I - KANT
Emanuel Kant (1724-1804) é considerado o maior filósofo da época moderna, tendo suas Críticas encaminhado a meditação filosófica num sentido novo e original.
Em 1781 kant publica a primeira edição da Kritik der Reinen Vernunft (Crítica da Razão Pura), sendo a segunda edição publica em 1787. No intervalo das duas edições, em 1783, publicou Prolegomena zu Einer Jeden Künftigen Metaphysik die als Wiessenschaft wird Auftreten Könen (Prolegômenos a Toda Metafísica Futura, que Queira Apresentar-se como Ciência). Nesta fase também publicou Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (Fundação da Metafísica dos Costumes, 1785). Após a segunda edição referida, em 1788, kant publicou Kritik der Praktischen Vernunft (Crítica da Razão Prática), dedicada à investigação da questão moral. Logo em seguida, em 1790, publicou sua terceira crítica, a Kritik der Urteilskraft (Crítica do Juízo), onde examina o problema do finalismo na natureza e o problema estético. Em 1797 edita Die Metaphysik der Sitten (Metafísica dos Costumes), obra onde mais se adensa seu pensamento político e jurídico, conforme veremos a serguir.
Kant não escreveu um tratado de política ou jurídico. Todavia, sua obra interessa à reflexão sobre o Estado de uma dupla maneira: diretamente, por um lado, na medida em que suas análises que incidem sobre a moral, os costumes, o direito e a história, definem conceitos que têm implicação política; indireta e talvez mais profundamente, por outro lado, na medida em que sua concepção filosófica do conhecimento e do saber, da prática e dos fins últimos do homem influem no pensamento político moderno, tanto pelas perspectivas metodológicas que abriu como pelos resultados que permitiu adquirir.
Diversas são as questões submetidas ao crivo da análise kantiana. A primeira delas diz respeito ao conhecimento, suas possibilidades e seus limites. A segunda questão analisada foi o problema da ação humana, que envolve problemas morais e jurídicos (filosofia prática). Como deve o homem agir na ordem moral e jurídica ? É aqui que se situam os textos políticos e jurídicos mais importantes do pensamento kantiano.
Para uma adequada compreensão do pensamento político e jurídico de Kant, é fundamental uma leitura atenta da sua Metafísica dos Costumes (1797), dividida em duas partes, "Doutrina do direito" e "Doutrina da virtude", das quais a primeira apresenta maior significação para nosso estudo. Por pensamento político-jurídico entendemos aqui as principais idéias deste filósofo moderno sobre Poder, Estado, Direito, Liberdade e Justiça.
Atentando, pois, para este "pano de fundo" da concepção político-jurídica de Kant, daremos destaque em nossa exposição a determinadas passagens da Metafísica dos Costumes. Convém esclarecer que, para Kant, "costumes" designa toda o conjunto de leis (em sentido amplo) ou regras de conduta que normatizam a ação humana. Kant propõe-se, assim, a elaboração de uma matafísica da conduta do homem enquanto ser livre, entendendo-se "metafísica" como um conhecimento racional não empírico. Numa linguagem tipicamente kantiana, pode-se dizer que Metafísica dos Costumes designa um saber "a priori" ou puro (não contaminado pela empiria) das leis que regulam a conduta humana. Kant refere-se uma "Filosofia moral pura, completamente livre de tudo aquilo que é empírico e que pertence à antropologia".
Imperativo categórico e imperativo hipotético
Analisando a faculdade de conhecer, na Crítica da Razão Pura, Kant distingue duas formas de conhecimento: o empírico ou a posteriori, e o puro ou a priori. O conhecimento empírico refere-se aos dados fornecidos pelas experiências sensíveis. Exemplo: "A janela está aberta". Tal proposição vincula-se a dados captados pelos sentidos. O conhecimento puro ou a priori, pelo contrário, não depende de qualquer experiência sensível. Exemplo: "A linha reta é a distância mais curta entre dois pontos". O primeiro tipo de conhecimento, ao contrário do segundo, produz juízos necessários e universais.
Ao lado desta primeira distinção, Kant introduz outra. Refere-se aos juízos analíticos e aos juízos sintéticos. Nos primeiros, o predicado já está contido do sujeito. Exemplo: "Os corpos são extensos". Nos sintéticos, pelo contrário, o predicado acresce algo de novo ao sujeito. Exemplo: "Os corpos se movimentam". Para Kant, os juízos sintéticos são os únicos que "enriquecem" o conhecimento.
