“A liberdade é uma palavra indivisível. Se desejamos gozá-la, e lutar por ela, devemos estar preparados a estendê-la a cada um, seja rico ou pobre, que concorde conosco ou não, qualquer que seja a sua raça ou a cor da sua pele.” (Wendell Lewis Wilkie)
Resumo:O objetivo desta pesquisa consistiu em verificar a possibilidade de extensão dos efeitos da decisão concessiva de habeas corpus ao corréu, de ofício. Para tanto, o estudo baseou-se no método de abordagem dedutivo, tendo em vista que partiu de uma proposição geral para atingir uma conclusão específica. Quanto ao procedimento para coleta de dados, utilizou-se, preponderantemente, a pesquisa bibliográfica, a qual possibilita a cobertura de uma gama de fenômenos mais ampla do que aquela que se poderia pesquisar diretamente. No que diz respeito ao nível de pesquisa, adotou-se a exploratória, por ser a que melhor compreende o objetivo deste trabalho, porquanto tem por escopo o aperfeiçoamento de ideias ou a descoberta de intuições, uma vez que proporciona maior familiaridade com o objeto pesquisado. Após a realização do estudo, concluiu-se reconhecida, tanto pela doutrina, quanto pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça de Santa Catarina a possibilidade de extensão dos efeitos da decisão concessiva de habeas corpus, de ofício, ao corréu, quando constatada a identidade de situações de caráter objetivo entre os coacusados, com base em princípios constitucionais, como o da liberdade e o da igualdade, na analogia, na equidade e, sobretudo, na interpretação da norma com o intuito de conferi-la o maior alcance possível. No entanto, apesar de admitida a medida por estes Tribunais, na prática, ainda existem muitos casos em que a concessão da benesse depende de provocação da parte interessada, em que pese estar evidenciado que a concessão da medida se trata de poder-dever do juiz, o qual, ao proferir a decisão, deve aplicar as normas de modo a ampliar seu alcance a fim de concretizar o direito.
Palavras-chave: Habeas Corpus. Efeitos. Decisão Judicial.
Sumário: 1 INTRODUÇÃO. 1.1 DELIMITAÇÃO DO TEMA E FORMULAÇÃO DO PROBLEMA. 1.2 JUSTIFICATIVA. 1.3 OBJETIVOS. 1.3.1 Geral. 1.3.2 Específicos. 1.4 DEFINIÇÃO DOS CONCEITOS OPERACIONAIS. 1.5 DELINEAMENTO DA PESQUISA. 1.6 DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO: ESTRUTURA DOS CAPÍTULOS. 2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO INSTITUTO HABEAS CORPUS. 2.1 ORIGEM DO HABEAS CORPUS . 2.2 HABEAS CORPUS NO BRASIL. 3 INSTITUTO DO HABEAS CORPUS E EFEITOS DOS RECURSOS. 3.1 ASPECTOS GERAIS ACERCA DO HABEAS CORPUS. 3.1.1 Espécies de habeas corpus. 3.1.2 Hipóteses de cabimento do habeas corpus. 3.1.3 Natureza jurídica do habeas corpus. 3.1.4 Legitimidade. 3.1.5 Competência. 3.1.6 Rito do habeas corpus. 3.1.7 Limitação do papel do habeas corpus pelos tribunais. 3.1.8 Habeas corpus no anteprojeto do Código de Processo Penal. 3.2 EFEITOS DOS RECURSOS. 3.2.1 Efeito devolutivo. 3.2.2 Efeito suspensivo. 3.2.3 Efeito regressivo. 3.2.4 Efeito extensivo. 4 APLICAÇÃO DO EFEITO EXTENSIVO, DE OFÍCIO, AO HABEAS CORPUS. 4.1 PRINCÍPIOS E MÉTODOS INTERPRETATIVOS APLICÁVEIS. 4.1.1 Dignidade da pessoa humana. 4.1.2 Celeridade e efetividade dos provimentos jurisdicionais. 4.1.3 Interpretação efetiva das normas. 4.1.4 Força normativa da Constituição. 4.1.5 Analogia e equidade. 4.1.6 Interpretação sistemática. 4.1.7 Interpretação teleológica. 4.2 FUNDAMENTO DOUTRINÁRIO. 4.3 FUNDAMENTO JURISPRUDENCIAL. 4.2.1 Cabimento da extensão ao corréu de ofício. 5 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.1 INTRODUÇÃO
Este estudo trata da possibilidade de extensão dos efeitos da decisão concessiva de habeas corpus, de ofício, ao corréu.
1.1 DELIMITAÇÃO DO TEMA E FORMULAÇÃO DO PROBLEMA
Uma das maiores garantias do ser humano é o direito à liberdade, o qual é assegurado pelo instituto habeas corpus, previsto tanto na Constituição da República Federativa do Brasil quanto no Código de Processo Penal, tamanha a sua importância.
Pela natureza constitucional do instituto, voltado à proteção da liberdade física de ir, vir e ficar, indispensável àquele que sem justa causa sofre ou é ameaçado de sofrer constrangimento, coação ilegal ou abuso de poder o manejo do habeas corpus.
O instituto atualmente encontra-se previsto no texto constitucional (artigo 5º, inciso LXVIII), que assim dispõe: “Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.”1 Diante desse conceito, infere-se que o habeas corpus é o instrumento hábil a garantir de forma exclusiva o direito de locomoção, ou seja, o direito de ir, vir e ficar.
A medida está regulamentada, também, pelo Código de Processo Penal, como recurso, o que pressupõe uma decisão anterior a ser impugnada. Contudo, há entendimentos doutrinários no sentido de que trata o instituto de verdadeira ação, uma vez que é dispensável a existência de processo em curso para que qualquer pessoa se utilize do remédio, cujo único objetivo é garantir o direito à liberdade do indivíduo.2
Ademais, nos termos do artigo 654, §2º, do Código de Processo Penal, “os juízes e tribunais têm competência para expedir de ofício ordem de habeas corpus, quando no curso do processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal.”3 Partindo dessa premissa é que se poderia analisar a regra disposta no artigo 580 do Código de Processo Penal4, a qual permite, na hipótese de concurso de agentes, que a decisão judicial favorável proferida em favor de um acusado se estenda aos demais, desde que as situações fático-processuais sejam idênticas e que a concessão do benefício não esteja fundada em motivos de caráter pessoal.5
Em regra, os provimentos jurisdicionais ocorrem pela provocação das partes. Todavia, a concessão de habeas corpus, de ofício, a um corréu, pelo magistrado ou tribunal, constitui exceção ao exercício da atividade jurisdicional de ofício (ne procedat judex ex offício). Já a extensão da decisão aos demais coautores, de ofício, ocorre quando o juiz ou tribunal concede a benesse àquele que não a solicitou em decorrência de decisão favorável concedida a outro corréu.
