INTRODUÇÃO
O presente estudo versa sobre o direito a um mínimo existencial ecológico, norma que se extrai do art. 225, caput da Constituição Federal, e seu correlato dever de promoção pelo Estado num contexto fático-jurídico de escassez de recursos ambientais e financeiros, a chamada reserva do possível.
Partimos do pressuposto teórico de que o sistema do direito posto é autopoiético e homogêneo, não admitindo que um tal embate perdure. Do mesmo modo, assumimos que a camada linguística em que inserida a temática possibilita a adoção de um conceito operacional de direito subjetivo fundamental capaz de incorporar os custos financeiros das prestações ou omissões estatais na sua promoção.
Assim sendo, no primeiro capítulo objetivamos expor um conceito de direito subjetivo fundamental operacional, a partir da constatação de que o sistema do direito posto é homogêneo e estabelece relações enquanto linguística.
Buscamos, igualmente, e o fazemos no segundo capítulo, apresentar o direito ao meio ambiente equilibrado e sua faceta de componente da dignidade da pessoa humana – o mínimo existencial ecológico –, inclusive com decisões de casos concretos que o consagram em detrimento de uma análise das questões orçamentárias inerentes.
Procuramos, também, analisar a questão orçamentária e a reserva do possível como óbice e como meio de promoção de direitos subjetivos fundamentais, correlacionando o papel da tributação na promoção dessas prestações. Tal mister é cumprido no terceiro capítulo.
O método utilizado no desenvolvimento desta investigação foi a pesquisa bibliográfica de cunho qualitativo, com referencial teórico calcado principalmente no Direito Ambiental, Orçamentário e Tributário, além de sucinta análise de casos julgados pelos tribunais pátrios.
1. O DIREITO SUBJETIVO AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO ENQUANTO NORMA DE DIREITO FUNDAMENTAL
1.1 A norma e a norma dentro do sistema
O fenômeno da aplicação do direito possui como faces indissociáveis as figuras da norma jurídica e do direito subjetivo, isto porque os aspectos objetivos e subjetivos da experiência jurídica implicam-se mutuamente. Tratam-se, entretanto, de vocábulos polissêmicos, assim como o é a própria expressão “direito”.
Só Aurora Tomazini de Carvalho[1] elenca treze significações para o termo, entre as quais, citamos: o complexo de leis ou normas que regem as relações entre os homens; ciência ou disciplina jurídica que estuda as normas; faculdade de praticar um ato, de possuir, usar, exigir, ou dispor de alguma coisa; legitimidade; que segue a lei e os bons costumes, etc.
Posto que partimos do pressuposto de que todo conhecimento se dá pela linguagem, sendo o conhecimento, a realidade e a verdade aspectos daquela num dado sistema de referência, temos que as afirmações sobre dado objeto de análise só são válidas nesse âmbito, nesse determinado enfoque. Daí que cresce em importância estabelecer alguns conceitos prévios que irão nortear fundamentalmente o nosso estudo.
Assim, para os efeitos deste estudo, norma jurídica é a significação completa obtida da leitura dos textos do Direito Positivo, possuindo, necessariamente um antecedente e um consequente normativo. É uma estrutura lógico-sintática de significação, não existindo correspondência biunívoca entre o dispositivo legal e a norma jurídica que dele se pode extrair[2]. Logo, norma jurídica não é o mesmo que texto de lei.
É comum, porém, o equivocado uso da expressão “[...] 'norma jurídica' para significar o conjunto de signos linguísticos gravados no papel ou foneticamente emitidos pela autoridade competente [...]”[3], quando o “[...] modo mais adequado de referência à norma jurídica é compreendê-la como o sentido que emerge do enunciado proposicional, isto é, como o juízo que se forma em nossa mente, pela leitura do texto ou pela audição da ordem emanada de um agente autorizado pelo sistema. [...]”[4].
Nesse sentido, acompanhamos Paulo de Barros Carvalho quando afirma que a norma jurídica é o “o mínimo irredutível de manifestação do deôntico”, ou seja, é uma estrutura mínima, mas completa, de atuação do direito, que apresenta um antecedente – hipótese – e um consequente – uma relação jurídica a vincular sujeitos[5]. Como consequência disto temos a juridicização dos fatos sociais e a imposição coercitiva de obediência ao sistema jurídico-normativo.