Feitas estas distinções iniciais, Kant classifica os juízos em três tipos: analíticos, sintéticos a priori e sintéticos a posteriori. Para kant, os juízos analíticos não teriam maior interesse para a ciência, pois embora universais e necessários, não representam qualquer enriquecimento do saber. Por outro lado, os juízos sintéticos a posteriori, também carecem de importância posto que são todos contingentes e particulares, referindo-se a experiências que se esgotam em si mesmas. Portanto, o terreno próprio da ciência deverá ser preenchido pelos juízos sintéticos a priori, os quais são ao mesmo tempo universais e necessários, fazendo avançar o conhecimento.
A razão, aplicada à crítica do conhecimento, também volta-se, em Kant, para análise do universo da moralidade.
Diz Kant: "Permita-nos aduzir que, a menos que se queira negar toda verdade ao conceito de moralidade, e toda relação entre ele e um objeto possível qualquer, não se pode negar que sua lei lei é de tal abrangência que ela vigora não apenas para seres humanos, mas para todo ser racional em geral; e não apenas sob condições contingentes e com exceções, mas de maneira absolutamente necessária. É claro que nenhuma experiência poderia nos dar sequer ocasião de inferir a possibilidade de tais leis apodíticas. Pois com que direito podemos tornar alguma coisa um objeto de ilimitado respeito, com uma prescrição universal para toda natureza racional, se ela talvez pudesse ser válida unicamente sob as condições contingentes da humanidade ? E por que leis de determinação de nossa vontade deveriam ser tomadas por leis determinação da vontade do ser racional em geral, se tais leis fossem empíricas, ao invés de ter sua origem inteiramente a priori da razão pura, embora prática" (Fundamentos da Metafísica dos Costumes).
Para Kant, a moralidade parece ter um valor em si mesma. Ela expressa um dever puro. Tem sua origem a priori na razão, e não a posteriori. Indica um dever de forma categórica. Ou seja, ordena categoricamente, e não hipoteticamente. Neste sentido, Kant afirma que "todos os imperativos ordenam hipotética ou categoricamente... Se a ação for boa simplesmente como um meio para alguma outra coisa, então o imperativo é hipotético; mas se a ação é representada como boa em si mesma e, portanto, como um princípio necessário para uma vontade que, em si mesma, está em conformidade com a razão, então o imperativo é categórico" (Fundamentação da Metafísica dos Costumes).
Imperativo aqui quer dizer ordem, mais precisamente "ordens da razão". O imperativo categórico nos mostra o que é racional em si mesmo. Por outro lado, o imperativo hipotético revela uma ação que é um meio para consecução de determinado fim.
Para Kant, o imperativo categórico pode formulado da seguinte forma: "Age unicamente segundo uma máxima tal que ao mesmo tempo possas querer que ela se torne uma lei universal". E ainda: "Age de tal maneira que trates a humanidade, em tua própria pessoa e na pessoa de cada outro ser humano, jamais como um meio, porém sempre ao mesmo tempo com um fim." (Metafísica... )
"Leis da liberdade" e "leis da necessidade"
Kant denomina "leis da liberdade" aquelas que regulam a conduta humana, e "leis da necessidade" aquelas que regulam a natureza, ou os eventos naturais. As leis da conduta humana (objeto da metafísica dos costumes) são ordem, diferentemente das leis naturais. Enquanto estas regulam fenômenos naturais de forma necessária (leis da necessidade), aquelas se referem ao homem, que, diferentemente dos seres naturais, é livre (daí falar-se em leis da liberdade). As leis da necessidade descrevem, enquanto as leis da liberdade prescrevem. As leis da liberdade são, portanto, preceitos.
Kant distingue dois tipos de preceitos: os categóricos e os hipotéticos. Os que prescrevem uma ação boa por si mesma são categóricos: "Não deves furtar". Os que prescrevem uma ação boa tendo em vista um certo fim são ditos hipotéticos : "Se você não quiser ser preso, não deve furtar".
No que se refere às "leis da liberdade", importa distinguir a legislação moral da legislação jurídica, ambas referenciadas à conduta humana.
