Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica.

A desconsideração no ordenamento jurídico brasileiro e o novo Código de Processo Civil

Exibindo página 1 de 2
Agenda 18/05/2014 às 22:53

O presente artigo almeja tratar as questões processuais atinentes ao importante instituto da desconsideração da personalidade jurídica, abordando o seu momento jurisprudencial atual bem como as perspectivas de alterações no novo Código de Processo Civil.

INTRODUÇÃO

O surgimento da teoria da desconsideração da personalidade jurídica remonta ao século XIX, mais precisamente à Inglaterra, tendo no leading case conhecido como Salomon vs. Salomon & Co. a primeira manifestação conhecida de tal fenômeno. Posteriormente, houve o desenvolvimento da teoria da desconsideração da personalidade jurídica na Alemanha e Europa continental, de maneira que é reconhecida hoje em diversos e diferentes ordenamentos jurídicos. 

O presente artigo, almeja abordar os aspectos processuais da disregard doctrine e, por fim, suscitar as modificações previstas no Novo Código de Processo Civil, cingindo-se a elucidar as questões processuais que envolvem o tema, abordando questões sobre a legitimidade para a propositura da medida, o ônus probatório, as diversas correntes existentes quanto à aplicação da desconsideração da personalidade jurídica à luz da atual sistemática processual. 

Ao fim, ventilam-se as modificações trazidas pelo projeto do novo Código de Processo Civil, para realizar uma abordagem crítica e aclarar as principais mudanças práticas, bem como as possíveis soluções dos dissensos jurisprudenciais que ocorreram em razão da inexistência de previsão legal anterior abordando o tema. 

A elaboração do presente estudo se deu principalmente através do método de revisão bibliográfica.

1. ASPECTOS PROCESSUAIS DA DESCONSIDERAÇÃO JURÍDICA.

1.1      Considerações iniciais.

Após a positivação da teoria do levantamento do véu no ordenamento jurídico, coube à doutrina, ante à inexistência de previsões processuais expressas, discutir e propor os mecanismos adequados à instrumentalização que permitiria a aplicação do instituto - embora tenham existido projetos de lei, até hoje inexiste previsão processual acerca do procedimento de desconsideração - surgiu assim a controvérsia atinente à dispensabilidade ou obrigatoriedade de uma ação própria para decretação do levantamento do véu permitindo o posterior alcance aos bens dos sócios.

Anteriormente à instauração do dissenso acadêmico, o falecido deputado Ricardo Fiúza elaborou o projeto de lei 2.426/2003[1] que, relevando-se algumas falhas técnicas presentes em seu texto originário[2], contemplava significativos avanços na sistematização e adequação da disregard ao campo do direito processual, entre eles importante ressaltar:

I)          O estabelecimento de contraditório prévio, facultando o exercício da ampla defesa em momento anterior à aplicação da teoria;

II)        Instauração de incidente processual apensado aos autos principais;

III)       Prazo de defesa de 05 (cinco) dias, assegurando um razoável prazo para o interessado promover sua defesa e conferindo maior celeridade ao incidente, minorando os riscos de inefetividade da medida;

IV)      Assegurou a necessidade de citação dos prejudicados que não integravam a relação processual, bem como a intimação pessoal daqueles já integrantes; e

V)        Previa a vedação da utilização da desconsideração da personalidade jurídica por analogia, somente podendo ser decretada nos casos expressamente previstos em lei, restringindo a aplicação do referido instituto.

Tornando ao campo doutrinário, as duas correntes que se desenvolveram sobre a forma de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica controvertiam acerca da necessidade ou não de ação autônoma para permitir a desconsideração da personalidade jurídica, possuindo o direito fundamental ao devido processo legal como principal núcleo da controvérsia.

Contudo, antes de adentrar no âmbito do embate doutrinário, é necessário tecer breves considerações acerca da legitimidade e do onus probandi que circundam a aplicação do instituto.

1.2  Da legitimidade

A legitimidade para requerer o levantamento do véu da personalidade jurídica possui previsão legal no Art. 50 do Código Civil, que assim dispõe: “[...]o juiz poderá decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo[...]”. 

A previsão legal disposta no referido artigo não deixa dúvidas ou enseja controvérsia, dependendo sempre do requerimento do credor ou do Parquet, quando estiver figurando no processo como autor ou fiscal da lei, vedando a atuação ex officio do magistrado, posto que condiciona a atuação deste a requerimento das partes expressamente legitimadas.

Justificando a legitimação do Ministério Público para propor a medida de superação da personalidade, importante colacionar lição de ROSENVALD e FARIAS, citando Deborah Pierri:

“É fácil, pois, depreender que esteja atuando como parte autora ou mês como fiscal da lei (custos legis), o Parquet pode propugnar pela aplicação do disregard doctrine. Justifica-se essa legitimidade por “medida de economia e de harmonização”, “calcado na sua missão constitucional de defesa da ordem jurídica e dos direitos assegurados pela Constituição Federal”.[3]

Ponto pouco abordado pela doutrina é o referente à legitimidade da própria pessoa jurídica para requerer a desconsideração, conforme previsto no enunciado 285 da Jornada de Direito Civil[4]. Assim, estabeleceu-se por renomados civilistas ser possível que a pessoa jurídica requeira ao juiz a superação da personalidade jurídica e consequentemente efeitos sobre a esfera patrimonial de um sócio, não havendo qualquer óbice no Ordenamento Jurídico.[5]

Impende ressaltar que o limite subjetivo da desconsideração da personalidade jurídica na teoria maior é restrito àqueles sócios/administradores que praticaram o ato, tal limite subjetivo, por consequência, também enseja um limite temporal, posto que somente poderão ser responsabilizados os sócios que integravam a pessoa jurídica ao tempo do ato lesivo.