Essa extensão pode significar dar tratamento igualitário às partes em decorrência da concessão de medida jurisdicional concedida anteriormente em razão da provocação de apenas um ou de parte dos envolvidos, ou mesmo pelo ineditismo da alegação sustentada ou dos fatos apresentados, estendendo-se aos demais por força do disposto no artigo 580 do Código de Processo Penal, dada a identidade de situações.6
Dessa forma, põe-se em questão: é possível a extensão dos efeitos da decisão concessiva de habeas corpus ao corréu, de ofício, mesmo se considerando habeas corpus Ação Autônoma de Impugnação?
1.2 JUSTIFICATIVA
O presente estudo representa um desafio para a pesquisadora, porquanto não há no meio doutrinário ou acadêmico qualquer trabalho destinado a discutir a extensão dos efeitos da decisão concessiva de habeas corpus, de ofício, ao corréu. Embora alguns doutrinadores tenham abordado a matéria, fizeram-no de forma breve, fato que não traz substrato para que haja a necessária repercussão, diante da importância que a concessão da benesse pode trazer tanto para a parte interessada quanto para o judiciário e, por via reflexa, para a sociedade.
No primeiro caso, porque manter uma pessoa presa ilegalmente, arbitrariamente, sobretudo quando o coacusado, em idêntica situação jurídica obteve a liberdade, além de ser ato de extrema violência, fere, entre outros, o princípio da dignidade da pessoa humana, do qual emanam a isonomia e a liberdade, basilares do sistema jurídico brasileiro. Ademais, os prejuízos advindos de uma eventual prisão, especialmente quando ilegal, não têm como serem mensurados, visto que esta pessoa, independentemente de qualquer indenização por parte do Estado, carregará para sempre as marcas desse encarceramento indevido, em especial pelas condições degradantes a que são submetidos os presos no atual sistema carcerário, além da discriminação por parte da sociedade.
Não obstante, a medida pode trazer benefícios ao judiciário, o qual, ao conceder de ofício a ordem, evitará o processamento de outros habeas corpus de corréus em situação semelhante, o que, por conseguinte, trará maior celeridade na tramitação dos demais processos, além de minimizar o risco de decisões discrepantes para igual situação. E a sociedade, por sua vez, ganha um judiciário mais efetivo e preocupado com a racionalização dos processos.
1.3 OBJETIVOS
1.3.1 Geral
Verificar a possibilidade de extensão dos efeitos da decisão concessiva do habeas corpus, de ofício, ao corréu.
1.3.2 Específicos
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Conhecer aspectos da origem do habeas corpus;
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Demonstrar os principais pontos da evolução do habeas corpus no ordenamento jurídico brasileiro;
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Conceituar o instituto habeas corpus;
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Identificar a natureza jurídica do habeas corpus;
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Apresentar as espécies e os requisitos para concessão do habeas corpus no atual ordenamento jurídico brasileiro;
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Analisar o posicionamento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça de Santa Catarina acerca da possibilidade de extensão, dos efeitos da decisão do habeas corpus ao corréu, de ofício.
1.4 DEFINIÇÃO DOS CONCEITOS OPERACIONAIS
Os termos do problema assumem neste trabalho os seguintes significados:
Extensão de efeitos: é o benefício estendido àquele que não solicitou a ordem em decorrência de decisão favorável concedida a outro corréu que a pleiteou.
Decisão concessiva: decisão que atende ao pleito formulado ou desejado pela parte.
De ofício (ex-oficio): quando uma medida é concedida pelo juiz ou tribunal sem que haja provocação das partes, com base em elementos existentes no processo.
Corréu: aquele que é réu juntamente com outrem em processo judicial.
Ação autônoma de impugnação: Segundo Constantino, as ações autônomas de impugnação são medidas com vinculação jurídica própria, razão pela qual geram relação processual independente de qualquer outra preexistente.7
1.5 DELINEAMENTO DA PESQUISA
Para a realização do conhecimento científico é imprescindível estabelecer a metodologia utilizada na pesquisa, bem como prever quais os instrumentos e procedimentos adequados, a fim de sustentar a veracidade das hipóteses apresentadas na pesquisa.
Entende-se por método o conjunto das atividades sistemáticas e racionais que permite, com maior segurança e economia, alcançar o objetivo.8
A pesquisa foi elaborada com base no método de abordagem dedutivo, tendo em vista que inicia uma proposição abrangente a fim de alcançar uma conclusão singular.9 Os argumentos gerais estão inseridos no segundo e no terceiro capítulos, respectivamente, “Origem do Habeas Corpus” e “Contextualização do Writ10”, enquanto o argumento particular está no terceiro capítulo “Possibilidade de extensão dos efeitos da decisão concessiva de habeas corpus, de ofício, ao corréu”.
Quanto ao nível de pesquisa, adotou-se a pesquisa exploratória, por ser aquela que compreende melhor o objetivo do presente trabalho, porquanto tem por objetivo principal o aperfeiçoamento de ideias ou a descoberta de intuições, uma vez que proporciona maior familiaridade com o objeto de estudo, no caso, visa a conhecer a possibilidade de extensão dos efeitos da decisão concessiva de habeas corpus, de ofício, ao corréu.11
Em relação ao procedimento de pesquisa, foi utilizada a pesquisa bibliográfica, visto que permite ao investigador a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que se poderia pesquisar diretamente.12 Para tanto, foi feita a coleta dos dados por meio da leitura com posterior catalogação das informações em fichas para mais rápida recuperação dos elementos obtidos, os quais fundamentam o trabalho.
1.6 DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO: ESTRUTURA DOS CAPÍTULOS
O desenvolvimento do presente estudo iniciar-se-á, no segundo capítulo, por uma breve contextualização do habeas corpus, na qual se tratará da origem do writ, bem como da evolução do instituto no Brasil.
Na primeira parte do terceiro capítulo, serão abordados alguns aspectos do instituto, dentre os quais, destacam-se as espécies de habeas corpus, as hipóteses de cabimento do writ, os sujeitos da relação processual, a legitimidade ativa e passiva, bem como a natureza jurídica do remédio heróico. Na segunda parte do mesmo capítulo, serão analisados os efeitos recursais, dentre os quais, destacam-se o efeito extensivo, que servirá de fundamentação para a matéria a ser tratada no capítulo subsequente.
No quarto capítulo verificar-se-á a admissibilidade, ou não, da aplicação do efeito extensivo, de ofício, ao habeas corpus. Para tanto, serão analisados alguns princípios como dignidade da pessoa humana, da liberdade e da igualdade, bem como os métodos interpretativos, sistemático e teleológico. Posteriormente, apresentar-se-á a fundamentação jurisprudencial no Supremo Tribunal Federal, no Superior Tribunal de Justiça e no Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina.