Âmbito da moral e âmbito do direito
Para Kant, "As leis da liberdade chamam-se morais para distinguir-se das leis da natureza. Enquanto se referem somente às ações externas e à conformidade à lei chamam-se jurídicas; se, porém exigem ser consideradas em si mesmas, como princípios que determinam as ações, então são éticas; dá-se o nome de legalidade à conformidade das ações com as primeiras, e de moralidade à conformidade com as demais". A ação moral é, pois cumprida, não em virtude de um fim, mas tão somente pela máxima que a determina. É posta em movimento por uma inclinação interior (imperativo categórico). Assim, "a legislação que erige uma ação como dever, e o dever ao mesmo tempo como impulso, é moral. Aquela, pelo contrário, que não compreende esta última esta última condição na lei, e que, consequentemente, admite também um impulso diferente da idéia do próprio dever, é jurídica". E ainda: "A legislação ética é a que não pode ser externa, a legislação jurídica é a que pode ser também externa. Assim, é dever externo manter as próprias promessas em conformidade com o contrato, mas o imperativo de fazê-lo unicamente porque é dever, sem levar em conta qualquer outro impulso, pertence somente à legislação interna". Temos, pois, em conformidade com a perspectiva adotada por Kant, que a distinção entre moralidade e juridicidade é puramente formal. Diz respeito à forma de obrigar-se, e não ao objeto das ações.
Direito em Kant
Em compasso com sua ótica "metafísica", Kant intenta proceder uma justificação do direito e de seus principais institutos jurídicos a partir de princípios puramente racionais. Trata-se de uma ilação "transcendental". Kant, não elabora um doutrina empírica do direito, mas uma doutrina metafísica, ou seja, uma doutrina racional do direito.
Segundo kant, "o conceito de direito, enquanto este se refere a uma obrigação correspondente (...) diz respeito em primeiro lugar somente à relação externa, e absolutamente prática, de uma pessoa com relação à outra, enquanto as ações próprias podem ter como base influências recíprocas". O direito situa-se, assim, no mundo das relações externas entre os homens.
E mais. O conceito de direito "não significa uma relação do arbítrio com o desejo dos outros, como acontece nos atos de beneficência ou de crueldade, mas refere-se exclusivamente às relações com o arbítrio dos outros". O direito refere-se, pois, a uma relação externa entre dois arbítrios. Isto quer dizer que somente temos o "direito" quando nos defrontamos com um encontro não de dois desejos, ou de um arbítrio com um desejo, mas de dois arbítrios, que dizer, de duas capacidades conscientes do poder do poder que cada uma tem de alcançar o objeto do desejo.
Neste contexto, "o direito é o conjunto das condições por meio das quais o arbítrio de um pode estar de acordo com o arbítrio de um outro, segundo uma lei universal da liberdade". Com base nesta concepção, Kant apresenta algumas determinações da categoria direito, senão vejamos.
Primeiramente, o direito, como categoria autônoma, refere-se em primeiro lugar somente à relações externas e práticas de um sujeito em relação a outro, situando-se assim no campo das relações intersubjetivas. Como o mundo das relações intersubjetivas é mais amplo que o campo do direito, faz-se mister determinações mais específicas do direito. Aprofundando sua análise, Kant afirma que, "em segundo lugar, o conceito de direito não significa uma relação do arbítrio com o desejo dos outros", como ocorre no terreno na moralidade, "mas refere-se exclusivamente às relações com o arbítrio dos outros". Assim, para que exista uma relação verdadeiramente jurídica, é necessário que o meu arbítrio esteja relacionado com o arbítrio dos outros, e não somente com o desejo dos outros. Resta, claro, na ótica kantiana, que o arbítrio se distingue do mero desejo pela consciência da sua capacidade de produzir um objeto determinado, em conformidade com a relação jurídica em questão. Por fim, arremata Kant, "nesta relação recíproca de um arbítrio com o outro, não se considera absolutamente a matéria do arbítrio, ou seja, o fim que uma pessoa se propõe por um objeto que ela quer (...) mas somente a forma da relação dos dois arbítrios, enquanto esses são considerados absolutamente como livres". Tal derradeira e última caracterização do fenômeno jurídico, coloca Kant no limiar do formalismo jurídico ocidental. Nesta perspectiva, o direito fornece apenas a forma universal de coordenação e convivência dos diversos arbítrios.
Da conceituação kantiana de direito, e de todas as determinações acima expostas, deriva a lei universal do direito, assim formulada por kant: "Atua externamente de maneira que o uso livre de teu arbítrio possa estar de acordo com a liberdade de qualquer outro segundo uma lei universal". Do exposto resta claro que sua concepção jurídica é tipicamente liberal, ou seja, centrada da liberdade individual, e formalista, ou seja, desvinculada de fins ou valores.
Direito público e direito privado
Em conformidade com sua ótica epistemológica, a distinção entre direito privado e direito público não é uma distinção empírica, mas fundamentalmente uma distinção racional. Sendo racional, a única forma de fundamentá-las é voltando-se para as chamadas "fontes", das quais os diversos direitos se originam. Assim, qualquer direito que derive do Estado é direito público, mesmo aquele que os juristas costumam denominar direito privado. Todo direito estatal é necessariamente um direito público. Um direito privado, para kant, portanto, somente seria possível fora do âmbito do Estado. Tal seria possível ?