Desta feita, estando à frente da sociedade um novo grupo de pessoas em nada comum com os administradores pretéritos, revela-se defensável, embora com aparente atecnia, que a pessoa jurídica, presentada pelos novos sócios, manifeste-se para que ocorra a desconsideração da personalidade ainda que seus efeitos se reportem à desconsideração do quadro social não mais existente, para, assim, atingir os bens dos ex-sócios que praticaram o ato abusivo.

1.3 Do Ônus probatório

Inicialmente, adentrando na seara processual do instituto, incumbe abordar a questão referente ao onus probandi nas hipóteses em que se pretende superar a personalidade jurídica de uma sociedade para atingir o patrimônio de seus sócios.

Durante o desenvolvimento do presente trabalho, restou reiterado em inúmeras ocasiões a conotação de excepcionalidade que possui a aplicação do levantamento do véu, só podendo ser invocada nas hipóteses em que houverem ocorrido os requisitos legalmente previstos.

Consoante exposto durante a apresentação do tema sob o prisma do direito material, para que se aplique a superação da separação do ente moral e de seus sócios deve-se comprovar a ocorrência do desvio de finalidade ou da confusão patrimonial por parte dos sócios ou administradores. Desta feita, a superação da autonomia patrimonial depende da comprovação de uma das supracitadas hipóteses, de modo que se revela imprescindível a atividade cognitiva do julgador para que se obtenha o provimento judicial que produza a ineficácia episódica da separação patrimonial e incida a responsabilidade pelo débito diretamente na figura dos sócios.

Dependendo a desconsideração de comprovação do desvio de finalidade ou da confusão patrimonial, deve-se, nesse diapasão, inquirir a quem interessa a desconsideração para, obtendo tal resposta, seguir a regra geral insculpida no Código de Processo Civil.

Insofismavelmente, é o credor quem, usualmente, formula o pedido de desconsideração da personalidade jurídica, possuindo o interesse em ver a aplicação da medida de ineficácia. Porém, como restará demonstrado adiante, durante a Jornada de Direito Civil, restou consignado no enunciado 285 que: “A teoria da desconsideração da personalidade jurídica, prevista no art. 50 do Código Civil, pode ser invocada pela pessoa jurídica em seu favor”, de modo que em algumas ocasiões a pessoa jurídica poderá ter o interesse de promover a desconsideração para atingir os bens do sócio/administrador que à época executou os atos reputados como indesejáveis pelo Ordenamento Jurídico. [6]

Caberá, portanto, ao credor o ônus de provar a ocorrência do abuso de direito através da confusão patrimonial ou desvio de finalidade, posto que são elementos constitutivos do direito Assim, há que obedecer ao comando geral referente ao ônus probatório, tal qual insculpido Art. 333 do Código de Processo Civil, in verbis:

Art. 333. O ônus da prova incumbe:          

I - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;

[...]

A solução se mostra como a mais adequada, sobretudo quando o Código Civil consagra, no art. 422, a boa-fé como dever do contratante durante toda a vigência, da negociação à execução dos negócios jurídicos. A má-fé revela-se, pois, como exceção, como fato extraordinário, devendo ser provada pelo interessado, uma vez que a boa-fé do sócio/administrador é presumida por imposição legal.

Ante o exposto, uma vez que as hipóteses permissivas da aplicação do instituto remetem à necessidade de demonstração da ocorrência dos requisitos insculpidos no art. 50 do Código Civil, chega-se à inabalável conclusão de que há o interesse do credor no reconhecimento do fato, como conclui Dinamarco, com assento na lição de Chiovenda: “Se a fraude é alegada pelo credor e seu reconhecimento a ele beneficiará, é a ele que cabe o ônus de demonstrar a efetiva ocorrência do alegado fato fraudulento” [7].

1.4 O devido processo legal: o contraditório e a ampla defesa x efetividade processual

Como exposto anteriormente, a ausência de previsão legal específica instrumentalizando a aplicação do levantamento do véu ensejou a criação de duas correntes de pensamento com o objetivo de adequação da teoria ao vigente Direito Processual. A controvérsia instaurada possui como ponto nodal a dicotomia efetividade e segurança jurídica, bastante em evidência na doutrina do moderno processo civil.

Em defesa da necessidade de ação própria como forma de observância ao devido processo legal, posicionaram-se renomados autores de escol como Fredie Didier Jr[8], Ada Pellegrini Grinover[9], Cândido Rangel Dinamarco[10], Fábio Ulhoa Coelho[11].

Tomando o posicionamento mais conservador e fundamentando a necessidade de processo autônomo como consectário lógico decorrente da excepcionalidade da medida que acarreta na ineficácia da personalidade jurídica, Ulhoa Coelho ensina que:

“Simples despachos em processos de execução movidos contra a sociedade, determinando a penhora de bens dos sócios importam e flagrante desobediência ao direito constitucional ao devido processo legal. Ao direito constitucional ao devido processo legal, de que é titular o sócio da sociedade limitada, corresponde o dever do credor social de promover a prévia ação de conhecimento, citá-lo, provar o pressuposto de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica (fraude ou abuso de direito), obter sentença condenatória transitada em julgado para, somente depois, postular a penhora dos bens do patrimônio dos bens do membro da pessoa jurídica.”[12]

Utilizando-se das lições de Ulhoa Coelho, Ada Pelegrini também sustenta a necessidade de ação própria, sem se atentar às questões concernentes à efetividade da medida, demonstrando acolher uma prevalência da ampla defesa em face da efetividade processual:

“Esse processo de conhecimento que se exige, fique claro, é o processo de conhecimento condenatório, no qual se pretende a formação do título executivo para que, depois, se promova a invasão patrimonial. A via própria assim exigida, portanto, não é necessariamente um processo que tenha por objeto a desconsideração da personalidade jurídica. Trata-se de ação própria no sentido de que aquele cujo patrimônio poderá ser atingido, via desconsideração,deve figurar no processo de conhecimento condenatório para que, também em relação a ele, se forme o título executivo. Em outras palavras e como já dito, não é possível penhorar bens de uma pessoa – como resultado da desconsideração da personalidade jurídica de outrem – sem que, em regular processo de conhecimento condenatório,de cognição plena e profunda, cercada por todas as garantias do contraditório, sejam examinados os pressupostos autorizadores da desconsideração e se imponha a sanção àqueles cujo patrimônio deverá ser impactado na sucessiva execução.”[13]

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Denota-se, pois, como expõe Bruschi{C}[14], que a necessidade do ajuizamento de ação própria com o escopo de obter a sentença desfavorável aos sócios se sustenta também com observância do princípio nulla executio, sine titulo.  

Noutro giro, defendendo a desnecessidade de ação autônoma, afirmando que apenas a demonstração da má utilização da personalidade jurídica, isto é, comprovados pela parte o abuso de direito através do desvio de função ou confusão patrimonial, estaria o juiz autorizado, em fase de execução, a determinar a constrição de bens dos sócios ou administradores, com o intento de garantir a satisfação do título, conferindo maior efetividade ao processo.[15]

Fredie Diddier, apesar de ser considerado por Gilberto Bruschi como adepto da 1ª corrente, e suscitar em seu artigo que alinha o seu posicionamento ao que fora exposto por Fábio Ulhoa Coelho, apresenta uma posição intermediária, mais próxima da 2ª corrente do que das lições do ilustre comercialista.

A principal diferença existente entre a tese formulada pelos doutrinadores alinhados à 2ª corrente e a tese defendida Fredie Diddier é a obstinação deste em assegurar refutar qualquer ressalva ao exercício do contraditório, ainda que a oportunização se dê em momento posterior, dado o caráter de sanção da medida.

Assim, o renomado processualista baiano sustenta em sua defesa da necessidade de contraditório prévio à desconsideração que:

“Não se pode, na ânsia por uma efetividade do processo, atropelar garantias processuais conquistadas após séculos de estudos e conquistas. Imaginar a aplicação de uma teoria eminentemente excepcional, que inquina de fraudulenta a conduta deste ou daquele sócio, sem que se lhe dê a oportunidade de defesa - ou somente se lhe permita o contraditório eventual dos embargos à execução, com necessidade da prévia penhora dos embargos de terceiro ou do recurso de terceiro -, é afrontar princípios processuais básicos.”[16]

 Destarte, afastando-se da lição de Fábio Ulhoa e Ada Pelegrini, prossegue defendendo a possibilidade de haver desconsideração sem que os sócios tenham integrado a relação processual na fase de conhecimento:

“admite-se como lícita, também, a citação do sócio já no processo de execução, desde que se instaure um incidente cognitivo – o que não é raro nem esdrúxulo, basta ver o exemplo do concurso de credores – no processo executivo, para que se apure, em contraditório, o preenchimento dos pressupostos legais que autorizam a aplicação da teoria, bem como se lhe permita o exercício de uma ampla defesa. Não é necessária a instauração de um processo de conhecimento com esse objetivo; o que se impõe é a existência de uma fase cognitiva, mesmo incidente, de modo que o contraditório possa ser exercido.”[17]

Reforçando a aproximação entre a tese defendida por DIDDIER e os autores que alegam que a desconsideração prescinde de ação própria, incumbe colacionar lição de Cândido Rangel Dinamarco - tal qual citado por Eduardo Arruda Alvim -, defendendo a necessidade de contraditório prévio:

“indispensável colocar em um processo ou fase de conhecimento, ou ao menos em um incidente idôneo do processo ou fase executiva, os fatos que  o credor afirme serem caracterizadores do abuso da personalidade jurídica; nesse processo ou nesse incidente, o juiz, em decisão preparada por regular contraditório, declarará se realmente houve a fraude e consequentemente os bens do sócio responderão, ou se fraude alguma houve e nenhuma personalidade há a ser desconsiderada”[18]

Eduardo Arruda Alvim e Daniel William Granado, reiterando a desnecessidade de ajuizamento de uma nova ação, respeitando o devido processo legal, não foge ao cerne da temática e expõe, de modo nítido, sua tese:

“Isso não quer dizer, todavia, que o contraditório daquele em detrimento do qual houve a desconsideração não deva ser exercido.

Evidentemente, conquanto, reputemos desnecessária a propositura de ação autônoma com a finalidade de estender a responsabilidade das obrigações da pessoa jurídica ao sócio, por se tratar de exceção ao princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica – que  traduz a ideia de que a pessoa jurídica não se confunde com a pessoa de seus membros – a desconsideração da personalidade jurídica apenas deve ser aplicada quando devidamente constatados os pressupôs necessários em um processo já existente, em prol da efetividade do processo. Deveras seria muito dispendioso e moroso fazer com que o credor ajuizasse nova ação tão somente para efetivar a desconsideração da personalidade jurídica. Mencionada constatação, ainda que possa ser aferida como incidente, em processo já em curso, deve observar o princípio do devido processo legal, possibilitando ao sócio oportunidade de defesa.”[19]

Gilberto Gomes Bruschi, em excelente obra monográfica, posteriormente publicada como livro, aborda minuciosamente os aspectos processuais da doutrina da disregard, sustentando a necessidade da tutela jurisdicional diferenciada em questões que versem sobre temas específicos, como no caso da penetração da personalidade jurídica, traz três fundamentos centrais que, no entendimento do referido autor, permitem a aplicação da teoria sem a imperiosidade de ajuizamento de ação própria[20].