Feita a análise, passar-se-á à conclusão, a qual estará alocada no quinto capítulo.
2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO INSTITUTO HABEAS CORPUS
A doutrina não é uníssona acerca da origem do habeas corpus.13 Para alguns doutrinadores, o instituto originou-se, no Direito Romano, em razão de um dispositivo denominado interdictum de libero homine exhibendo (interdito para exibir homem livre), que pretendia a apresentação da pessoa livre que tivesse sido detida ilegalmente. Contudo, naquele período, os próprios magistrados constrangiam homens livres a dispensar-lhes serviços. Dessa forma, a noção de liberdade daquela época nada tem a ver com a noção de liberdade que atualmente se conhece.14
Entretanto, a maior parte dos doutrinadores não diverge ao apontar a origem do instituto, pelo menos nos moldes semelhantes ao que se tem hoje, à implementação do habeas corpus na Magna Carta de 1215, na Inglaterra, outorgada pelo rei João Sem-Terra. Por sua vez, outros negam essa origem e afirmam que o writ surgiu apenas em 1679, no reinado de Carlos II. O fato é que, apesar da discordância acerca da real origem, o remédio heróico “se difundiu por todas as nações da Europa, chegou aos Estados Unidos da América do Norte e foi conhecido pela maioria dos países civilizados.”15
No Brasil, o instituto foi utilizado desde o império, porém, expressamente, apareceu pela primeira vez no Código Criminal de 1830 e, constitucionalmente, somente, na Constituição Republicana de 1891. Desde então, todas as cartas constitucionais posteriores consagraram o habeas corpus como instrumento tutelador da liberdade de locomoção ameaçada por ilegalidade ou abuso de poder.16
2.1 ORIGEM DO HABEAS CORPUS
Traça-se, a partir do século XI, uma patente tendência por toda a Europa Ocidental de centralização de poder, tanto na sociedade civil, quanto na eclesiástica, isso porque “teve início um movimento gerador de um primus inter pares” (o primeiro entre os iguais), pelo qual um suserano que predominava sobre os outros tornava-se o rei. Dessa noção de política de soberania, infere-se que cada barão era soberano em sua baronia, no entanto, o rei era o soberano entre todos.17
Na Igreja, a resistência à centralização do poder deu origem à Revolução Gregoriana, que foi uma contenda entre o Imperador e o Papa, a qual versava sobre a supremacia universal. Em oposição à tendência de um poder real soberano, na Espanha, desde o fim do século XII, os senhores feudais se manifestaram em diversas petições e declarações. Na Inglaterra, a soberania do rei foi reforçada no século XII, contudo, debilitou-se, quando foi travada uma disputa pelo ducado da Normandia entre o rei João Sem-Terra e o rival francês, Felipe Augusto, na qual este saiu vencedor.18
A partir desse evento, o rei da Inglaterra, João Sem-Terra, passou a aumentar as contribuições fiscais contra os barões para custear suas campanhas marciais. Desde então, em razão da pressão tributária, a “nobreza passou a exigir periodicamente, como condição para o pagamento de impostos, o reconhecimento formal de seus direitos.” Ao mesmo tempo, João Sem-Terra entrou em crise com o Papa, por diversas razões, dentre elas, o apoio às pretensões territoriais de seu sobrinho, Óton IV, contra os interesses do papado, e a negativa de aceitação de Stephan Longton, como cardeal, pelo que foi excomungado pelo Papa Inocêncio III (que reinou entre os anos de 1198 e 1216), e somente obteve o levantamento da excomunhão ao decidir se submeter ao Papa quando declarou, em1213, a Inglaterra feudo de Roma.19
Passados dois anos, o rei, João Sem-Terra, teve que “enfrentar a revolta armada dos barões, que chegaram a ocupar Londres” e foi obrigado, como condição para cessação da oposição declarada, a assinar a Magna Carta20 (Magna Charta Regis Joannis de libertatibus Angliai)21, “[...] imposta pelos barões ingleses, em15 de junho de 1215, diante do alto clero e dos barões do reino.” Apesar de ter o “texto sido redigido sem divisões nem parágrafos, ele é comumente apresentado como composto de um preâmbulo e de sessenta e três cláusulas”22, cujos princípios
[...] se calcaram, através das idades, as demais conquistas do povo inglês para a garantia prática, imediata e utilitária da liberdade física. A moral individualista, que caracteriza, flagrantemente, o grande povo (cuja psicologia tanto se enquadra nas idéias gerais de suas instituições) soube tirar do velho e bárbaro latim daquele trecho o germe de várias leis inestimáveis, que os tempos e as lutas aprimoraram.23
A Carta Inglesa foi um ato solene que visava a assegurar a liberdade individual, bem como a impedir a medida cautelar de prisão, sem o prévio controle jurisdicional.24 Previa ela em seu artigo 48: “Ninguém poderá ser detido, preso ou despojado de seus bens, costumes e liberdades, senão em virtude de julgamento por seus pares segundo as leis do país.” A ordem consistia em: “Toma (literalmente: tome no subjuntivo, habeo, habere, ter, exibir, tomar trazer etc) tomai o corpo do detido para submeter ao tribunal o homem e o caso.”25 Nas palavras de Tornaghi26:
O habeas corpus é, no Direito inglês do qual se origina uma ordem de apresentação pessoal de alguém, um mandado de condução. O juiz quer a presença física de alguma pessoa. Por isso expede uma ordem escrita (writ) para que seja apresentado o corpo da pessoa (habeas corpus), isto é, seja feita de corpo presente. Essa apresentação pode ter vários fins e, daí, os diversos tipos de hábeas corpus (ad deliberandum et recipiendum; ad faciendum; ad testificandum). Mas a expressão habeas corpus, sem mais nada, hábeas corpus por antonomásia, designa o habeas corpus ad subjiciendum, ordem ao carcereiro ou detentor de uma pessoa de apresentá-la, e de indicar o dia e a causa da prisão, a fim de que ela faça (ad faciendum), de que se submeta (ad subjiciendum) e receba (ad recepiendum) o que for julgado correto pelo juiz. Esse foi chamado, por William Blackstone, o mais celébre mandado (writ) do Direito inglês e baluarte permanente de nossas liberdades (the stable balwark ou our libertatis).