Nesse sentido, a hipótese é a previsão abstrata do evento da vida que, uma vez tendo ocorrido, após relatado em linguagem competente, tem como desdobramento o consequente normativo, consistente na prescrição que dá fundamento à relação jurídica criada pelo evento antecedente. Aqui se destaca a função do consequente normativo: produzir o liame jurídico entre os sujeitos de direito envolvidos no fato jurídico em foco, delimitando o objeto dessa relação jurídica e dos direitos e deveres correspondentes.
Desse modo, ao considerar-se que uma das funções do Direito é a regulação das relações interpessoais, e que a norma jurídica deve comportar um comando deontológico dotado de significação completa, conclui-se que não existem regras jurídicas sem as correspondentes sanções[6].
Em termos de classificação funcional das normas jurídicas, enquanto unidades atômicas do sistema exercem, basicamente, os seguintes papéis:
[...] umas disciplinam, pronta e diretamente, o comportamento – são as regras de conduta; enquanto outras se ocupam também do proceder do homem no seio da sociedade, porém o fazem de maneira mediata e indireta – são as regras de estrutura. Em face dessa dessemelhança funcional, relevante para compreender-se a dinâmica do sistema, alguns autores pretendem ver, entre as normas de estrutura, certos preceitos que teriam a feição de autênticas definições, visto que, neles, estariam inequívoco o propósito de definir, ou seja, dar os fins, os confins ou os limites de expressões relativas a pessoas, situações ou coisas comumente utilizadas no quadro semântico das referências do direito positivo[7].
Inobstante isso, concebemos que as funções prescritiva ou descritiva da norma não se encontram isoladas uma da outra. Não há normas meramente descritivas. Apesar de serem também descritivas, necessariamente, prescrevem algum comportamento relativo ao que foi faticamente descrito.
Tem-se, assim [...] que (i) o Direito não apenas descreve a realidade (embora também o faça necessariamente), antes (ii) busca, através de sua “força normativa”, amoldá-la a valores; valores esses que, portanto, não se confundem com as próprias normas, e permitem observar que as normas jurídicas não são enunciados ou proposições tão-somente valorativas; são efetivamente prescritivas[8].
Diante desse caráter prescritivo das normas jurídicas, inclusive o caráter sancionatório de suas disposições, constata-se sua influência no comportamento dos destinatários – indivíduos, sociedade e o próprio Estado, especialmente quando se trate de direitos fundamentais.
A norma é, portanto, uma estrutura lógico-sintática de significação que se insere num sistema: o sistema do direito posto, enquanto camada linguística com certo timbre de homogeneidade. Aliás, cumpre destacar que
[...] A norma não tem sentido senão no sistema, do qual é a unidade elementar. Sistema e norma são termos entrelaçados: quando se pensa em um, pensa-se necessariamente no outro. E o mesmo acontece com a ação. Ainda que se proponha um modelo em que se admitam normas cujo significado não contemple diretamente qualquer função prescritiva em relação a uma ação, parece inevitável aceitar que estas normas também tenham relação com a ação, mesmo que de maneira indireta[9].
O caráter unitário desse conjunto foi destacado por Hans Kelsen[10] ao afirmar que as normas do sistema direcionam-se para o mesmo ponto, um mesmo fundamento de validade axiomaticamente concebido, sendo de vinculação/determinação a relação existente entre as normas de um escalão superior e as normas de um escalão inferior (Constituição e lei, lei e sentença judicial, por exemplo). Trata-se de uma estrutura hierarquizada e dinâmica, que, graças a esta regência por fundamentação e derivação – tanto no plano formal como processual – permite sua própria regulação, criação e transformação.
Todas as normas do sistema convergem para um único ponto - a norma fundamental -, que dá fundamento de validade a constituição positiva. Sua existência imprime, decisivamente, caráter unitário ao conjunto, e a multiplicidade de normas, como entidades da mesma índole, lhe confere o timbre de homogeneidade. Isso autoriza dizermos que o sistema também empírico do direito é unitário e homogêneo […][11].