O primeiro fundamento{C}[21] esposado pelo autor reporta-se à “ordem metodológica e prática”, aduzindo a contrariedade ao princípio da efetividade processual. De acordo com o mesmo, o alongado lapso temporal necessário para que sobreviesse o trânsito em julgado da sentença em um processo próprio de conhecimento acarretaria, usualmente, na ineficiência da medida, posto que a comum morosidade na obtenção da sentença de mérito, na forma do art. 269 do CPC, resultar, de certo, em medida inócua.

O segundo sustentáculo da tese defendida por Bruschi arvora-se em uma interpretação – ressalte-se, um tanto quanto controvertida[22] - sobre a posição dos sócios como terceiros, invocando os arts. 592, II[23] e 596[24] do Código de Processo Civil.

Desta feita, sustenta que a desconsideração e consequente constrição de bens independem de contraditório prévio, uma vez que os sócios ingressariam na lide como terceiros, passando a exercer a defesa através de embargos de terceiros, exceção de pré-executividade ou até agravo de instrumento.

O terceiro e último argumento equipara a natureza jurídica de ineficácia da medida aos casos em que ocorre na fraude à execução. Sustenta, pois, que somente se exige a sentença para desconstituir atos anuláveis, como na fraude contra credores.

Embora possua argumentos sólidos, discorda-se da forçosa conclusão do supracitado autor, a seguir transcrita:

"Para dar ensejo à efetividade processual tão importante nos dias atuais, o exequente trará aos autos as provas que tiver e fará o pedido por simples petição, para que o magistrado decida, sem a manifestação da parte contrária, se irá ou não desconsiderar a personalidade jurídica, sem, contudo, obstar o direito de defesa e o contraditório, que serão postergados.

De convir, que é perfeitamente possível e correto o juiz examinar de maneira superficial as provas, trazidas pelo exequente e que embasaram seu pedido para desconsiderar a personalidade jurídica do executado, por mera decisão interlocutória, fazendo ou não com que se tornem passíveis de penhora os bens das pessoas naturais ou mesmo de outras pessoas jurídicas, que constituem a executada primitiva.”[25]

Os três argumentos trazidos pelo autor possibilitam, insofismavelmente, a conclusão da desnecessidade de ação autônoma para ensejar a responsabilização dos sócios pela obrigação originariamente contraída pela pessoa jurídica, no entanto, a conclusão de que ingressarão a lide como terceiros e terão, assim, em regra, o contraditório postergado, representa ofensa a garantias processuais como defendido por Fredie Didier.

2 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E SUA APLICAÇÃO PRÁTICA.

2.1 A Posição Jurisprudencial

Inicialmente, os Tribunais divergiram quanto à aplicação processual da teoria do levantamento do véu, discutiu-se sobre qual o momento em que se deveria pleitear tal medida, bem como pela (des)necessidade de ação própria para possibilitar a superação da personalidade e consequente alcance aos bens dos sócios, reflexos da discussão doutrinária no campo da aplicação do instituto.

No entanto, a partir de meados da primeira década do presente milênio, o Superior Tribunal de Justiça, solucionando e pacificando a controvérsia sobre a disregard doctrine no âmbito jurisprudencial, adotou o entendimento pela desnecessidade de ação própria, podendo a desconsideração ser efetivada já no âmbito do processo de execução sem a necessidade de ação de conhecimento própria ou independentemente de participação dos sócios na fase prévia a formação do título, bastando a decisão judicial no bojo da própria execução ou através de incidente processual, nesse sentido transcreve-se:

DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS E MATERIAIS. OBSERVÂNCIA. CITAÇÃO DOS SÓCIOS EM PREJUÍZO DE QUEM FOI DECRETADA A DESCONSIDERAÇÃO. DESNECESSIDADE. AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO GARANTIDOS COM A INTIMAÇÃO DA CONSTRIÇÃO. IMPUGNAÇÃO AO CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. VIA ADEQUADA PARA A DISCUSSÃO ACERCA DO CABIMENTO DA DISREGARD. RELAÇÃO DE CONSUMO. ESPAÇO PRÓPRIO PARA A INCIDÊNCIA DA TEORIA MENOR DA DESCONSIDERAÇÃO. ART. 28, § 5º, CDC. PRECEDENTES.

[...]2. A superação da pessoa jurídica afirma-se como um incidente processual e não como um processo incidente, razão pela qual pode ser deferida nos próprios autos, dispensando-se também a citação dos sócios, em desfavor de quem foi superada a pessoa jurídica, bastando a defesa apresentada a posteriori, mediante embargos, impugnação ao cumprimento de sentença ou exceção de pré-executividade.

3. Assim, não prospera a tese segundo a qual não seria cabível, em sede de impugnação ao cumprimento de sentença, a discussão acerca da validade da desconsideração da personalidade jurídica. Em realidade, se no caso concreto e no campo do direito material fosse descabida a aplicação da Disregard Doctrine, estar-se-ia diante de ilegitimidade passiva para responder pelo débito, insurgência apreciável na via da impugnação, consoante art. 475-L, inciso IV. Ainda que assim não fosse, poder-se-ia cogitar de oposição de exceção de pré-executividade, a qual, segundo entendimento de doutrina autorizada, não só foi mantida, como ganhou mais relevo a partir da Lei n. 11.232/2005.