Por meio da Magna Charta, o respeito à liberdade física do indivíduo passou a ser uma realidade e a partir dela começou uma nova era para a humanidade, consistente na conquista da liberdade, muitas vezes violada pelo abuso, pela tirania e pelo despotismo. A sua importância foi tão expressiva que até hoje a Constituição da República Federativa do Brasil prevê expressamente norma a respeito.27
Conquanto a Carta de 1215 tenha repercutido de forma positiva na Inglaterra, com o apoio de toda a sociedade inglesa, repetidas vezes ela foi violada e transgredida pelo próprio monarca, que lançava mão de subterfúgios sob pretextos diversos para prolongar a detenção e, em agosto do mesmo ano, João Sem-Terra revogou a “Geat Chater”.28 Após a morte do Rei, “ascendeu ao trono seu filho, Henrique III”, que a restabeleceu. Não obstante, as medidas arbitrárias não cessaram, o que levou os barões, em 1258, à luta pela aprovação das chamadas “Provisões de Oxford”, as quais visavam à limitação dos poderes do rei.29
Com o tempo, o direito à liberdade individual garantido pela Magna Carta foi a cada momento tornando-se mais desvanecido das aspirações inglesas, até que, no reinado de Carlos I, a campanha dos ingleses recomeçou. A antiga ambição de liberdade novamente encandeceu o ânimo do povo inglês e as novas opressões acentuaram, ainda mais, a gravidade daquele momento histórico. Isso porque, no reinado de Eduardo III, por exemplo, era ordenado que ninguém fosse detido a mando do rei, ou de seu conselho, sem que houvesse acusação legal e procedente, o que não era cumprido no reinado de Carlos I, porquanto as pessoas eram presas e acusadas de traição como artifício para a não obediência daquele preceito. O autoritarismo de Carlos I gerou a irritação e o repúdio da sociedade inglesa, fato que levou o Parlamento de 1628 a convocar uma assembleia para solucionar o problema social.30
Nesse contexto, foi redigida, em 1628, a Petition of Rights (Petição de Direitos), a qual culminou no restabelecimento do remédio do habeas corpus.31 A petição não continha, portanto, inovações. Era simplesmente nova confirmação, requerida, “das velhas liberdades inglesas; em certos artigos, o regime processual indispensável para melhor reconhecer e garantir, sob Carlos I, os mesmos direitos dos reinados, Eduardo, Henrique I e da Magna Carta.”32 Para Silva:
A Petição de Direitos de 1628, como o nome indica, é um documento dirigido ao monarca em que os membros do Parlamento de então pediram o reconhecimento de diversos direitos e liberdades para os súditos de sua majestade. A petição constituiu um meio de transação entre Parlamento e rei, que este cedeu, porquanto aquele já detinha o poder financeiro, de sorte que o monarca não poderia gastar dinheiro sem autorização parlamentar. Então, precisando de dinheiro, assentiu.33
Em que pese a proximidade da Petition of Rights com o instituto do habeas corpus que se tem hoje, ainda existia um longo caminho a ser trilhado na busca de direitos e garantias individuais, visto que ainda havia inúmeras vicissitudes que depreciavam a crença na existência de um expediente pronto e eficaz na defesa da liberdade da pessoa. “A partir do século XIII, o habeas corpus começava a sua longa trajetória até se firmar como garantia de liberdade pessoal.”34 Nessa época, segundo Miranda:
A liberdade física, direito absoluto, tirado da natureza humana, já tinha, desde 1215, na Inglaterra, a consagração que lhe dera o Capítulo XXIX da Magna Carta. Essa lei foi desrespeitada, esquecida e postergada a cada passo. Sem garantias sérias, sem remédios irretorquíveis, estava exposta, ora às decisões cobardes de certos juízes, ora às interpretações tortuosas dos partidários da prerrogativa.35
Contudo, conforme afirmou Winstow Churchill, nesse estatuto declaratório, “o direito de o governo executivo prender um cidadão, da classe alta ou baixa, em virtude de razões de Estado, foi negado. E esse princípio, obtido em penosas disputas, constitui o privilégio de todo homem que se preza, em qualquer tempo ou país do mundo.” Dessa forma, foi firmado que se poderia, por meio do habeas corpus, ver restaurada a violação da liberdade individual, independentemente de qual fosse a autoridade coatora.36
Outro importante documento editado foi a Lei do Habeas Corpus (Habeas Corpus Act), de 1679, também na Inglaterra, no reinado de Carlos II. Foi considerada pelos ingleses outra carta magna37, pois veio para tornar o instituto eficaz como remédio, tendo em vista que aquele importante direito natural do homem, consubstanciado na garantia de ir, vir e ficar, “[...] legítima conquista da sociedade inglesa daquela época e que inspirou as atuais legislações, já não ostentava seu reconhecimento pleno, e sua aplicabilidade mostrava-se consideravelmente acanhada”, uma vez que as ordens de habeas corpus eram constantemente denegadas ou muitas vezes desobedecidas, o que era bem pior. “Os sofismas, a trapaça e a timidez, conspiravam, de mãos dadas ao rei, contra o inestimável remédio processual, e a vontade do soberano prevalecia.”38
Mas, a arbitrariedade não podia continuar vigorando, tinha que ter um fim, porquanto, inegavelmente, estava derrogando uma conquista altamente social e de vida para o povo inglês, pois a manutenção e a continuidade ao reconhecimento do natural direito de ir, vir e ficar, ou seja, da liberdade física do indivíduo, tornavam-se irrepreensíveis.39
O habeas corpus constantemente era desrespeitado para garantir os interesses de uma classe dominante ou do próprio rei, além disso, só era expedido quando se tratava de pessoa acusada de crime, não sendo aplicado aos demais casos de prisões ilegais40, motivo pelo qual seria necessária uma atividade do legislativo para que o referido instrumento não ficasse à mercê da vontade da elite dominante. Isso porque a eficácia do instituto como remédio jurídico era extremamente reduzida, em decorrência da inexistência de apropriadas regras processuais, de modo que a Lei do Habeas Corpus Act, cuja denominação foi “uma lei para melhor garantir a liberdade do súdito e para preservar as prisões no ultramar”, surgiu para “[...] corrigir esse defeito e confirmar no povo inglês a verdade do brocardo remedies precede rights,” ou seja, “[...] são as garantias processuais que criam os direitos e não o contrário.”41 Nesse sentido, Mossin, em um trecho de sua obra, assevera:
Como restou anotado por José Frederico Marques, inspirado nos ensinamentos de Pontes de Miranda, demonstrou, no entanto, a experiência, que não bastava a proclamação do princípio contido na Magna Carta, pois se tornava indispensável a regulamentação legislativa de seu processo. Veio então o que Blackstone denominou de Segunda Magna Carta, isto é, o Habeas Corpus Act de 1679, destinado a disciplinar, processualmente, através de atos legais, a proteção ao direito de liberdade. Os preceitos da Magna Carta se mostravam ineficazes devido ao insuficiente sistema processual: but is had been inefficacious for want of a stringent system of procedure.