Para Kant, que é um jusnaturalista, tal é possível. O direito fora do estado, e, portanto, não público, seria o direito natural, aquele que regula as relações entre os homens no estado de natureza. O direito privado seria assim o direito próprio do estado de natureza, próprio de uma estado pré-estatal. Desta forma, o problema da distinção entre direito privado e direito público em Kant muda para a distinção entre direito natural e direito positivo, ou seja, entre o direito a que se visa no estado de natureza e o direito a que se visa no estado civil. Direito privado e direito público correspondem, portanto, na teoria kantiana, a uma distinção de status: o primeiro é próprio do estado de natureza, no qual as relações jurídicas atuam entre indivíduos isolados, independentemente de uma autoridade superior; o segundo é próprio do estado civil, no qual as relações jurídicas são reguladas por uma autoridade superior aos indivíduos, que é, neste caso, a autoridade superior do Estado.
Observe-se, contudo, que, em Kant, o direito privado não desaparece no interior do direito público, devendo, no estado civil, gozar das garantias não presentes no estado de natureza. O estado civil não deve importar numa anulação do direito natural, do direito privado, para possibilitar seu pleno florescimento e desenvolvimento através da atividade coercitiva do Estado. Direito público e direito não se encontram, pois, numa relação de antítese, mas de integração.
II - HEGEL
Em 1770, ano do nascimento de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Kant ministrava sua aula inaugural na Universidade de Königsberg. No pensamento germâmico, Kant fixara uma tradição de sistematização austera e de profunda objetividade especulativa, a qual, certamente, influenciaria Hegel alguns anos mais tarde. Por outro lado, ao tempo em que Hegel iniciou sua "atividade filosófica", toda a Europa encontrava-se envolvida em sua maior transformação desde o Renascimento, o movimento iluminista, que teve na Revolução Francesa de 1789 sua eclosão por excelência no campo político.
O pensamento de Hegel é o ponto culminante do chamado "idealismo alemão", propondo-se este filósofo ultrapassar os sistemas de Fichte, Schelling e do próprio Kant. Para Hegel, a filosofia deve descrever o devir do Espírito, o seu desdobramento em formas sucessivas, graças às quais adquire consciência de si mesmo como constituindo a realidade universal. Este desenvolvimento do Absoluto é dialético, quer dizer, a superação das várias formas do pensamento e do ser, que se confundem, resultam de contradições que se resolvem por sínteses, as quais, noutros momentos, se defrontam com novas contradições.
Assim, cada momento do desenvolvimento do espírito traz em si sua própria negação ou antítese, impondo-se uma nova síntese, tendente a superar a contradição surgida. Para Hegel, o processo dialético é ontológico e universal. Diz respeito não somente ao "espírito subjetivo", mas a todo mundo do ser e do dever-ser, abrangendo os movimentos da matéria, as formações orgânicas e as criações espirituais.
Sem adentrar-mos, no momento, nos escritos jurídicos e políticos de Hegel, poder-se-ía dizer que a base do sistema hegeliano comporta três divisões fundamentais: a Lógica, a Filosofia da natureza e a Filosofia do espírito. A Lógica se ocupa do "sistema da razão pura... o reino do pensamento puro". Apresenta as determinações mais gerais do pensamento, e, consequentemente, do ser, separadas do mundo empírico. A Filosofia da natureza estuda o espírito em sua manifestação exterior. A natureza é o contraponto da Idéia, é a Idéia sob a forma de alienação. Tal sistema foi exposto principalmente em duas obras, a Ciência da lógica (1812/1816) e Enciclopédia das ciências filosóficas (1817). Outra obra fundamental, a Fenomenologia do Espírito (1807) apresenta-se como uma ampla introdução ao seu sistema filosófico.
O Espírito para Hegel, além de sua concreção subjetiva (Espírito Subjetivo), tende a ultrapassar a pura subjetividade, manifestando-se como Espírito Objetivo no Direito, na Moralidade e na Eticidade, dos quais são expressões a família, a sociedade civil e o Estado. Este último é apresentado com "totalidade ética", como a "síntese suprema".
O Espírito Objetivo, contudo, ainda não se apresenta como a manifestação plena do Espírito. Somente sob a forma de Espírito absoluto o mesmo adquire sua pela consciência e atualidade. Tal Espírito se exprime na arte, na religião e na filosofia. Aqui o Espírito se pensa em toda sua realidade e verdade, relacionando-se plenamente consigo mesmo.