Assim, o discurso do direito positivo, cujas unidades de significação são as normas,
[...] se organiza em sistema e, ainda que as unidades exerçam papéis diferentes na composição interna do conjunto (normas de conduta e normas de estrutura), todas elas exibem idêntica arquitetura formal. Há homogeneidade, mas homogeneidade sob o ângulo puramente sintático, uma vez que nos planos semântico e pragmático o que se dá é um forte grau de heterogeneidade, único meio de que dispõe o legislador para cobrir a imensa e variável gama de situações sobre que deve incidir a regulação do direito, na pluralidade extensiva e intensiva real-social[12].
Nesse sentido, nosso marco teórico descansa na premissa da homogeneidade do sistema do direito posto, tal como o fez Paulo de Barros Carvalho[13] em artigo acerca do sistema do direito positivo:
[...] Descansa, portanto, em duas premissas: a) que o direito posto, como camada lingüística, se estrutura em forma de sistema; e b) que os elementos desse conjunto são normas jurídicas, exteriorizadas mediante proposições hipotético-implicacionais. A partir daí, coloca-se a tese segundo a qual um dos aspectos do referido sistema é, justamente, o de ser sintaticamente homogêneo[14].
Há que se reconhecer ainda que o sistema do direito positivo é autopoiético, o que equivale a dizer que:
1) é auto-regulável: significa que o sistema consegue manter o seu equilíbrio interno através da troca de informação com o ambiente. As respostas (“feedback”) do ambiente às mensagens que envia o fazem ajustar a sua ação futura.
2) é auto-gerativo: significa que o sistema produz os seus próprios elementos.
3) É auto-referencial: significa que o sistema tem em si mesmo as regras de sua auto-produção, i. e., o sistema fala sobre si mesmo (metalingüística).[15]
Considerando as características acima é que o próprio sistema há de fornecer critérios para sanar conflitos entre normas, garantindo sua homogeneidade sintática.
Na distinção feita por Dworkin[16]- não isenta de respeitáveis críticas, mas que optamos para o nosso marco teórico em razão de sua instrumentalidade -, as normas podem ser princípios ou regras. Aqueles, na sua acepção, possuem um grau maior de abstração, representando os valores consagrados pelo ordenamento jurídico.
Princípios são norma que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Por isso, são mandamentos de otimização, caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus e que a medida devida de seu cumprimento não só depende das possibilidades reais, mas também das jurídicas[17].
As regras, por sua vez, são aplicadas através de um processo subsuntivo de adequação do escorço fático ao normativo. Dworkin[18] destaca que sua aplicação não aceita meio termo sendo simplesmente sob a forma do “tudo ou nada”, “all or nothing”.
Ávila[19], no entanto, no diapasão de superar as teorias de Alexy[20] e Dworkin[21] acerca da clareza da distinção entre regras e princípios, afirma que
Ambas as espécies de normas devem ser aplicadas de tal modo que seu conteúdo de dever –ser seja realizado totalmente. Tanto as regras quanto os princípios possuem o mesmo conteúdo de dever-ser.
A única distinção é quanto à determinação da prescrição de conduta que resulta da sua interpretação: os princípios não determinam diretamente [...] a conduta a ser seguida, apenas estabelecem fins normativamente relevante, cuja concretização depende mais intensamente de um ato institucional de aplicação que deverá encontrar o comportamento necessário à promoção do fim; as regras dependem de modo menos intenso de um ato institucional de aplicação nos casos normais, pois o comportamento já estava previsto frontalmente pela norma. [...] O ponto decisivo não é, portanto, a falta de ponderação na aplicação das regras, mas o tipo de ponderação que é feita e o modo como ela deverá ser validamente fundamentada[22].(grifou-se).
A indeterminação normativa acima referida é ressaltada e exemplificada por Carlos Ari Sunfeld:
[...] falamos de “princípios” para designar casos extremos de indeterminação normativa, mesmo que o texto não use o termo “princípio”, mas “direito” (“todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”) ou outro qualquer (a “cidadania” é “fundamento” da República)[23].