A relevância histórica do habeas corpus, “[...] tal como regulado pela lei inglesa de 1679, consistiu no fato de que essa garantia judicial, criada para proteger a liberdade de locomoção, tornou-se matriz de todas as que vieram a ser criadas posteriormente para a proteção das liberdades fundamentais.” Um exemplo é o mandado de segurança, o qual copiou do habeas corpus a característica de ser ordem judicial dirigida a qualquer autoridade pública acusada de violação a direito líquido e certo, ou seja, direito cuja existência pode ser demonstrada desde o início do processo, sem que haja necessidade de produção posterior de provas.42
Ademais, pode-se atribuir a efetividade do amparo conferido pelo Habeas Corpus Act de 1679, essencialmente, “[...] a um rigoroso sistema de sanções pecuniárias então introduzido: se os responsáveis pela detenção não cumprissem seus deveres de apresentação do preso e das informações [...]”, submetiam-se à multa de cem libras, aplicada em dobro no caso de reincidência; se a pessoa liberada em razão de habeas corpus fosse novamente presa, pelo mesmo motivo, a multa era de quinhentas libras, valor bastante significativo à época, o qual também era devido pela autoridade judiciária que, eventualmente, negasse a expedição do writ.43
A partir daí, o instituto foi transplantado para as colônias da América do Norte, e naquele lugar foi ulteriormente incorporado à Constituição de 1787, a qual, na seção 9, artigo 2º, proibia o Congresso de suspender a garantia, com exceção dos casos de rebelião ou de invasão. Dessa forma, nos Estados Unidos da América, de um lado o habeas corpus exprimia maior amplitude no que diz respeito ao conceito de restrição de liberdade, ao possibilitar a utilização do remédio para impugnar decisões administrativas acerca de imigração ou incorporação ilegal ao serviço militar. De outro lado, no que tange à revisão de processos judiciais, existia uma tendência mais restritiva da jurisprudência que, via de regra, destinava a ordem às situações anormais, como, por exemplo, a falta absoluta de jurisdição ou a submissão do acusado pelo mesmo fato simultaneamente a dois processos.44
Consequentemente, a evolução do instituto no ordenamento jurídico inglês culminou no Habeas Corpus Act de 1816, por meio do qual a admissibilidade da ordem estendeu-se às detenções realizadas por particulares. Da mesma forma, por meio de relevantes decisões jurisprudenciais, foi sendo sensivelmente ampliada a zona de proteção conferida pelo instituto, que originariamente se prestava apenas para reprimir prisões ilegais perpetradas “[...] por funcionários administrativos, acabou por se prestar, inclusive, para correção de atos judiciais viciados por incompetência ou outras irregularidades processuais.”45 Nas palavras de Soriano:
Nunca uma disposição do parlamento inglês havia contemplado com tanta minúcia um conjunto de procedimentos - obrigações escritas dos juízes e demais autoridades, prazos irrevogáveis, sanções, acessibilidade das garantias aos cidadãos, ausência de formalidade - com a finalidade de que o “writ” de habeas corpus tivesse a máxima eficiência.46
A experiência anglo-americana tem inspirado uma tendência, atualmente universal, no sentido de previsão, tanto nos textos constitucionais mais modernos, quanto nos documentos internacionais que versam sobre direitos humanos, de um remédio célere, destinado a tutelar de forma eficaz o direto à liberdade.47
Para os ingleses, a felicidade foi terem conseguido que as três declarações de direitos (a Carta Magna de 1215, a Petição de direitos de 1228 e o Habeas Corpus Act de 1679) completassem cedo a evolução política “e tê-las exigido antes dos outros povos europeus [...]”, o que possibilitou-lhes “[...] desenvolverem-se mais, e mais rapidamente. A garantia do habeas corpus confirma o senso prático dos ingleses e ainda hoje é o melhor remédio da liberdade e o único suficiente.”48
2.2 HABEAS CORPUS NO BRASIL
O período colonial brasileiro era regido pelas ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, as quais, apesar de surgidas posteriormente ao ano de 1215, ano do nascimento do habeas corpus inglês, não faziam menção ao writ no país.49 Nessa época, vigoravam em Portugal e no Brasil institutos jurídicos denominados cartas de seguro, que correspondiam ao habeas corpus, pois serviam de salvo conduto, de passaporte, porquanto eximiam alguém de ser preso antes de julgada a causa50, tendo em vista a inexistência de norma jurídica brasileira acerca do assunto.
Contudo, antes da Constituição Imperial de 1824, logo após a partida de D. João VI para Portugal, o Decreto de 23 de maio de 1821, referendado pelo Conde de Arcos, estabeleceu regras referentes à restrição da liberdade, especialmente informadas pelos critérios do processo legal e da judicialidade51:
- que ninguém poderia ser preso a não ser em flagrante delito ou por ordem escrita de autoridade competente;
- que nenhum juiz podia expedir mandado de prisão senão depois de culpa formada, isto é, de breve e sumária instrução;
- que o processo começasse imediatamente, em caso de prisão;
- que não mais se usassem correntes, algemas, grilhões ou objetos semelhantes;
- que a violação desses preceitos fosse punida com a perda do cargo e inabilitação para exercê-lo.52
Pela relevância histórica desse documento e pelo seu conteúdo de direito, que delineou os contornos das atuais constituições, uma vez que diversos preceitos constitucionais nele se encontram alicerçados53, é que merece ser apresentado o excerto do referido decreto retirado da obra de Miranda:
Vendo que nem a Constituição da Monarquia Portuguesa nem as disposições expressas da Ordenação do Reino, nem mesmo a Lei da Reformação da Justiça de 1582, com todos os outros alvarás, cartas régias e decretos de meus augustos avós, têm podido afirmar, de modo inalterável, como é de direito natural, a segurança das pessoas; e constando-me que alguns governadores, juízes criminais e magistrados, violando o sagrado depósito da jurisdição que se lhes confiou, mandam prender por mero arbítrio e antes de culpa formada, pretextando denúncias em segredo, suspeitas veementes e outros motivos horrorosos à humanidade, para impunemente conservar em masmorras, vergados com os pesos de ferros, homens que se congregavam por os bens que lhes oferecera a instituição das sociedades civis, o primeiro dos quais é sem dúvida a segurança individual; e sendo do meu primeiro dever e desempenho de minha palavra promover o mais austero respeito à lei e antecipar quando se possa os benefícios de uma Constituição liberal; hei por bem excitar pela maneira mais eficaz e rigorosa a observância da sobre mencionada legislação, ampliando-a e ordenando, como por este Decreto ordeno: 1º que desde sua data em diante nenhuma pessoa livre no Brasil possa jamais ser presa sem ordem por escrito do juiz ou