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Gênero, cárcere e família: estudo etnográfico sobre a experiência das mulheres no tráfico de drogas

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Agenda 11/08/2014 às 12:13

O AGRAVAMENTO DO ESTADO DE VULNERABILIDADE

São preocupantes as complexas relações de exclusão social, na condição de encarceramento feminino. Sem oportunidades de renda em espaço de execução penal, como pensar no atendimento às necessidades dos filhos que se encontram em ambiente extramuros?A mulher sofre com a ausência dos familiares, especialmente da mãe e dos filhos, cuja distância, ocasionada pela prisão, é por ela intensamente sentida, o que faz a “cadeia pesar”. Por essa razão, para ficar perto de seus familiares, prefere permanecer em estabelecimentos carcerários masculinos, provisórios, insalubres, com superlotação, onde não possui acesso a direitos, a ir para penitenciárias mais aparelhadas, longe dos familiares, mas com possibilidades de trabalho, educação e remição de pena. A mulher, por preocupar-se com o universo fora das grades, tende a se submeter a condições, muitas vezes, degradantes, indignas para um ser humano.

A maioria das mulheres que entrevistei reclamam da falta de trabalho ou outra atividade durante o cumprimento da pena, pois, por estarem em um presídio masculino, a privação de liberdade decorrente da condenação se restringe ainda mais, devido ao fato de elas não poderem ter acesso às alas onde estão os homens.

Destaca-se o caráter seletivo do sistema de justiça criminal, que opera de modo muito mais intenso e frequente entre os indivíduos mais vulneráveis, socialmente, privados do acesso ao trabalho e à remuneração dignos, à educação de mínima qualidade, à saúde e à segurança, dentre inúmeros outros direitos fundamentais individuais e sociais, ao mesmo tempo que fortalece a convicção acerca dos efeitos que sobre o indivíduo exerce a reação social, principalmente quando sob a forma de prisão, submetendo-o à estigmatização e prisionalização, dentre outras consequências intrínsecas à privação de liberdade, que potencializam a reincidência.

O controle social se exerce de forma generalizada para homens e mulheres. No entanto, no caso das mulheres, o controle social, ao contrário de restringir-se ao sistema penal, está provavelmente de maneira mais intensa justamente na estrutura familiar, na escola, na mídia e na opinião pública, que integram o controle social informal, ou seja, em diversos aspectos do tecido social, razão pela qual a análise de uma suposta seletividade diminuída do sistema penal sobre as mulheres não pode prescindir de observar todo o arsenal de controle social existente e, sobretudo, a dimensão altamente repressiva de sua intervenção. Em suma, “há todo um mecanismo de controle social formal e informal, em relação às mulheres”, diz Silva (2011:17).

Quando a mulher se desvia do papel imposto socialmente, logo a família, a escola e todos os mecanismos de controle social informal atuam com maior rapidez e efetividade. O controle formalizado, portanto, o controle penal, apenas entra em cena para condutas que superam este filtro inicial. Porém, quando acionado, sua repercussão no universo feminino adquire feição potencializada. As mulheres criminalizadas enfrentam práticas jurisdicionais e institucionais profundamente marcadas por relações patriarcais.

A gênese da criminalidade contemporânea não pode ser compreendida apenas nos limites da dimensão econômica, de modo a sustentar uma associação causal entre pobreza e criminalidade. Zaluar (1996) aponta a insuficiência da associação causal e explicativa entre pobreza e delinquência, incapaz de compreender por que, em diversos casos, sujeitos submetidos às mesmas deficiências de ordem econômica alcançam distintos padrões e níveis de criminalidade. A partir da concepção que associa pobreza a criminalidade, abre-se espaço para a construção de uma imagem do pobre enquanto portador de uma essência delitiva, como se fosse exclusividade sua.

Claudia Fonseca (2004) observa que para compreender o ethos dos grupos populares , suas estratégias de sobrevivência e seus projetos de ascensão, é indispensável pôr em relevo a especificidade de suas experiências frente a essa “forma de poder”.

Impossibilitadas de acessar a maiores níveis de bem-estar e de desenvolver estratégias de superação de dificuldades, tais mulheres tornam-se muito mais vulneráveis frente aos riscos e conflitos que operam no entorno. Sua inabilidade, na solução de conflitos oriundos da vida em sociedade, muitas vezes conduz à adoção de meios ilícitos para satisfazer necessidades, objetivos e realizações propostos e valorizados no meio cultural em que estão inseridas.

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Em seu artigo Conceito de entidade familiar e seguridade social, Claudia Fonseca (2007) diz que, na melhor das hipóteses, dinâmicas alternativas em grupos populares seriam vistas como uma adaptação funcional à pobreza – “estratégias de sobrevivência”. Embora essa última noção aponte para aspectos importantes da realidade, arrisca ser usada de forma simplista, reduzindo tudo que é específico a uma questão econômica – como se “pobres” tivessem estratégia de sobrevivência em vez de cultura.