Para Hegel, "o que é racional é real e o que é real é racional". Assim se manifesta no Prefácio de sua obra Princípios de Filosofia do Direito (Princípios de Filosofia do Direito, Martins Fontes, XXXVI): "Esta é a convicção de toda consciência livre de preconceitos e dela parte a filosofia tanto ao considerar o universo espiritual como o universo natural. Quando a reflexão, o sentimento e em geral a consciência subjetiva de qualquer modo consideram o presente como vão, o ultrapassam e querem saber mais, caem no vazio e, porque só no presente têm realidade, eles mesmos são esse vazio."
E ainda: "Quanto ao ponto de vista inverso, o daqueles para quem a idéia só vale no sentido restrito de representação da opinião, a esses opõe a filosofia uma visão mais verídica de que só a idéia, e nada mais, é real, e então do que se trata é de reconhecer na aparência do temporal e do transitório a substância que é imanente e o eterno que é presente."
Sobre este ponto, arremata o filósofo: "Com efeito, o racional, que é sinônimo da Idéia, adquire, ao entrar com sua realidade na existência exterior, uma riqueza infinita de formas, de aparências e de manifestações, (...)."
Aplicando esta diretriz e concepção ao estudo do Estado (e, consequentemente, do Direito), Hegel adverte que "nosso tratado sobre a ciência do Estado nada mais quer representar senão uma tentativa para conceber o Estado como algo de racional em si. É um escrito filosófico e, portanto, nada lhe poder ser mais alheio do que a construção ideal de um Estado como deve ser." Assim, pois, "a missão da filosofia está em conceber o que é, porque o que é é a razão."
No complexo e multifacetado pensamento hegeliano, podemos descortinar, de forma nítida, os traços de uma filosofia do Direito e do Estado, umbilicalmente ligada aos princípios de seu "sistema filosófico".Uma das chaves de leitura do pensamento jurídico-político hegeliano, é examiná-lo em contraponto com a teoria do Direito e do Estado formulada pelo movimento jusnaturalista. Assim, convém examinar a "filosofia jurídica" de Hegel no contexto do pensamento jurídico-político do séc. XVIII, ou seja, num contexto marcado pela tradição do direito natural. O pensamento jurídico de Hegel é, com relação à tradição do jusnaturalismo, da qual Kant foi expressão máxima, ao mesmo tempo dissolução e realização. Falando de ‘dissolução’, deve-se observar que as categorias fundamentais elaboradas pelos jusnaturalistas para construir uma teoria geral do direito e do Estado são refutadas por Hegel mediante uma crítica freqüentemente radical, que tende a mostrar suas inconsistências e inadequação. Falando de ‘realização’, quero dizer que Hegel tende em última instância ao mesmo objetivo final, atingindo-o, ou acreditando atingi-lo, precisamente, precisamente porque forja instrumentos novos para substituir os velhos, agora tornados imprestáveis." Tal aceno é feito pelo próprio Hegel no prefácio de sua obra "Princípios da Filosofia do Direito" (Princípios da Filosofia do Direito, Ed. Martins Fontes, p. XXVII), nos seguintes termos: "Dir-se-ia que, atualmente, é nas questões que se referem ao Estado que se encontra a mais forte raiz daquelas representações segundo as quais a prova de que um pensamento é livre seria o inconformismo e até a hostilidade contra os valores publicamente reconhecidos e, por conseguinte, uma filosofia do Estado deveria ser especialmente formulada para inventar a expor mais uma teoria mas, bem entendido, uma teoria nova e particular."
Afastando-se do jusnaturalismo imperante, Hegel toma o conceito de "totalidade ética" (sittliche totalität) com fundamento de um novo sistema do direito e do Estado. "A totalidade ética não é nada mais do que um povo", declara Hegel.
Mas como se apresenta a totalidade ética hegeliana ? Ela é concebida como um organismo vivo e histórico, como um sujeito histórico diferente do indivíduo ou da mera soma de indivíduos, como uma coletividade, um todo orgânico. A eticidade (die Sittlichkeit) é vista, portanto, como um novo momento da "vida prática", ao lado da moralidade e do direito.
Alguns caracteres da totalidade ética são apontados por Hegel, senão vejamos.
