas que recai sobre sua vida: sua própria liberdade.
Mesmo existindo tais indícios, é preciso ainda seja culpável sua conduta; que o agente a tenha praticado com a negativa dos três elementos da culpabilidade [80] penal: Imputabilidade [81], potencial consciência da ilicitude do fato e a exigibilidade da conduta diversa.
Ainda que em sede de probabilidade – note os fatos ainda não foram comprovados e nem mesmo debatidos judicialmente – deve os elementos convencer o juiz de que sua conclusão fora acertada.
Não poderá faze-lo através de meros juízos de possibilidade. Em tema tão delicado quanto o da restrição da liberdade de ir e vir, exige-se da autoridade judicial que, ao exarar a cautela demonstre concretamente a probabilidade da infringência do disposto no art. 312 daquele diploma. A legalidade de mãos dadas à necessidade.
Deve, enfim, ser proporcional. Os mesmos requisitos que demandam contra um suposto criminoso podem não demandar contra outro. As lições do Marquês de Beccaria no custo de sua liberdade, nos ensinam sobre a proporcionalidade das penas e das medidas de coercibilidade ante aos diversos fatos típicos de nosso diploma legal. Ensinou-nos ainda que o cárcere, por sua natureza penosa, dever durar o menor tempo possível.
Há, enfim, necessidade de comprovar os requisitos autorizadores da custódia cautelar [82].
E comprová-los motivadamente, sob pena de nulidade.
5.5 PRISÃO DECORRENTE DE SENTENÇA CONDENATÓRIA RECORRÍVEL
A prisão em virtude de decisão condenatória recorrível também possui natureza cautelar [83], e objetiva resguardar o resultado em definitivo do processo, face ao provável perigo de fuga, para se eximir da aplicação da sanção penal que, em primeiro grau já lhe fora imposta. E essa pronúncia deveria acarretar a ordem de prisão.
Ocorre que o art. 408, § 2º, e o art. 594/CPPB, respectivamente, autorizam a não-expedição do mandado de prisão se o acusado for primário e de bons antecedentes.
Isto significa que se o acusado não for primário e de bons antecedentes, há apenas uma presunção juris tantum de necessidade da medida.
Contrario sensu, sendo ele primário e de bons antecedentes, a expressão ‘pode’ no texto legal não desperta discricionariedade no juiz, que ‘deve’ não utilizar-se da medida.
É porém discutida essa posição. Para alguns julgados [84], a expressão ‘poderá’ trata-se de mera faculdade do juiz, enquanto que em outros [85], um dever jurisdicional face aos preceitos constitucionais, em face ainda da gravidade da medida. GRECO FILHO [86] entende incabível tal discussão. Para ele, a liberdade é um direito do acusado, estando presente a situação legal.
Certo é que tal medida poderá deixar de existir se reformada a sentença condenatória. Consoante ao entendimento da súmula 09 do STJ, "a exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência."
Entendimento contrário teve DELMANTO JÚNIOR [87]. Para ele, a forma como está prevista o art. 594/CPP atenta não só contra a presunção de inocência como ao duplo grau de jurisdição, preceitos constitucionais.
Não obstante a esse entendimento do Pretório, vários julgados se manifestam quanto a exigibilidade da demonstração da efetiva necessidade da cautela, uma vez que a condenação provisória, por si só, não impõe a restrição à liberdade.
Pedimos licença para transcrever algumas ementas à respeito, julgando serem de suma importância para defender esse posicionamento doutrinário: "se durante a instrução criminal o réu manteve a liberdade, porque a custódia era desnecessária, impossível a prisão durante o recurso baseada simplesmente em maus antecedentes reconhecidos na sentença" (TACrim-SP, RT 658/297).
Ou então: "segundo revelam os autos, o paciente, embora não tenha bons antecedentes, permaneceu em liberdade durante toda a instrução. Não foi preso em flagrante e não se entendeu necessária sua prisão preventiva. E, em liberdade, não deu causa de qualquer embaraço quanto ao processamento da ação penal. De justiça, portanto, deferir-se a ele, pelo menos, o direito de continuar em liberdade até o julgamento definitivo da ação penal" (TACrim-SP, HC 198.476/7). No mesmo sentido, TJSP, HC 94.619-3.
Lembra ainda GRINOVER [88]: "A falta de efetiva apreciação da necessidade da cautela importará, também quanto à prisão decorrente de sentença condenatória recorrível, vício de fundamentação, capaz de fazer incidir a sanção de nulidade por desatendimento aos preceitos constitucionais já indicados."