Em outras palavras, o estado de vulnerabilidade é um processo multidimensional que se expressa de várias formas, como fragilidade e suscetibilidade diante das deficiências estruturais, desamparo institucional perante o estado, debilidade interna para enfrentar e aproveitar as oportunidades que se apresentam, ou insegurança permanente que desmotiva a construção de estratégias dirigidas ao acesso a melhores níveis de bem-estar.

A relação da mulher com o tráfico de drogas, em grande parte, se dá em razão de uma relação afetiva anterior que, na verdade, é mais um reflexo da relação de submissão da mulher ao homem também no crime, pois permite que ela concilie suas tarefas domésticas, constituindo-se numa alternativa de subsistência (SPOSATO, 2007).

Ao contrário do trabalho formal, o comércio ilícito de drogas oferece vários atrativos: fácil acesso, remunerações vantajosas em face dos salários do mercado legal e tarefas de menor esforço físico. Esses fatores têm significado positivo para muitas mulheres que trabalham com o tráfico. Contudo, estando no cárcere, o trabalho formal é o desejo confesso da maioria, pois consideram uma opção moralmente superior, relacionada a valores morais e à ética da mulher provedora, além do desejo de autopreservação, já que as atividades ilícitas têm alto risco pessoal e comprometem a estrutura da família.

Ocorre que, na ausência de acesso ao trabalho formal, o tráfico de drogas, absorve a mão de obra feminina de segmento social mais vulnerável, colocando-a, normalmente, numa posição subsidiária ou subalterna em relação ao homem, pois as mulheres, em geral, realizam a função de "mula" ou “avião” (que transporta a droga), “vapor” (que negocia pequenas quantidades no varejo), “fogueteira” (que controla a presença da polícia), “bucha” (a pessoa que está presente na cena em que são efetuadas as prisões de alguém envolvido), além de outras, como cúmplices, o que não tem muito significado hierárquico na ordem do tráfico. Assim, a mulher torna-se “alvo fácil” para o sistema penitenciário, não só por assumir uma posição de inferioridade, tornando-se mais vulnerável, mas também pelo baixo poder frente ao sistema de justiça criminal.

Na perspectiva dos seus destinatários, a condenação à pena de prisão tem-se revelado uma experiência marcante. A segregação social que ela impõe a relativa desumanização associada à vida intramuros e a própria desorganização e fragilização das condições de existência, decorrentes da retirada de contextos de integração familiar e laboral, constituem os traços essenciais dessa experiência, a qual tende a ser representada e vivida de forma negativa pelos condenados.

Com a experiência do cárcere, a visão que elas possuem sobre tudo o que aconteceu em suas vidas já não é a mesma. As representações que tinham acerca das experiências afetivas vividas e que influenciavam suas condutas parecem transformar-se diante de uma nova realidade que se estabelece.

Lemgruber (1993) assevera que é impossível passar por uma prisão e sair sem marcas e feridas. Acontece com todos. Com os que para lá são mandados, para cumprir uma pena, com os funcionários e os visitantes, e também com pesquisadores, porque a realidade prisional se revela deveras impactante.

Baratta (2004) assinala que a qualidade de criminoso ou marginal e desviado não é uma qualidade natural, senão uma adjetivação atribuída socialmente através de processos de definição e reação (etiquetamento). Estamos falando de um atributo profundamente depreciativo, o estigma, ou seja, trata-se do estigma negativo, que na antiguidade clássica “avisava a existência de um escravo, de um criminoso, de uma pessoa cujo contato devia ser evitado” (GOFFMAN, 1990:11).

Essa marca tende a afetar as redes de sociabilidade familiar e comunitária, fragilizando eventuais suportes materiais e efetivos delas decorrentes e problematizando as condições de integração social devido a atitudes e práticas de humilhação, fuga e segregação, tendo como alvo elementos da família do condenado. Hassen (2007) diz que não é fácil aos familiares dos presos encontrarem com quem se relacionarem, pois as pessoas, em geral, têm o hábito de rejulgar os condenados pela justiça, perpetuando, de maneira intuitiva, julgamentos e condenações.

O estigma assume a afeição de uma etiqueta, de um rótulo de intensa capacidade depreciativa e difícil remoção. Ao ser rotulada como criminosa, e, sobretudo, quando submetida à prisão, a pessoa passa a ser portadora de um estigma que altera sua identidade social e a induz a assumir estereótipos antagônicos, transitando entre realidades sociais e culturais distintas (GOFFMAN, 1990: 20). Com isso, torna-se muito mais suscetível de reincidir, ao mesmo tempo em que se torna ainda mais vulnerável frente à seletividade do direito penal.

Nos últimos anos, ficou muito evidente que o cárcere, ao contrário de promover a reinserção social produz mais segregação e preconceito. Segundo a narrativa de uma das entrevistadas, “a pena que a sociedade impõe é perpétua”.