magistrado criminal do território, exceto somente o caso do flagrante delito, em que qualquer do povo deve prender o delinqüente; 2º que nenhum juiz ou magistrado criminal possa expedir ordem de prisão sem proceder culpa formada por inquirição sumária de três testemunhas, duas das quais jurem contestes, assim o fato que em lei expressa seja declarado culposo, como a designação individual do culpado; escrevendo sempre sentença interlocutória que obrigue à prisão e livramento, a qual se guardará em segredo até que possa verificar-se a prisão do que assim tiver sido pronunciado delinqüente; 3º que, quando se acharem presos os que assim forem indicados criminosos, se lhes faça imediata e sucessivamente o processo, que deve findar dentro de quarenta e oito horas peremptórias, principiando-se sempre que isso possa ser, por a confrontação dos réus, com as testemunhas que os culpavam, e ficando abertas e públicas todas as provas que houverem, para assim facilitar os meios de justa defesa, que a ninguém se deve dificultar ou tolher, excetuando-se por ora das disposições deste parágrafo os casos, que provados, merecerem pelas Leis do Reino pena de morte, acerca dos quais se procederá infalivelmente nos termos dos §§ 1º e 2º do Alvará de 31 de março de 1742. 4º Ordeno que, em caso nenhum possa alguém ser lançado em segredo, ou masmorra estreita, ou infecta, pois que a prisão deve só servir para guardar as pessoas, e nunca para adoecer e flagelar; ficando implicitamente abolido para sempre o uso de correntes, algemas, grilhões, e outros quais ferros inventados para martirizar homens ainda não julgados a sofrer qualquer pena aflitiva por sentença final; entendendo-se todavia que os Juízes, e Magistrados Criminais poderão conservar por algum tempo, em casos gravíssimos, incomunicáveis os delinqüentes, contanto que seja em casas arejadas e cômodas, e nunca manietados, ou sofrendo qualquer espécie de tormento. 5º Determino finalmente que a contravenção, legalmente provada, das disposições do presente Decreto, seja irremissivelmente punida com o perdimento do emprego, e inabilidade perpétua para qualquer outro exercício de jurisdição.54
Pode-se extrair desse breve trecho que o primeiro passo foi dado no Brasil visando à proteção do devido processo legal e da liberdade individual, os quais eram transgredidos e desrespeitados pelas arbitrariedades e pelo despotismo dos governantes, tendo em vista o referido decreto se ocupado de estabelecer a prisão em flagrante como forma legal e justa de prisão individual, de proibir a prisão sem culpa formada; do prazo para o término do processo e da publicidade da audiência, bem como do amparo aos diretos humanos do preso, entre outros.55
Em que pese a influência liberal que permeou os momentos que antecederam à Constituição Imperial, nesta compreendido o citado Decreto de 1821, ainda não havia sido estabelecido o que se pode designar de “técnicas de defesa dos direitos de liberdades”56, todavia, com atraso de alguns séculos, a “Carta Magna” brasileira foi historicamente o primeiro grande marco das liberdades dos cidadãos do país, “mas era um Brasil que nascia e tem reagido, como possível, às violações dos textos constitucionais, que são devidas, quase sempre a planos estrangeiros para se evitar que o Brasil cedo chegue à altura a que se há de chegar.”57
Sobreveio, então, a Constituição Imperial, em 1824, a qual, conquanto não tenha consagrado de forma expressa o habeas corpus, tutelou tacitamente a liberdade de locomoção, em seu artigo 179, § 8º, dispôs que:58
Ninguém poderá ser preso sem culpa formada exceto nos casos declarados em lei; e nestes, dentro de vinte e quatro horas, contadas da entrada na prisão, sendo cidades, vilas ou outras povoações próximas aos lugares da residência do juiz, e nos lugares remotos, dentro de um prazo razoável, que a lei marcará, atenta à extensão do território, o juiz por uma nota por ele assinada fará constar ao réu o motivo da prisão, o nome do seu acusador e os das testemunhas, havendo-as.59
Por essa disposição, conclui-se que o direito à liberdade física havia, em que pese não existir garantia correspondente a esse direto, o que se justifica, segundo Busana, por três motivos, quais sejam: o remédio era estranho à tradição do direto português, no qual haviam sido educados os homens públicos; o instituto não aparecia nas constituições paradigmas e a técnica do direito constitucional preocupava-se mais com a solene declaração de direitos individuais do que com os instrumentos garantidores.60
Todavia, para alguns, como o deputado José de Alencar, o direito habeas corpus já existia, apenas não tinha nome, senão observa-se:
Senhores! Alguns pensam que o habeas-corpus data do Código de Processo Criminal: minha opinião é contrária. Entendo que, embora caiba aos autores a glória de terem compreendido e tratado de desconvolar o pensamento constitucional, o habeas-corpus está incluído, está implícito na Constituição, quando ela decretou a independência dos poderes e quando e quando deu ao poder judiciário o direito exclusivo de conhecer de tudo quanto entente com a inviolabilidade penal.61
Miranda é da mesma corrente e assevera que “mesmo antes do Código de Processo Criminal do Império (1832), após o decreto de 23 de maio de 1821, havia ação de desconstrangimento, sem o nome de habeas-corpus, mas classificável como tal”, dessa forma, “juízes e tribunais atendiam aos pedidos de soltura, por ser ilegal a prisão.”62
A expressão habeas corpus apareceu pela primeira vez no direito brasileiro, no Código Criminal de 1830, ao cuidar “Dos Crimes Contra a Liberdade Individual” (Parte III, Título I, artigos 183 e seguintes)63, artigo 183: “Recusarem os Juízes, à quem fôr permittido passar ordens de - habeas-corpus - concedê-las, quando lhes forem regularmente requeridas, nos casos, em que podem ser legalmente passadas; retardarem sem motivo a sua concessão [...], nos casos que a lei determinar”, e artigo 185: “Recusar, ou demorar a pessoa, a quem fôr dirigida uma ordem legal de - habeas-corpus - e devidamente intimada, a remessa, e apresentação do preso no lugar, e tempo determinado pela ordem [...], nos casos declarados pela Lei.”64 Esses regramentos, que podiam ser tanto de direto constitucional, quanto de direito processual penal, do ponto de vista jurídico, não produziam efeitos, uma vez que pressupunham a existência de norma legal contendo o remédio do habeas corpus.65
Desse modo, somente, em 1832, com o Código de Processo Criminal do Império (título VI) é que o habeas corpus passou de fato a ser instrumentalizado66, ao disciplinar, no artigo 340, que “todo o cidadão que entender, que elle ou outrem soffre uma prisão ou constrangimento illegal, em sua liberdade, tem direito de pedir uma ordem de - Habeas-Corpus - em seu favor.”67 Nos artigos seguintes, previu-se que o habeas corpus deveria ser feito por meio de petição, tendo em vista a necessidade de exposição das razões em que se fundamentavam o pedido, exigiu-se expressamente que o detentor ou o carcereiro apresentasse ao juiz o paciente em certo lugar e dentro de certo tempo e desse as razões de seu procedimento e, ainda, possibilitou-se a concessão do writ de ofício, quando “o juiz no curso do processo verificasse a prisão ilegal de alguém.”68