Inobstante isso, considerando que o sistema do direito posto é homogêneo e autopoiético (autorregulável, autogerativo e autorreferencial), não se pode enxergar nessas indeterminações normativas imperfeições do sistema. “[...] Elas são necessárias aos jogos de poder existentes na sociedade” [24]. Como afirma Carlos Ari Sunfeld: “Quem tem influência e poder consolidados consegue obter do legislador regras precisas para realizar seus interesses. Já, os poderes em formação se valem da indeterminação normativa como uma arma na luta pela afirmação [...]” [25].
Funcionam, portanto, como técnica de adiamento pragmático de decisões difíceis, sobre as quais não se construiu consenso.
Assim, as explanações acima nos levam a assumir, para fins deste estudo, que as normas de direitos fundamentais são normas-princípios, dada a sua importância, centralidade no sistema, abstração e teor valorativo[26]. Assim sendo, estas normas-princípios de direitos fundamentais possuem normatividade, isto é, descrevem e prescrevem comportamentos, criam situações jurídicas, direta ou indiretamente.
Afirmar isto, contudo, não é o mesmo que afirma que a existência de um direito constitucional fundamental ou princípio constitucional de direito fundamental corresponde a um direito subjetivo, ao contrário do que certa banalização dos princípios vivenciada na era jurídica atual parece fazer crer.
1.2 O direito subjetivo
Analisadas as normas jurídicas sob a ótica de sua normatividade, especialmente as normas jurídicas princípios com conteúdo de direito fundamental, conforme acima realizado, inexorável é reconhecer sua ligação com o direito subjetivo, ambos, faces da mesma moeda: a experiência jurídica.
Conceituar direito subjetivo, no entanto, não é tarefa simples, já tendo admitido, ao longo da história diversas conceituações.
[...] A cada dia, com o cruzamento vertiginoso de comunicações, aquilo que fora tido como “verdade” dissolve-se num abrir e fechar de olhos, como se nunca tivesse existido, e emerge nova teoria para proclamar, em alto e bom som, também em nome da “verdade”, o novo estado de coisas que o saber científico anuncia[27].
Tal situação é uma conquista do “giro-linguístico” que possibilitou no campo do saber a desconstrução das verdades absolutas. Em matéria de direito posto, enquanto camada linguística, isso significa a aceitação de que as significações só podem ser compreendidas num dado contexto.
O mesmo ocorre com o conceito de direito subjetivo, um verdadeiro camaleão normativo[28], razão pela qual optamos neste estudo por um conceito operativo de direito subjetivo. Ou seja:
[...] um conceito construído a partir das necessidades dos operadores do direito [...] [uma vez que] o direito subjetivo é tão-somente um instrumento de representação que realiza a conexão sistemática entre situações e consequências jurídicas previstas pelo ordenamento jurídico – uma ferramenta teórica de apresentação. Em outras palavras, o conteúdo do conceito de direito subjetivo é determinado, em cada momento histórico, pela utilização que dele se faz, segundo as valorações então vigentes[29].
Historicamente falando, as formulações mais relevantes do conceito de direito subjetivo repousam na teoria da vontade, na teoria do interesse e na teoria mista ou eclética de Jellinek[30].
Objeções à teoria voluntarista indicam a existência de indivíduos sem vontade ou incapazes de expressá-la validamente, como os civilmente incapazes, por exemplo. À objeção, formulou-se que a vontade referida na teoria não é a da pessoa, mas sim a vontade do ordenamento jurídico reinante[31].
Por outro lado, em relação à teoria do direito subjetivo como interesse juridicamente protegido criticou-se o fato de existirem direitos nos quais não é possível identificar interesse do titular, além de interesses não tutelados no direito[32].
A teoria mista, por sua vez, congrega o elemento objetivo (interesse) e o elemento subjetivo (vontade), configurando o direito subjetivo como um interesse juridicamente protegido que atribui ao sujeito o poder de querer algo de alguém[33].
Num breve escorço histórico, verifica-se que a ideia de direito subjetivo nasceu no âmbito do direito público, mas desenvolveu-se e consolidou-se, nas teorias acima expostas principalmente, como uma figura de caráter privatístico[34].