As mulheres criminalizadas sofrem uma marginalização e discriminação específicas. Consequentemente, quando estigmatizadas como delinquentes sofrem uma dupla marginalização social, que se remete à construção do Outro, diferente biologicamente e, do Outro, diferente porque desviante e transgressor da norma. A mulher difere do homem, e sua identidade social é construída muitas vezes a partir de suas incapacidades (SPOSATO, 2007).


CONSIDERAÇÕES FINAIS 

No fundamento da pena de privação de liberdade está presente o controle do corpo do indivíduo, sua exclusão do mundo externo, e a confinação tem o objetivo da punição e da prevenção de novos delitos, já que aquele corpo é tomado como agente de vontade ou compulsão criminosa, até que seja arbitrada a sua ressocialização (através de algum benefício), ou cumprida a totalidade da pena. O cárcere, ao contrário de promover a reinserção social, a individualidade, a dignidade, dentre outros valores, produz, em realidade, mais segregação e preconceito.

A realidade dessas mulheres é complexa. Encarceradas, perdem não só a liberdade, mas também sua identidade, porquanto o tratamento na prisão é coletivo. O cárcere, com seus muros, grades, portões e cadeados faz a ruptura, temporária, na vida da mulher com o mundo exterior.

Pela observação e narrativas das presas, constatou-se que o estado de absoluta necessidade de meios para prover a sobrevivência pessoal e a dos filhos, em Bagé, foram os maiores responsáveis pela inserção das mulheres no “negócio da droga”. Dessa forma, o tráfico passa a constituir, facilmente, um meio de subsistência.

Refletir a questão do tráfico de drogas, considerando a vulnerabilidade social, não significa associar pobreza à criminalidade, mas dar visibilidade aos problemas enfrentados pelas mulheres diante do sistema penitenciário.

Não se pode negar que a forte visão androcêntrica da realidade social fez com que também as leis criadas no Brasil tivessem um viés preponderantemente patriarcal, especialmente no direito penal. Ocorre, por consequência, que na aplicabilidade das penas e nas condições fornecidas às mulheres, o direito penal evidencia-se como um instrumento privilegiado de política e de utilidade social.

Sendo um espaço político (público) que ainda é um espaço masculino, o princípio da igualdade e da individualização da pena, garantidos constitucionalmente, acabam não sendo observados pelo sistema penal, que reforça a negação das questões de gênero.

Os cuidados para as especificidades da população prisional feminina não têm merecido, dos formuladores de políticas públicas e da gestão penitenciária, uma atenção especial, pois o que se observa é uma absoluta negligência e esquecimento do sistema penal brasileiro, do feminino.

A prisão e o confinamento de mulheres se traduzem em um instrumento de potencialização das assimetrias sociais e das discriminações. O desafio da sociedade e dos poderes instituídos consiste na busca de pautas mais igualitárias na aplicação da justiça e no reconhecimento da condição de sujeitos de direitos das mulheres.

Importante uma reflexão sobre o que queremos quando aprisionamos pessoas, pois se o objetivo é a ressocialização, faz-se necessário que as políticas devam atender tais especificidades. É preciso romper com a invisibilidade da mulher para romper com a atual política penitenciária.

Apreendi, nesta pesquisa, que não existe um mundo do lado de dentro do muro do presídio e outro do lado de fora, aparentemente diferentes. Existe uma ligação entre o fora e o dentro, pois as mulheres, de alguma forma, mantêm contato com o mundo exterior. O muro que cerca o presídio circunscreve apenas uma face da mesma sociedade.

Valores como família, conjugalidade, filiação, afeto estão presentes dentro do presídio, mas configurados de outra forma, pois esses valores já existiam na vida dessas mulheres do lado de fora.

Ninguém sai incólume de um processo de encarceramento. Melhor ou pior, o certo é que as relações se modificam. A relação com os filhos, se antes do cárcere não era sólida, acaba por se firmar. Com relação à conjugalidade, ou a relação termina, porque a mulher se decepciona com o companheiro, ou toma novos contornos, consolidando sentimentos, demonstrando que o afeto se sobrepõe aos problemas enfrentados por ambos.

É imperativa a necessidade de se adicionar uma nova variável nos estudos clássicos da criminologia, por exemplo, o binômio criminalidade e gênero, permitindo um olhar sobre os efeitos específicos que se produzem quando o sujeito criminalizado for uma mulher.A falta de políticas públicas que considerem a prisão sob a perspectiva de gênero acaba por gerar uma sobrepena para as mulheres. Mais do que uma política prisional, é indispensável que a política criminal, entendida de forma ampla, leve em conta as particularidades das mulheres que entram em contato com o sistema de justiça criminal.

Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BERNARDI, Maria Luiza. Gênero, cárcere e família: estudo etnográfico sobre a experiência das mulheres no tráfico de drogas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4058, 11 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29115. Acesso em: 23 dez. 2024.

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