Primeiramente, nesta totalidade, o todo vem antes das partes. Eis um princípio fundamental e inarredável de sua filosofia política e jurídica, que o contrapõe, desde já a todo individualismo e fragmentação moderna. De fato, o jusnaturalismo apresentava uma nítida tendência de antepor o singular ao universal, a parte ao todo, o indivíduo ao Estado. Este apresentava-se como um todo constituído a partir do indivíduo. Tal era a concepção das diversas elaborações assentadas sobre as idéias de "estado de natureza", "estado civil" e "contrato social". Hegel inverte os termos desta tradição.
E segundo lugar, na totalidade ética o todo não somente vem antes das partes, mas é superior às partes. Tal superioridade conduz Hegel a uma crítica veemente de todos os modelos de interpretação contratualistas, típicos do jusnaturalismo, que tendem a fundar o todo (o Estado) num contrato das partes (indivíduos), mesmo quando não se toma tal contrato como um fato histórico, mas tão somente como uma idéia abstrata, uma "chave conceitual", como o faz Kant. Hegel afirma que "a vontade universal não pode ser constituída pelas vontades singulares, já que é ela mesma que as constitui". E ainda: "A vontade geral não deve ser considerada como composta pelas vontades expressamente individuais, de modo que estas últimas permaneçam absolutas... Ao contrário, a vontade geral deve ser a vontade racional, ainda que não tenha consciência disto: portanto, o Estado não é uma união que seja contraída pelo arbítrio dos indivíduos." Em termos jurídicos, poder-se-ía dizer que Hegel somente reconhece validade à categoria de contrato no âmbito do direito privado, sendo que sua transposição para a esfera do direito público se lhe apresenta como uma transposição indevida e ilegítima.
Por fim, A totalidade ética, na medida em que se identifica com a vida de um povo, é um momento da história universal, ou seja, é um evento histórico, e não uma mera construção abstrata do pensamento. Segundo Hegel, o noção de "estado de natureza" enquanto estado pré-político e pré jurídico, apresenta-se destituída de qualquer sentido teórico e prático, uma vez que "a sociedade é a condição em que, unicamente, o direito tem sua realidade" (I Enc., § 502). Atacando a idéia jusnaturalista de "estado de natureza", Hegel também ataca a doutrina dos direitos do homem como direitos naturais preexistentes à sociedade.
Família, sociedade civil e Estado
Em Hegel, certamente por influência de Rousseau, o conceito de autonomia do sujeito, de origem kantiana, deixa de se referir apenas ao sujeito, para assumir uma dimensão nitidamente coletiva, mais sintonizada com o conceito de eticidade. Para o próprio filósofo, tal movimento consistiu numa "reconciliação com o real", numa tentativa de superação dialética das contradições existentes no seio no movimento jusnaturalista. Hegel se dá conta de que, no mundo moderno, havia se consolidado figuras sociais que tornavam inviável a proposta de retorno ao modo de organização social da pólis greco-romana. Esta inviabilidade resultaria do fato de que a esfera da particularidade (da individualidade) havia assumido na modernidade uma dimensão inédita em comparação com o mundo antigo. Enquanto nesse último a expansão do particular conduzia ao colapso da ordem social, entrando em choque com o universal, o mundo moderno desenvolveria a universidade precisamente a partir do livre jogo da ação dos particulares, ou seja, da liberdade dos indivíduos.
Para uma fiel representação do "mundo moderno", em sintonia com sua postura dialética, Hegel elaborou o conceito de "eticidade" ou "vida ética" (Sittlichkeit). Tratava-se, agora, de inserir a "sociedade civil" como um momento próprio da totalidade social moderna, ainda que o Estado se apresentasse, no sistema hegeliano, como expressão máxima da universalidade em si e para si e da própria totalidade ética.
Buscando uma síntese dialética entre o particular e o universal, entre o indivíduo e o Estado, entre o privado e público, diferenciados e apartados na tradição jusnaturalista, para Hegel, entre esses dois momentos, caberia inserir a mediação da "sociedade civil". Com a descoberta dessa mediação, Hegel se capacita a cumprir a tarefa central que propusera para sua filosofia política : a conciliação entre, por um lado, a liberdade individual, surgida na modernidade e transformada no principal valor do liberalismo, e, por outro lado, a reconstrução de uma ordem social fundada na prioridade do público (do universal) sobre o privado.
Afastando-se do conceito de "vontade individual", ou "vontade de todos", de matriz liberal, Hegel adere ao conceito de "vontade geral", mais sintonizado com os princípios de seu sistema filosófico, conferindo a tal conceito uma base objetiva, e não mais subjetiva, como fazia o jusnaturalismo. Assim, para Hegel, a vontade geral, em seu processo de exteriorização, passa por um processo de determinações históricas que transcende a ação dos indivíduos e seus projetos volitivos singulares. Enquanto componente do mundo ético, a vontade geral não resulta de um postulado moral, mas emerge de uma comunidade objetiva de interesses que o movimento da realidade (que Hegel denomina "Espírito" ou "razão") produz e impõe aos indivíduos, independentemente da consciência e o desejo deles, embora muitas vezes se utilize desses "instrumentos" para sua concretização.