Como se observa, o Código de Processo Criminal de 1832 deu ao habeas corpus uma conotação quase tão restrita quanto a do Act inglês de 1679, pois instituía um procedimento aplicável apenas para análise da legalidade das prisões afetas à matéria criminal.69 Entre os anos de 1832 a 1871, as leis relativas ao habeas corpus foram ligeiramente modificadas e, apesar da influência inicial inglesa, o instituto adquiriu características próprias, eminentemente nacionais, por meio de atos legislativos, regulamentos e até mesmo pela jurisprudência, que “acentuou aqui e ali, às vezes sabiamente, certos pontos controversos ou insuficientes.”70
Então, em 1871, a extensão do writ foi sensivelmente ampliada, com a edição da Lei nº 2.033. Dentre as inovações, foram dirimidas dúvidas acerca da extensão da garantia aos estrangeiros, tendo em vista que a legislação anterior (Código de Processo Criminal de 1832, artigo 340) falava unicamente em cidadão e o novo diploma passou a dispor, em seu artigo 18, § 8º, que “não é vedado ao estrangeiro, requerer para si ordem de ‘habeas corpus’, nos casos em que esta tem lugar.”71 Entretanto, o maior avanço apresentado foi a extensão do “remédio heróico àquelas hipóteses em que o cidadão simplesmente se encontrava ameaçado na sua liberdade de ir e vir, consagrando-se a figura do habeas corpus preventivo”72, o qual sequer era conhecido pelos ingleses.73 Nas palavras de Espínola Filho:
Completou-se, em 1871, a evolução do instituto, no direito brasileiro, quando a lei n. 2033, de 20 de setembro, focalizando o caso de ameaça à liberdade individual, determinou não ser o habeas corpus, apenas remédio contra o constrangimento já objetivado, e, sim, também contra o projetado e iminente; dispôs, com efeito, art.18: ‘Os juízes de direito poderão expedir ordem de habeas corpus a favor dos que estiverem ilegalmente presos, ainda quando o fossem por determinação do chefe de polícia ou de qualquer outra autoridade administrativa, e sem exclusão dos detidos a título de recrutamento, não estando ainda alistados como praças do Exército ou Armada. A superioridade de grau na ordem da jurisdição judiciária é a única que limita a competência da respectiva autoridade em resolver sobre as prisões feitas por mandados das mesmas autoridades judiciais’; e o § 1º acrescentou: ‘Tem lugar o pedido e concessão da ordem de habeas corpus, ainda quando o impetrante não tenha chegado a sofrer constrangimento corporal, mas se veja dele ameaçado’.74
No entanto, ainda pairava dúvida quanto à possibilidade da extensão da palavra cidadão à mulher, disposta no artigo 340, do Código de Processo Criminal de 1832, para que ela pudesse reclamar a ordem de habeas corpus para si ou para outrem. Os juristas da época firmaram inicialmente o entendimento de que ela poderia pedir apenas para si ou para seu marido. Todavia, posteriormente, firmou-se o entendimento de que a sua incapacidade jurídica dizia respeito apenas a poder litigar em juízo e não a praticar atos que concernem à proteção de seus direitos inalienáveis. A partir de então, não mais se denegou a qualquer mulher, fosse ela solteira, separada judicialmente, divorciada, viúva, nacional, estrangeira, o direito de pleitear, para si ou para outrem, o remédio jurídico processual constitucional.75
Após a proclamação da República, o desenvolvimento de habeas corpus foi tão grande que, quando se organizou a Justiça Federal, o Decreto nº 848, de 11 de outubro de 1890, instituiu um recurso para a Suprema Corte em todos os casos de denegação do writ.76 O preâmbulo do Decreto merece menção: “As formas mais singelas, mais prontas, e de maior eficácia foram adotadas; e, como sólida garantia em favor daquele que sofre constrangimento, ficou estabelecido o recurso para o Supremo Tribunal Federal, em caso de denegação da ordem de habeas-corpus [...]” e foi além: “[...] tanto quanto é possível, e dentro dos limites postos à previsão legislativa, ficou garantida a soberania do cidadão. E é êsse certamente o ponto que deve convergir a mais assídua de todas as preocupações do governo republicano.” E finalizou: “O ponto de partida para um sólido regime de liberdade está na garantia dos direitos individuais.”77
Com o advento da Constituição da República dos Estados Unidos, em 1891, o habeas corpus ganhou, pela primeira vez, status constitucional ao preceituar em seu artigo 72, § 22, que: “Dar-se-á o habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder.”78 Tal dispositivo, evidentemente, ao elevar o mandamus79 a preceito constitucional, tornou-o mais consistente e trouxe ao instituto maior segurança, no que diz respeito à maior durabilidade.80
Desse modo, passou a ser considerado um remédio mais amplo, o que causou debates acirrados e discussões calorosas. A celeuma foi notável, tendo em vista que na liça encontrava-se Rui Barbosa, jurista e político, que ao interpretar o texto constitucional não via limites à concessão da ordem, para ele, além da liberdade de locomoção, o habeas corpus poderia ocupar-se de qualquer tipo de violência ou ameaça à liberdade da pessoa, ainda fosse à liberdade de manifestação de pensamento, por exemplo. Por outro lado, o jurista Pedro Lessa defendia a limitação para a concessão da ordem para os casos de ofensa direta à liberdade de locomoção.81
A partir daí, o Supremo Tribunal Federal, por influência de Ruy Barbosa, passou a se posicionar no sentido de que o habeas corpus era remédio idôneo à proteção de qualquer direito, mesmo que de índole extrapenal, desde que tivesse por pressuposto a tutela de direitos e liberdades de natureza constitucional, o que não poderia ser diferente, levando-se em conta que o comando constitucional não restringia o conhecimento, nem a concessão do writ à proteção estrita da liberdade de locomoção, “até mesmo porque não se achavam previstos outros remédios como o mandado de segurança.”82
Com o surgimento dessa forte corrente, que admitia o processamento do writ para tutelar qualquer lesão a direitos, chegou-se a conceder habeas corpus para anular ato administrativo que determinava o cancelamento da matrícula de aluno em escola pública, para conceder uma segunda época de provas a estudantes, para garantir a realização de comícios eleitorais, para garantir o desempenho de ofício.83 O próprio Supremo Tribunal Federal concedeu o mandamus para reintegrar funcionários públicos ao cargo anteriormente ocupado, para publicar artigos lidos da Tribuna do Congresso durante Estado de Sítio, para visitar presos políticos e até mesmo para estudantes concluírem curso de acordo com lei anterior revogada.84