Ocorre que esta formulação é insuficiente quando se trata de direitos fundamentais. Nesse sentido, merece destaque a crítica de José Reinaldo de Lima Lopes[35]:
Essas concepções modernas de direito subjetivo têm a característica do reflexo: funcionam quando se trata de dois indivíduos, duas partes. A questão complica quando se trata de falar de direitos, liberdades para a manutenção da vida em geral, não apenas das trocas individuais[36].
Assim, optamos por entender direito subjetivo aqui para além da relação direito-dever privatístico. Ao analisarmos os dispositivos constitucionais referentes a direitos fundamentais, de caráter público, e seguindo a esteira de Flávio Galdino[37], verifica-se a aplicação da acepção direito subjetivo com, pelo menos, as seguintes significações: pretensão, faculdade, potestade e imunidade.
Pretensão aqui assume a significação de uma possibilidade de exigir de outrem uma dada conduta[38]. Faculdade, por sua vez, é a possibilidade de comportar-se de um determinado modo, desde que não afete a esfera jurídica de outrem. Potestade é a possibilidade de afetar a esfera jurídica de outrem e imunidade é a “impossibilidade de sofrer intervenção em sua esfera jurídica”[39].
Daí que “sempre que se refere uma pretensão há um dever correlato. A ausência de pretensão refere uma situação de não-direito”[40]. Tem-se uma pretensão, por exemplo, no art. 203 da Constituição Federal, que confere a pretensão de um salário mínimo por mês a pessoa portadora de deficiência que não possua meios de manter seu sustento, e o Estado tem o dever de pagá-la[41].
Por sua vez, “sempre que se refere uma faculdade, há um não-direito correlato. A ausência de faculdade refere uma situação de dever”[42]. É o caso do art. 5º, XXII da Constituição Federal, expressa na faculdade de usar a propriedade imóvel[43].
Correspondente a uma potestade, “há um estado de sujeição correlato. A ausência de potestade refere uma situação de impotência”[44]. Assim, o art. 229 da Constituição Federal refere-se à potestade que tem um pai de educar seu filho, designando uma situação em que o filho tem sujeição[45].
E “sempre que se refere uma imunidade, há uma impotência correlata. A ausência de imunidade refere uma situação de sujeição”[46]. Com isso, a formulação do art. 150, VI, c, da Constituição Federal, diz respeito à imunidade – não sujeição – de um partido político a uma imposição tributária, revelando a impotência dos entes tributantes para criar impostos sobre a renda dos partidos políticos[47].
O esclarecimento dessas categorias jurídicas serve para firmar que a expressão direito subjetivo é usada em diversos sentidos e situações distintas, mas, não será em todas as situações que a ela corresponderá um dever – “uma adstrição à prática de um determinado comportamento”[48].
1.3 Os direitos fundamentais
Os direitos fundamentais são, na ordem constitucional vigente, a essência e a razão de ser do Estado. Trata-se de normas de grande abstração e acentuado teor valorativo, entendidas enquanto princípios. Pertinente é lembrar, no entanto, que o tratar os direitos fundamentais como princípio é uma escolha interpretativa.
É tarefa do intérprete definir se a norma, produto da interpretação, é uma regra ou um princípio. Qualquer distinção das normas jurídicas em mais de uma categoria – e a ênfase no “qualquer” é, aqui, fundamental – terá que seguir sempre esse raciocínio. O texto legal, em geral, utiliza-se sempre da mesma linguagem e dos mesmos operadores dêonticos. Não é o legislador que tem que se preocupar com eventuais distinções e classificações dogmáticas, mas o intérprete e o aplicador do direito[49].
Assim, entendemos que os direitos fundamentais são “[...] um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente a nível nacional e internacional”[50].
Não obstante as diferentes definições do termo “direitos fundamentais”, optamos por esta, uma vez que realça o sentido histórico destes direitos, remete à liberdade, igualdade e dignidade humanas como seus fundamentos e não esquece o caráter de positivação que lhes é atribuído. Une, portanto, a visão historicista e a jusnaturalista da concepção dos direitos fundamentais. A este conceito se deve acrescentar apenas, com fulcro nas assertivas acima expendidas acerca dos direitos subjetivos, que os direitos fundamentais “são situações jurídicas”[51].