4. Portanto, não se havendo falar em prejuízo à ampla defesa e ao contraditório, em razão da ausência de citação ou de intimação para o pagamento da dívida (art. 475-J do CPC), e sob pena de tornar-se infrutuosa a desconsideração da personalidade jurídica, afigura-se bastante - quando, no âmbito do direito material, forem detectados os pressupostos autorizadores da medida - a intimação superveniente da penhora dos bens dos ex-sócios, providência que, em concreto, foi realizada.

5. No caso, percebe-se que a fundamentação para a desconsideração da pessoa jurídica está ancorada em "abuso da personalidade" e na "ausência de bens passíveis de penhora", remetendo o voto condutor às provas e aos documentos carreados aos autos. Nessa circunstância, o entendimento a que chegou o Tribunal a quo, além de ostentar fundamentação consentânea com a jurisprudência da Casa, não pode ser revisto por força da Súmula 7/STJ.

6. Não fosse por isso, cuidando-se de vínculo de índole consumerista, admite-se, a título de exceção, a utilização da chamada "teoria menor" da desconsideração da personalidade jurídica, a qual se contenta com o estado de insolvência do fornecedor somado à má administração da empresa, ou, ainda, com o fato de a personalidade jurídica representar um "obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores", mercê da parte final do caput do art. 28, e seu § 5º, do Código de Defesa do Consumidor.

7. A investigação acerca da natureza da verba bloqueada nas contas do recorrente encontra óbice na Súmula 7/STJ.

8. Recurso especial não provido.

(REsp 1096604/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 02/08/2012, DJe 16/10/2012)

Embora o julgado supratranscrito aborde questão protegida pela teoria menor da desconsideração, resta evidente que o fundamento da decisão ocorreu na conformidade da teoria maior, posto que constatado os requisitos insculpidos no art. 50 do Código Civil.

Apenas como exemplificativo, segue a vasta jurisprudência da Corte no mesmo sentido[26]:

PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO DE TÍTULO JUDICIAL. ART. 50 DO CC/02. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA INVERSA. POSSIBILIDADE.

[...]V  A desconsideração da personalidade jurídica configura-se como medida excepcional. Sua adoção somente é recomendada quando forem atendidos os pressupostos específicos relacionados com a fraude ou abuso de direito estabelecidos no art. 50 do CC/02. Somente se forem verificados os requisitos de sua incidência, poderá o juiz, no próprio processo de execução, levantar o véu da personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja os bens da empresa.

VI À luz das provas produzidas, a decisão proferida no primeiro grau de jurisdição, entendeu, mediante minuciosa fundamentação, pela ocorrência de confusão patrimonial e abuso de direito por parte do recorrente, ao se utilizar indevidamente de sua empresa para adquirir bens de uso particular.

VII Em conclusão, a r. decisão atacada, ao manter a decisão proferida no primeiro grau de jurisdição, afigurou-se escorreita, merecendo assim ser mantida por seus próprios fundamentos.

Recurso especial não provido.

(REsp 948.117/MS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 22/06/2010, DJe 03/08/2010)

DIREITO  FALIMENTAR  E  PROCESSUAL  CIVIL.  OFENSA  AO  ART. 535  DO  CPC.  NÃO-OCORRÊNCIA.  DECISÃO  INTERLOCUTÓRIA CONCISA.  POSSIBILIDADE.  FALÊNCIA.  EXTENSÃO  A  EMPRESA DA  QUAL  É  SÓCIA  A  FALIDA.  POSSIBILIDADE.  ESTRUTURA MERAMENTE FICTÍCIA.  CONFUSÃO PATRIMONIAL EVIDENTE. RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO.

[...] 5. É firme a jurisprudência em proclamar a possibilidade de se levantar o véu da pessoa jurídica no próprio processo falimentar ou em execução individual, sendo desnecessário o ajuizamento de ação própria.

6. Restando incólume a arrecadação do bem determinada pelo juízo falimentar, em decorrência da extensão da falência à empresa controlada, poderá o exequente reaver seu crédito, se for o caso, habilitando-o na falência da sociedade controladora.

7. Recurso especial não conhecido.

(REsp 331.921/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 17/11/2009, DJe 30/11/2009)

No primeiro julgado supratranscrito, de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, a quarta turma do Superior Tribunal de Justiça adotou a tese tal qual sustentada pelo jurista Gilberto Gomes Bruschi, outros julgados reiteram tal posicionamento[27].

Desta feita, prepondera, no STJ, a tese segundo a qual, diante da necessidade de se conferir eficiência à decisão judicial que levanta o véu do ente moral, não ocorre a violação ao contraditório, ampla defesa ou ao devido processo legal no simples fato de o devedor não ser instado a se manifestar em momento anterior à constrição de seus bens. Uma vez que, segundo tal corrente, o contraditório restará oportunizado em momento posterior, quando poderá o executado interpor os recursos cabíveis, apresentar embargos ou exceção de pré-executividade.

2.2      Solução proposta

Ante o exposto, dada a ausência de qualquer regra processual em vigor normatizando o tema, o presente trabalho propõe a aplicação de uma solução intermediária[28], que valorize o exercício do contraditório em regra prévio – somente aceitando, excepcionalmente, que ocorra em momento anterior ao exercício do contraditório nas hipóteses de periculum in mora cumulado com o fumus boni iure - e o mais amplo possível, através da análise casuística dos fatos que ensejam a desconsideração do ente moral, estando diante de verdadeira providência cautelar à alguns casos.

Isto porque não deve ser adotada uma corrente como excludente da outra, haja vista que haverá casos concretos em que a necessidade de os sócios integrarem obrigatoriamente o polo passivo já na ação de conhecimento que findou por formar o título executivo representaria apenas excesso de formalismo e acarretaria, por vezes, numa medida ineficaz, tornando a utilização da pessoa jurídica para intentos fraudulentos uma benesse ante a tardia sanção.