Neste contexto, a forma inicial da eticidade, a primeira forma objetiva universalizadora de interesses é a família, ou seja, a primeira esfera do ser social que define regras comunitárias de ação para seus membros. A terceira (e mais universal) forma da eticidade seria o Estado, definido como "totalidade ética". Entre a família e o Estado aparece, pois, como figura relativamente autônoma, a esfera da sociedade civil, denominada por Hegel como "sistema de necessidades e do trabalho". O conceito de sociedade civil aparenta uma certa inspiração econômica, talvez proveniente dos escritos clássicos da então nascente Economia. Em sua obra Filosofia do Direito, Hegel assim se manifesta sobre este conceito: "Nessa dependência e reciprocidade do trabalho e da satisfação das necessidades, o egoísmo subjetivo se transforma na contribuição para a satisfação dos interesses dos outros. Há uma mediação do indivíduo pelo universal, um movimento dialético pelo qual cada um, ao ganhar, produzir e fruir para si, precisamente por isso, produz e ganha para a fruição de todos. Essa necessidade se encontra no encadeamento universal da dependência de todos."
Em Hegel, com já acenado, o Estado aparece como superação dialética das duas primeiras figuras da eticidade (família e sociedade civil). O Estado, em sua ordem jurídica, eleva a um nível superior o movimento de universalização contido na família e na sociedade civil.
Em sua perspectiva, Hegel pretende entender o Estado como algo "racional em si", como "realidade da vontade substancial", como "momento supremo da vida coletiva", como "realidade da liberdade concreta".
O Direito em Hegel
Hegel toma o termo Direito (Recht) ora numa acepção restrita, indicando apenas uma parte do sistema, ora numa acepção ampla, indicando o sistema em seu todo, aí incluído todas as matéria da chamada filosofia prática (economia, política e moral). Por outro lado, para designar a matéria habitual do direito público, Hegel utiliza a expressão Constituição (Verfassung), deixando para a expressão "direito", em sua acepção mais restrita, os conteúdos próprios do direito privado.
Em sua pugna com o jusnaturalismo, Hegel parece não considerar o direito como uma categoria autônoma e chave para compreensão da dinâmica social. Não mais partido do indivíduo, como faziam as correntes jusnaturalistas, mas do povo, historicamente determinado, com sua religião, sua arte, suas técnicas, suas leis e seus costumes; em suma com seu ethos. Assim, tomando o povo como ponto de partida, e considerado-o como totalidade histórica e concreta, Hegel adota uma nova e original perspectiva. O direito não somente é destronado, mas dissolvido como categoria unitária e unificadora. Nesta mudança de perspectiva, no jusnaturalismo, o primado do direito comportava a redução da sociedade e da filosofia do Estado a filosofia do direito, considerado o direito como aquele tecido conectivo através do qual ocorre a passagem do estado a-social para o estado social, do estado natural para o estado civilizado, propondo-se a sociedade universal regulada pelo direito como ideal regulativo da história. A insuficiência, pois, do direito mostra-se exatamente em face desta mudança de perspectiva assumida por Hegel. Aquilo que unifica um conjunto de indivíduos, transformando-o num povo, numa totalidade ética, não é o direito abstratamente considerado. Para tanto, faz-se necessária uma conexão mais profunda, enraizada no próprio "espírito do povo", da qual o direito apresenta-se somente como uma de suas manifestações. "Um povo é algo mais que uma sociedade juridicamente regulada e organizada : é um organismo vivo." Neste contexto, o direito representa sempre o momento da abstração, da formalidade, da estabilidade, enquanto a eticidade representa a concretude viva e histórica.
Em sintonia com esta diretriz, Hegel inicial o estudo da práxis humana não a partir do mundo do direito, mas das esferas da economia, da política e da eticidade. Nestas esferas, o direito é considerado apenas como momento formal. Assim, o direito privado seria o momento formal da economia, destinando-se à estabilização das relações econômicas (propriedade, posse, contrato), enquanto o direito público seria o momento formal da política, vocacionado ao mesmo ideal de estabilização, mediante a instauração de uma organização, pela ordenação permanente das partes no todo. A eticidade, por seu turno, apresenta-se como categoria universal, unificadora de todas as outras categorias parciais da filosofia prática. Deve-se observar, contudo, que, em Hegel, progressivamente, o direito vai se tornando uma categoria mais e mais importante, tal como o demonstra uma ilustrativa obra da maturidade, Princípios da Filosofia do Direito.