Com efeito,
[...] a situação jurídica designa o fenômeno (jurídico) complexo da inter-relação concomitante entre várias das suas espécies (direitos subjetivos, pretensões, ônus, deveres, faculdades), podendo envolver vários sujeitos com posições jurídicas distintas e mesmo conflitantes entre si. Não se trata, pois, de um simples aglomerado taxinômico de institutos, de uma simples operação de classificação doutrinária. Assim, a situação jurídica potencializa a compreensão da realidade complexa e multifacetada das relações jurídicas[52].
Nessa esteira, costuma-se falar em gerações de direitos fundamentais, ou dimensões[53], para explicar a evolução de tais direito, através do acréscimo de seu conteúdo e eficácia.
Em verdade, a evolução dos direitos fundamentais significou mesmo a evolução das sociedades, do Estado e da visão das Constituições.
Os chamados direitos fundamentais de primeira geração nasceram do levante contra o Estado Absolutista ocorrido no século XVIII e que tem como marco a Revolução Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Fazem parte dessa geração de direitos as liberdades fundamentais (direito de locomoção, direito de propriedade, liberdade de expressão), cujo principal objetivo é escapar da opressão do Estado, exigindo deste uma omissão, no sentido da não oposição de barreiras para que os cidadãos exercitem suas liberdades fundamentais. Seriam direitos negativos[54].
Os direitos de segunda geração nascem com o Estado Liberal e as reivindicações de movimentos sociais de trabalhadores por representatividade e condições dignas de vida. São os direitos sociais e econômicos, comumente descritos como aqueles que exigem prestações positivas do Estado. Seriam direitos positivos[55]. Destaque-se que o termo “positivo” aqui é usado em oposição ao sentido de direitos negativos, sem referência à fonte de produção normativa.
Já os direitos de terceira geração surgem, completando o lema da Revolução Francesa, para positivar o valor solidariedade. São exemplos de direitos dessa geração o direito à conservação do patrimônio histórico e cultural, o direito do consumidor e o direito ao meio ambiente sadio[56].
Há que se lembrar ainda que, a depender do autor examinado, teremos ainda uma quarta ou quinta geração de direitos fundamentais[57].
De toda sorte, importa para nosso estudo a análise dos direitos fundamentais sob o seu viés positivo ou negativo, enquanto aptos ou não para exigir um comportamento estatal com vistas à sua efetivação, com o consequente dispêndio de recursos neste mister. Essa categorização é salutar em termos didáticos. Por ela, os direitos positivos – prestacionais - por constituírem uma obrigação de fazer do Estado, seriam aqueles que gerariam custos, despesas para o Estado. E os direitos negativos impõem uma não intervenção do Estado, como a não turbação da propriedade privada. É o que afirma Luís Roberto Barroso:
[...] esses direitos têm por conteúdo, normalmente, uma abstenção, um não fazer dos indivíduos e principalmente do Estado; sua realização, assim, na generalidade dos casos, independe de ônus, de atividades materiais, além de ter a seu favor a própria lei da inércia[58].
Esta visão, porém, apesar de didática é muito simplista quanto ao tema da geração de despesas para o Estado. Na verdade, todos os direitos, no aspecto da geração de despesas, são positivos. Todos os direitos criam despesas e a eventual omissão também tem um custo. Assim,
Na medida em que o Estado é indispensável ao reconhecimento e efetivação dos direitos, e considerando que o Estado somente funciona em razão das contingências de recursos econômico-financeiros captadas junto aos indivíduos singularmente considerados, chega-se à conclusão de que os direitos só existem onde há fluxo orçamentário que o permita [...][59].
Ou seja, o Estado despenderá recursos, no mínimo, para a manutenção de uma estrutura que vise garantir o respeito aos direitos ou, ainda, responsabilizando-se civilmente quando tiver se omitido.
Nesse sentido, os custos dos direitos não são meros óbices, questões orçamentárias menores no panorama da concreção dos direitos fundamentais. Os custos são, na verdade pressupostos para a concreção dos direitos. Indo mais além, Cass Sunstein e Stephen Holmes[60] sustentam que os custos devem integrar a concepção de direito subjetivo fundamental. Desse modo, independe de sua classificação ou geração, não se pode sustentar a existência de um direito subjetivo fundamental se sua realização orçamentária é impossível.