Entretanto, isto não implica dizer que não deva o sócio fazer parte do polo passivo no processo de conhecimento, de maneira alguma. Em regra, deverá o sócio, sempre que houver indícios em momentos anteriores à propositura da ação, integrar o polo passivo da lide já na fase de conhecimento, cabendo, portanto, ao autor promover a sua citação. Deste modo, a citação dos sócios/administradores desde o início da ação de conhecimento permitirá o pleno exercício do contraditório e com a possível formação de um titulo executivo já de responsabilidade dos sócios.

Nesse diapasão, é necessário identificar o momento em que ocorreu a hipótese que autoriza a desconsideração da personalidade jurídica, bem como se o autor já possuía conhecimento do fato em momento anterior à propositura da ação, se conhecidos pelo autor os pressupostos é imperioso que promova a citação daqueles cujos bens se pretendem atingir através da desconsideração.[29]

Contudo, como nem sempre o credor tem ciência do abuso de direito perpetrado pelo ente moral em momento anterior à propositura da ação, bem como o caráter excepcional da aplicação da referida medida não permite a presunção da ocorrência de alguma das hipóteses previstas no Art. 50 do Código Civil, ou ainda o abuso pode ocorrer durante o curso do processo, defende-se a tese de instauração de um incidente cognitivo no bojo do processo de execução que suspenderia este até a prolação da decisão definitiva do incidente.

Tal incidente, evidentemente, deve possibilitar o exercício do mais amplo contraditório por parte do executado, compreendendo as mais irrestritas discussões, sem os limites típicos impostos pelo processo de execução.

Conclui-se, pois, ser esta posição intermediária a que aparenta possuir a maior razoabilidade na aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, posto que, através de uma interpretação instrumental do Código de Processo Civil, intenta não vergastar o devido processo legal, o contraditório ou a ampla defesa, sem escusar-se diante da necessidade de conferir efetividade à medida protetiva do instituto da pessoa jurídica, postergando o contraditório apenas nos casos excepcionais de aplicação da medida.

2.3      Do contraditório. Meios de defesa por parte do sócio/administrador

Passada a exposição de como ocorre a instrumentalização da superação da personalidade jurídica, almeja-se expor as formas de defesa do sócio/administrador que passa a sofrer com os efeitos da responsabilização superveniente.

Diante das duas possibilidades de fazer incidir a desconsideração da personalidade jurídica - através de ação própria na qual o sócio integra a lide desde o começo ou nos casos onde se decide mediante decisão interlocutória no bojo do processo de execução ou seu incidente - existem diferentes meios de defesa oponíveis pelo sócio responsabilizado.

A decisão que desconsidera a personalidade jurídica é – conforme entendimento jurisprudencial majoritariamente exposto - em regra uma decisão interlocutória, proferida em processo de execução, surgindo para o sócio uma decisão desfavorável com efeitos imediatos, haja vista a constrição patrimonial decorrente daquela decisão.

Assim, diante de tal decisão interlocutória surge a possibilidade de interpor Agravo de Instrumento como terceiro interessado em face deste ato judicial para, através do efeito suspensivo do agravo, impedir que a decisão impugnada produza efeitos até posterior decisão no âmbito recursal, no qual a instância ad quem deve permitir uma cognição ampla em razão da restrição ao contraditório existente no Juízo a quo.

Nesse sentido, aponta BRUSCHI:

“Caberá o agravo de instrumento, em razão de existir a possibilidade de serem praticados atos executivos contra o sócio, terceiro na execução, porque este se torna jurídica e economicamente prejudicado pela decisão interlocutória que desconsiderou a pessoa da executada original.

Aquele sócio da executada que sofrerá a penhora sobre seus bens, embora não sendo parte na execução, mas tendo sofrido prejuízo em decorrência da decisão interlocutória que entendeu estarem presentes os requisitos para a desconsideração, é juridicamente interessado em recorrer[...]”[30]

Assim, diante da decisão que causa algum prejuízo ou risco deste, o sócio pode, como terceiro interessado, tornar-se parte legítima para interpor recurso de agravo de instrumento, posto que a decisão interlocutória que fez recair sobre ele a responsabilidade por atos originariamente de responsabilidade de terceiro lhe é prejudicial e faz surgir a pretensão recursal do mesmo.

Outro meio de defesa oponível pelo sócio que sofre os efeitos da execução sem ter participado da ação de conhecimento que originou o título executivo é através da utilização da exceção de pré-executividade, atentando-se, no entanto, que tal instrumento só se revela útil nas ocasiões em que pode demonstrar o descabimento da medida através de provas documentais, não sendo concebível a dilação probatória, ante a natureza de tal exceção.

Questão polêmica é quanto ao método usual de defesa nas ações de execução. O sócio responsabilizado deve opor embargos de terceiro ou embargos do devedor?

A controvérsia decorre justamente do desentendimento jurisprudencial. Se houver o entendimento de que os sócios atingidos são terceiros caberá embargos de terceiros, se for o de que são partes caberá a impugnação ao cumprimento de sentença ou embargos de devedor.[31]

No esteio da jurisprudência dominante, deve-se entender que o sócio não participa, em regra, da relação processual que dá origem ao título executivo capaz de atingir seu patrimônio após a ulterior decisão de desconsideração. Portanto, o sócio deve opor os embargos de terceiro, em que deverá ser conferido a este a mais ampla dilação probatória, uma vez que será apenas nesse momento que poderá exercer o contraditório no Juízo singular.