Direito público e direito privado
O pensamento jurídico-político hegeliano parece conferir uma grande importância à distinção direito público-direito privado, constantemente presente na literatura jurídica. De fato, a contraposição entre o "público" e o "privado" foi uma tônica no sistema hegeliano, desde as suas primeiras formulações.
Aqui uma advertência se impõe. Hegel abandona nesta questão a terminologia tradicional, tal como presente nos jusnaturalistas até Kant. Nele, a palavra "direito", ou "direito abstrato", significa geralmente "direito privado", enquanto a matéria hoje atribuída ao "direito público" é abordada sob a expressão Constituição. Por outro lado, o trato da matéria em Hegel também é diferenciado, quando comparado à abordagem de matriz jusnaturalista. Em Hegel, ao contrário das exposições jusnaturalistas, o direito privado não tem nenhuma autonomia em relação ao direito público-estatal. Pelo contrário, tem neste seu fundamento. Tal postura guarda estreita coerência com os princípios da filosofia hegeliana.
No pensamento de Hegel ocorre um uso axiológico da dicotomia público-privado, segundo o qual o público corresponde a um momento positivo, tanto do ponto de vista histórico como conceitual, enquanto o privado, quando suplanta o público, representa o momento negativo. Tal orientação prevalecerá em sua teoria político-jurídica.
De fato, as categorias de "público" e "privado", adotadas como categorias de filosofia da história, passarão com função análoga ao direito. Desta forma, para Hegel, o direito privado é subalterno ao direito público. Tal posição terá inúmeros reflexos e desdobramentos em suas obras sistemáticas, históricas e políticas, tornando até certo ponto singular e diferenciada sua teoria política e jurídica, mormente quando comparada à grande tradição jusnaturalista.
O primeiro deles refere-se a polêmica travada com as teorias contratualistas aplicadas ao direito público, em especial a teoria do contrato social. Com efeito, sendo o contrato e a propriedade os dois principais institutos do direito privado, tais institutos não se conformam aos problemas do Estado. Hegel critica veementemente as doutrinas privatistas do Estado. Diz ele: "A intrusão deste (ou seja, do contrato) ou, em geral, das relações de propriedade privada na relação estatal, produziu as maiores confusões no direito público e na realidade". Hegel elenca diversos argumentos para tal refutação. Segundo ele, o contrato procede do arbítrio de dois contraentes, enquanto o Estado não, derivando de uma força superior, não arbitrária, de uma vontade universal. Por outro lado, enquanto o contraente singular pode romper o vínculo contratual, o cidadão não pode subtrair-se por sua vontade ao império do Estado. Por fim, se o Estado deve visar ao interesse geral e não aos interesses particulares dos indivíduos, o mesmo não se pode resumir à soma das vontades individuais. Para Hegel, o Estado é regido por princípios fundamentais, segundo determinações universais, devendo os particulares a elas se conformarem Observe-se, neste sentido, que a crítica feita ao "contratualismo" é de natureza racional, conceitual, e não meramente histórica, como já se havia procedido então.
Da mesma forma que considerou "negativa" a sucessão da religião grega, de natureza pública, pela religião cristã, de caráter privado, Hegel, em seus escritos históricos, caracteriza como épocas de decadência os períodos históricos em que o direito privado suplantou o direito público. Tais épocas foram sobretudo duas: o império romano e a idade média. Tais épocas, por motivos históricos diversos, constituíram uma cisão de uma unidade anterior, uma atomização, uma decomposição das partes de um todo orgânico, uma dissolução da totalidade, uma morte da vida ética (eticidade), um triunfo dos particularismos sobre a universalidade, dos interesses privados sobre os interesses gerais. Hegel afirma que "a totalidade é estilhaçada na escravidão dos particularismos privados". Assim, na fase imperial romana, percebe-se um nítido desenvolvimento do direito privado, enquanto avulta a figura do Imperador como tutor do corpo político, desfazendo-se a república (res pública).
III - BIBLIOGRAFIA
KANT, Imanuel. Crítica da Razão Pura. Rio de Janeiro, Ediouro, 1998.
HEGEL, G.W. F. Princípios da Filosofia do Direito. S. Paulo, Martins Fontes, 2000.
HEGEL. Os Pensadores. S. Paulo, Nova Cultural, 1989.