Nas palavras de Tourinho Filho, daí resultou a doutrina brasileira do habeas corpus, definida no acórdão de 16/12/14, pelo qual o Supremo Tribunal Federal assegurou a posse de Nilo Peçanha no governo do Estado do Rio de Janeiro. Relatado pelo Ministro Enéas Galvão, em resumo sustentou-se que:85
1) a expressão do art. 72 § 22, da Constituição compreende qualquer coação e não somente a violência de encarceramento; 2) não há, em nosso Direito, outra medida capaz de amparar eficazmente o livre exercício dos direitos, a liberdade de ação e a prática dos atos não proibidos por lei; 3) o habeas corpus não deve limitar-se a impedir a prisão injusta e a garantir a livre locomoção; 4) a providência estende-se aos funcionários para penetrar livremente em sua repartição e desempenhar o seu emprego, aos magistrados e aos mandatários do Município, do Estado e da União, para exercerem a sua função ou mandato; 5) o Supremo Tribunal Federal interpreta soberanamente as regras constitucionais, sem estar subordinado às disposições das leis ordinárias.86
Com a reforma constitucional, ocorrida em 1925/1926, a polêmica foi dirimida de modo definitivo, quando foi dada nova redação ao artigo 72, § 22, da Constituição, ao instituir que: “Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência por meio de prisão ou constrangimento ilegal em sua liberdade de locomoção.”87 Com a mudança no dispositivo, tornava-se, portanto, evidente que o âmbito de proteção do habeas corpus havia sido limitado88, porquanto, com a mudança, somente se protegia liberdade de locomoção. “Entenda-se por ela o direto de ir, de ficar e de vir. Locomoção: positiva (ir e vir); negativa (ficar e voltar).”89
Não foi duradouro o retrocesso em relação à proteção de outros direitos, tendo em vista que, na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1934, foi inserida a figura do Mandado de Segurança “para a defesa de direito certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente ilegal de qualquer autoridade.”90 Em que pese a afirmação de que houve regressão no que diz respeito à proteção de direitos diversos da liberdade ambulatorial, frisa-se que o writ continuou a ser usado para protegê-los, apesar da inexistência de previsão constitucional a partir da reforma de 1926, até a efetiva criação do Mandado de Segurança em 1934.91
Em 1937, a nova Constituição dos Estados Unidos do Brasil, outorgada, conquanto incluísse o habeas corpus entre as garantias individuais (artigo 22, nº 6), permitia no artigo 166 ao Presidente da República “(eufemismo como o qual o ditador disfarçava sua descarada usurpação)” decretar estado de emergência e suprimia do Poder Judiciário a apreciação de atos praticados nesse estado. Para completar, o artigo 186 decretava em todo o país o estado de emergência. Ainda, durante a vigência dessa Constituição, foi introduzido o atual Código de Processo Penal (Decreto-lei nº 3.689, de 30/10/1941), o qual, em seu artigo 647, repetiu literalmente, § 16 do artigo 122 da referida Carta: “Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar.”92
A Constituição de 1946 retornou ao regime democrático e previu, no artigo 141, § 23, o habeas corpus, todavia deixou de exigir que a coação fosse iminente, satisfazendo-se com a ameaça de constrangimento: “Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Nas transgressões disciplinares, não cabe o habeas corpus” e, novamente, consagrou o instituto do Mandado de Segurança, no artigo 141, § 24, nos seguintes termos: “Para proteger direito líquido e certo não amparado por habeas corpus, conceder-se-á mandado de segurança, seja qual for a autoridade responsável pela ilegalidade ou abuso de poder.”93
No ano de 1967, a Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 150, § 20, reproduziu o texto da Carta de 1946, apesar de ter o Ato Institucional Número Cinco (AI 5), de 13 de dezembro de 1968, no artigo 10, ameaçado esse direito assim dispondo: “Fica suspensa a garantia do Habeas Corpus nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem social e a economia popular.” A Emenda à Constituição, ocorrida em 1969, manteve a redação anterior, a qual passou constar no artigo 153, § 20. Todavia o Ato Institucional Número Cinco continuou em vigor até 31 de dezembro de 1978, quando então foi revogado pela emenda Constitucional nº 1194, cujo artigo 3º revogava todos os atos institucionais e complementares, no que fossem contrários à Constituição Federal, "ressalvados os efeitos dos atos praticados com bases neles, os quais estão excluídos de apreciação judicial", o que, por conseguinte, fez restabelecer o habeas corpus.95
Nas palavras de Grinover, Gomes Filho e Fernandes:96
Em todos os textos constitucionais posteriores, sem exceção, a garantia do habeas corpus, foi expressamente prevista, com a ressalva de que não seria cabível nas transgressões disciplinares: 1934, art. 113, n. 23; 1937, art. 122, n. 16; 1946, art. 141, § 23; 1967, art. 150, § 20; Emenda Constitucional n. 1, de 1969, art. 153, § 20. Durante esse período a única restrição ao cabimento do habeas corpus foi introduzida pelo Ato Institucional 5 de 1968, que suspendeu a garantia nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem social e a economia popular.
Em 1988, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, oficializou-se o processo democrático no país no decorrer da década de 1980.97 Nos dizeres de Guimarães, lastreado no preâmbulo da Carta:
Com ela superava-se o regime revolucionário para ‘[...] para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias [...]’98
Nessa linha, no que diz respeito ao habeas corpus, a Constituição da República Federativa do Brasil cuidou do instituto, no Capítulo relativo aos direitos e deveres individuais e coletivos, ao disciplinar, no seu artigo 5º, inciso LXVIII, que “conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”99, o que leva à conclusão de que hoje o writ protege apenas a liberdade de locomoção.”100
Desse modo, o habeas corpus, com maior ou menor elasticidade, esteve presente no Brasil desde o Código Criminal do Império, de 1832. Posteriormente, com o surgimento da Constituição Republicana de 1891 adquiriu status constitucional e assim mantém-se até hoje. A única ressalva, em todos os textos constitucionais, foi a vedação de utilização do remédio nos casos de “transgressões disciplinares”, a qual, atualmente, encontra-se prevista no artigo 142, § 2º, da Constituição da República Federativa do Brasil, no seguintes termos: “Não caberá ‘habeas-corpus’ em relação a punições disciplinares militares.”101
No capítulo seguinte, analisar-se-ão as peculiaridades do instituto habeas corpus no atual sistema jurídico, bem como os efeitos decorrentes da interposição dos recursos.