Apesar disso, tal entendimento não é uníssono, há na doutrina quem defenda que apesar de o sócio não figurar formalmente na relação é ele quem participa substancialmente, de modo que com a aplicação da desconsideração ele passa a fazer parte do polo passivo da demanda, razão que ensejaria a oposição dos embargos à execução, uma vez que figuraria no processo como executado.[32]

Apoiando a tese defendida por André Pagani de Souza, há julgado do próprio Superior Tribunal de Justiça defendendo a utilização dos embargos do devedor, aduzindo que o sócio passa a integrar a relação jurídica, senão vejamos:

PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. LOCAÇÃO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INCLUSÃO DOS SÓCIOS NO PÓLO PASSIVO DA EXECUÇÃO. EMBARGOS DE TERCEIROS. NÃO-CABIMENTO. PRECEDENTES. AUSÊNCIA DE CONDUTA CULPOSA POR PARTE DO SÓCIO MINORITÁRIO. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STF. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.

1. Havendo desconsideração da personalidade jurídica, os sócios passam a ser parte no processo de execução, pelo que se mostra cabível o oferecimento de embargos do devedor, e não de terceiros.

Precedentes.

2. É impossível, na estreita via do recurso especial, analisar a existência, ou não, de conduta culposa da sócia minoritária a autorizar a despersonalização da personalidade jurídica da sociedade, por demandar o reexame do conjunto probatório. Óbice da Súmula 7/STJ.

3. Agravo regimental improvido.

(AgRg no AgRg no Ag 656.172/SP, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 04/10/2005, DJ 14/11/2005, p. 383)

Como restou demonstrado, o dissenso jurisprudencial e doutrinário existente em razão da ausência de normatização, prejudica sobremaneira o exercício até do contraditório, posto que dependendo do entendimento de cada tribunal caberá diferente modalidade de instrumento de defesa, sendo significativa a controvérsia se será cabível embargos de terceiros ou embargos do devedor.

3. O NOVO CPC E O INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

3.1    Considerações iniciais

Diferentemente de seu antecessor, o projeto do novo Código de Processo Civil inseriu, em capítulo próprio, a procedimentalização da desconsideração da personalidade jurídica, almejando dar uma solução definitiva às controvérsias existentes através da positivação de um incidente próprio, tal qual defendera Bruschi através da necessidade de criação de uma tutela jurisdicional diferenciada para os casos de aplicação da disregard. [33]

Insofismavelmente, a relevância da temática relativa à desconsideração da personalidade jurídica, a série de controvérsias acerca da aplicação deste instituto, bem como a existente celeuma exposta na árdua missão de conciliar o devido processo legal e a efetividade dessa medida judicial no Ordenamento Jurídico, levou o Legislador a introduzir o incidente processual como maneira de assegurar a correta utilização desse instituto, que por atingir diretamente uma das mais essenciais estruturas propulsoras do atual sistema econômico, necessitam um controle mais incisivo do sistema legal, inviabilizando seu desvirtuamento e uma consequente desvalorização da segurança jurídica na seara do direito societário.

É notória a preocupação do novo Código de Processo Civil com a efetividade das medidas processuais, a própria exposição de motivos do anteprojeto é iniciada com menção à necessidade de servir o processo civil como instrumento de concretização do direito material, nesse sentido, transcrevem-se os dois primeiros parágrafos desta exposição de motivos:

“Um sistema processual civil que não proporcione à sociedade o reconhecimento e a realização dos direitos, ameaçados ou violados, que têm cada um dos jurisdicionados, não se harmoniza com as garantias constitucionais de um Estado Democrático de Direito.

Sendo ineficiente o sistema processual, todo o ordenamento jurídico passa a carecer de real efetividade. De fato, as normas de direito material se transformam em pura ilusão, sem a garantia de sua correlata realização, no mundo empírico, por meio do processo.”[34]

Salutar, pois, a iniciativa de positivar o aspecto processual da disregard, conferindo o real valor que tal instituto possui dado o seu impacto nas relações negociais e, por consequência, para a livre iniciativa, princípio básico que rege a atual ordem econômica do Estado.

3.2    Comentários ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

Apesar de prescrever um procedimento próprio para a aplicação da teoria do levantamento do véu da personalidade jurídica, o novo código de processo civil, aparentemente, prestigia a posição da jurisprudência majoritária, consagrando a desnecessidade de ação autônoma, tal qual defendia parte da doutrina, respondendo os vários embates doutrinários existentes, adotando uma posição intermediária, bastante aproximada daquela defendida por DIDIER[35].

3.2.1 As modificações previstas no novo Código - O artigo 77.

Além da consagração do incidente próprio de desconsideração da personalidade jurídica como instrumento de efetivação daquela medida, outro importante aspecto incorporado no novo código é o cabimento do incidente em toda e qualquer fase do processo, o que é plenamente justificável, uma vez que possibilita o contraditório com ampla dilação probatória independentemente da fase em que se encontra o processo.

Assim dispõe o art. 77 do novo código de processo civil:

“Art. 77. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado na forma da lei, o juiz pode, em qualquer processo ou procedimento, decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou dos sócios da pessoa jurídica ou aos bens de empresa do mesmo grupo econômico.

Parágrafo único. O incidente da desconsideração da personalidade jurídica:

I – pode ser suscitado nos casos de abuso de direito por parte do sócio;

II - é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e também na execução fundada em título executivo extrajudicial.”

Liquida-se, pois, no novo código qualquer controvérsia acerca da necessidade de ação de conhecimento com inclusão dos sócios no polo passivo, a desconsideração é questão a ser resolvida por incidente próprio e especificamente criado para esse fim, não havendo mais qualquer necessidade de ação autônoma de conhecimento como única forma de consagração do devido processo legal.[36]

De resto, percebe-se que o legislador optou por manter a vedação da decisão de desconsideração ex officio, ao condicionar a medida ao requerimento da parte ou do Parquet, tal qual preceitua o Código Civil, em seu art. 50.

3.2.2 A primazia do devido processo legal e do contraditório na desconsideração da personalidade jurídica - O art. 78 do novo CPC.

Prosseguindo à análise do novo diploma processual, é o artigo 78 quem introduziu a real necessidade de supremacia do contraditório no âmbito da desconsideração, inviabilizando o anterior posicionamento jurisprudencial dominante que possibilitava a desconsideração num momento anterior para só depois permitir a defesa do sócio num momento em que já havia sido determinada a penhora de bens.

O referido artigo impõe a necessidade de citação[37] dos sócios, terceiros e da pessoa jurídica para se manifestarem no prazo comum de 15 dias, bem como requerer a produção de provas, sem, aparentemente, criar qualquer limitação ao exercício do contraditório, em laudável homenagem à ampla defesa.

Destarte, de acordo com a procedimentalização adotada pelo novo código de processo civil, a desconsideração em momento anterior à manifestação das partes não fica vedada, mas o que a jurisprudência vem tratando como regra passa a ser exceção. Ademais, é plenamente aceitável nos casos em que se revele necessária a utilização da medida cautelar para assegurar o resultado útil do processo que se decrete o levantamento do véu previamente à manifestação do sócio, diferindo o contraditório para momento posterior, trata-se, no entanto, como já ressaltado, de exceção, haja vista que a regra é o direito de manifestação em momento anterior à medida.

3.2.3 A defesa do sócio/administrador – Art. 660, §2º.

Entre as principais consequências das controvérsias do dissenso jurisprudencial remetia ao cabimento do correto instrumento de defesa do sócio que passava a sofrer com a constrição de seus patrimônio ainda que não integrasse a relação processual na qual houve o decisão de superar a autonomia patrimonial.

Como restou exposto, a própria doutrina suscitava a problemática oriunda da ausência de posição uníssona, de modo a expor em quais casos caberia a impugnação/embargos do devedor ou embargos de terceiros.

Visando sanar tal problema, a redação do novo código de processo civil admitiu o manejo dos embargos de terceiros nas hipóteses em que o sócio/administrador sofram uma constrição de seus bens em um processo no qual não integravam como partes originariamente.[38] Assim dispõe o art. 660, §2º, in verbis:

“Art. 660. Quem, não sendo parte no processo, sofrer constrição sobre bens que possua ou sobre os quais tenha direito incompatível com o ato constritivo, poderá requerer o seu desfazimento por meio de embargos de terceiro.

[...]

§ 2º Considera-se terceiro, para ajuizamento dos embargos:

[...]

III – quem sofre constrição judicial de seus bens por força de desconsideração da personalidade jurídica e que não é parte no processo em que realizado o ato constritivo;

3.2.4 O recurso cabível em face da decisão que resolve o incidente de desconsideração da personalidade jurídica – O Art 79 (Art. 969, IV)

No atual sistema processual, já se pacificou o entendimento pela possibilidade do sócio interpor agravo de instrumento em face de decisão que, desconsiderando a personalidade jurídica, ultrapassa a separação patrimonial e atinge os bens daquele.

Não obstante a predominância de entendimento uníssono acatando o agravo de instrumento como recurso hábil a provocar a rediscussão da matéria no vigente processo civil, o legislador explicitou no projeto do novo código em seu art. 79 e novamente no art. 969, IV. (que trata das hipóteses de cabimento do agravo de instrumento) a impugnação da decisão que define a instrução do incidente através de recurso de agravo de instrumento.

Com acerto procedeu o legislador: a reafirmação dessa forma de interposição do remédio já consagrada apenas assegura que não haverá decisões teratológicas aptas a malferir o ordenamento através da indevida rejeição de agravos no âmbito da teoria da penetração.

3.3    Conclusões atinentes à introdução do incidente previsto no novo CPC

Realizadas as considerações acerca da iminente positivação do incidente de levantamento do véu, impende ressaltar o progresso que representa a instrumentalização para a consagração da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica, conferindo a devida importância ao instituto que ficava à mercê da interpretação judicial mais cômoda à luz do caso concreto, sem conferir a devida segurança jurídica.

Contudo, não desprezados os inegáveis avanços das modificações propostas, certamente não escapará de críticas a introdução de norma de direito material na cabeça do art. 77 do referido projeto. Isto porque o novo código traz norma de direito material que amplia o entendimento do instituto tal qual previsto no Código Civil, ao permitir que o levantamento do véu venha a atingir bens de empresa pertencentes ao mesmo grupo econômico[39].

Caberia ao Código de Processo Civil apenas disciplinar aquelas hipóteses já previstas pelas regras de direito material e não trazer em seu bojo novas hipóteses, tal qual a supracitada norma.

Desta feita, a sistematização, ainda que tardia, cria um molde que resguarda sobremaneira os direitos dos sócios e administradores das pessoas jurídicas, somente atingindo o patrimônio destes após ampla cognição, protegendo os diversos interesses tutelados pela disregard doctrine, que possui como escopo máximo encorajar a devida utilização do instituto da pessoa jurídica, prestigiando e maximizando a efetividade da separação patrimonial, conferindo insofismável aumento de segurança jurídica no atinente às pessoas jurídicas e seus sócios, ao passo que também dá credibilidade ao procedimento tomado pelos credores.

Sobre o autor
Antonio Beserra dos Santos Neto

Advogado graduado pela Faculdade de Direito do Recife da Universidade Federal de Pernambuco. Pós-graduando em direito civil pela Faculdade Anhanguera.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Relacionado à tese de conclusão de curso.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!